80 – Dava gosto observar o António pedalar a sua bicicleta enquanto assobiava lindas canções de amor. Ou o António a pedalar e a imitar um gracioso par de pintassilgos, ou de rouxinóis. Ou o António a pedalar e a imitar na perfeição uma ária tocada pela banda dos Pardais. Uma coisa é certa: o António pedalava com toda a virtude do mundo e assobiava com todo o esmero do show bussiness nacional e internacional, fosse lá isso o que fosse.
Um dia, enquanto penteava a sua farta e escura cabeleira frente ao espelho do guarda-fatos, tentou cantar. Tinha escutado na rádio várias canções de amor e, a jeitos de envergonhado, experimentou reproduzi-las a modinho. E saiu-se bem. Por assim dizer, o António possuía um bom ouvido e uma voz que, não sendo muito expressiva, era afinada. Além de cantar, acompanhava as modinhas com baixos nasais, ritmos de bateria produzidos à base de artísticas manobras de língua e solos de guitarra executados da mesma forma, mas de outro feitio.
Com o seu aparelho fonador reproduzia, com muito carinho e denodo, todas as modinhas que escutava e se lhe fixavam na cabeça. E sem fazer esforço nenhum. Pelo menos era o que aparentava. O rapazio apreciava-lhe o jeito e as cachopas dispunham-se a dançar com ele só para ouvir, bem juntinho ao ouvido, as principais canções da moda em estereofonia.
Especializou-se em Roberto Carlos (“O calhambeque”, “Quero que vá tudo para o inferno”, “Eu te darei o céu”, “Namoradinha de um amigo meu”, “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos” e, sobretudo, “Eu te amo”); Nelson Ned (“Tudo passará” e “Domingo à tarde”); Teixeirinha (“Coração de luto”, que fazia chorar todas as mães, as suas filhas, as avós, alguns netos e ainda alguns dos cães mais sensíveis à arte e ao drama humanos); Los Diablos (“Un rayo de sol”); Gianni Morandi (“Non son degno di te”). Mas o seu tremendo êxito e a sua grande fama ficaram a dever-se à brilhante imitação do repertório dos Antónios: António Calvário (“Avé Maria” e “Oração”), [Conjunto] António Mafra (“Sete e Pico” e “Arrebita, Arrebita, Arrebita”); [António] Tony de Matos (“O destino marca a hora” e “Digo adeus à saudade”); e António Mourão (“Ó tempo volta para trás”).
Todavia, uma coisa é andar de bicicleta e assobiar e outra, bem distinta, é cantarolar lindas canções românticas, andar de bicicleta e trabalhar de ajudante de trolha. Para contrariar o destino, começou a pensar em arranjar um emprego consentâneo com a sua recente categoria de cantor. Deixou crescer o bigode e cortou o cabelo à imagem e semelhança dos seus ídolos mais próximos.
De fatinho às três pancadas, sapato de salto alto à Nelson Ned, camisa de enormes colarinhos à francesa, desmesuradamente aberta no peito, dirigiu-se corajosamente a uma casa comercial – sita na rua de Santo António e especializada em roupa exterior e interior de homem, senhora e criança (tais como fatos, vestidos, meias, cuequinhas de renda e soquetes e demais sortido), além de uma gama extensa de retrosaria e tecidos –, e solicitou emprego. O patrão do estabelecimento comercial, surpreendido pelo charme discreto, e untuoso, do António, mas, sobretudo, pela ousadia irreverente do sósia de Nelson Ned, sorriu e disse que o artista podia vir trabalhar à experiência por um mês. Depois logo se via. E, de facto, a experiência resultou em cheio.
O António, qual disco-jóquei ambulante, deslumbrou as clientes que, viciadas na rádio e nos seus ícones populares, se deleitavam a ouvi-lo assobiar, ou entoar, todas as canções que andavam de boca em boca como se fossem ladainhas, promessas, sonhos, ou tudo junto.
Se as clientes pediam, e pagavam na hora, um fio de linhas ou um fecho éclair, o António dava-lhes de bónus “Quero que vá tudo para o inferno”. Se lhe pediam chita a metro ou umas cuequinhas de renda, o António debitava a “Namoradinha de um amigo meu”, ao centímetro e o “Sete e Pico” quase ao milímetro. Então se a clientela se atrevia a comprar uma vestimenta de baptizado ou um fato de casamento por atacado, o António era imediatamente solicitado a debitar todo o cardápio de canções, menos o “Coração de luto”, do Teixeirinha, e, por precaução, “Ó tempo volta para trás” do António Mourão, pois se as mães dos nubentes ficavam de olhos lacrimejantes e com pele de galinha ao ouvi-la, os jovens noivos, depois de escutá-la, consideravam a sua mensagem inquietante ou extemporânea.