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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

09
Set11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

80 – Dava gosto observar o António pedalar a sua bicicleta enquanto assobiava lindas canções de amor. Ou o António a pedalar e a imitar um gracioso par de pintassilgos, ou de rouxinóis. Ou o António a pedalar e a imitar na perfeição uma ária tocada pela banda dos Pardais. Uma coisa é certa: o António pedalava com toda a virtude do mundo e assobiava com todo o esmero do show bussiness nacional e internacional, fosse lá isso o que fosse.

Um dia, enquanto penteava a sua farta e escura cabeleira frente ao espelho do guarda-fatos, tentou cantar. Tinha escutado na rádio várias canções de amor e, a jeitos de envergonhado, experimentou reproduzi-las a modinho. E saiu-se bem. Por assim dizer, o António possuía um bom ouvido e uma voz que, não sendo muito expressiva, era afinada. Além de cantar, acompanhava as modinhas com baixos nasais, ritmos de bateria produzidos à base de artísticas manobras de língua e solos de guitarra executados da mesma forma, mas de outro feitio.

Com o seu aparelho fonador reproduzia, com muito carinho e denodo, todas as modinhas que escutava e se lhe fixavam na cabeça. E sem fazer esforço nenhum. Pelo menos era o que aparentava. O rapazio apreciava-lhe o jeito e as cachopas dispunham-se a dançar com ele só para ouvir, bem juntinho ao ouvido, as principais canções da moda em estereofonia.

Especializou-se em Roberto Carlos (“O calhambeque”, “Quero que vá tudo para o inferno”, “Eu te darei o céu”, “Namoradinha de um amigo meu”, “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos” e, sobretudo, “Eu te amo”); Nelson Ned (“Tudo passará” e “Domingo à tarde”); Teixeirinha (“Coração de luto”, que fazia chorar todas as mães, as suas filhas, as avós, alguns netos e ainda alguns dos cães mais sensíveis à arte e ao drama humanos); Los Diablos (“Un rayo de sol”); Gianni Morandi (“Non son degno di te”). Mas o seu tremendo êxito e a sua grande fama ficaram a dever-se à brilhante imitação do repertório dos Antónios: António Calvário (“Avé Maria” e “Oração”), [Conjunto] António Mafra (“Sete e Pico” e “Arrebita, Arrebita, Arrebita”); [António] Tony de Matos (“O destino marca a hora” e “Digo adeus à saudade”); e António Mourão (“Ó tempo volta para trás”).

Todavia, uma coisa é andar de bicicleta e assobiar e outra, bem distinta, é cantarolar lindas canções românticas, andar de bicicleta e trabalhar de ajudante de trolha. Para contrariar o destino, começou a pensar em arranjar um emprego consentâneo com a sua recente categoria de cantor. Deixou crescer o bigode e cortou o cabelo à imagem e semelhança dos seus ídolos mais próximos.

De fatinho às três pancadas, sapato de salto alto à Nelson Ned, camisa de enormes colarinhos à francesa, desmesuradamente aberta no peito, dirigiu-se corajosamente a uma casa comercial – sita na rua de Santo António e especializada em roupa exterior e interior de homem, senhora e criança (tais como fatos, vestidos, meias, cuequinhas de renda e soquetes e demais sortido), além de uma gama extensa de retrosaria e tecidos –, e solicitou emprego. O patrão do estabelecimento comercial, surpreendido pelo charme discreto, e untuoso, do António, mas, sobretudo, pela ousadia irreverente do sósia de Nelson Ned, sorriu e disse que o artista podia vir trabalhar à experiência por um mês. Depois logo se via. E, de facto, a experiência resultou em cheio.

O António, qual disco-jóquei ambulante, deslumbrou as clientes que, viciadas na rádio e nos seus ícones populares, se deleitavam a ouvi-lo assobiar, ou entoar, todas as canções que andavam de boca em boca como se fossem ladainhas, promessas, sonhos, ou tudo junto.

Se as clientes pediam, e pagavam na hora, um fio de linhas ou um fecho éclair, o António dava-lhes de bónus “Quero que vá tudo para o inferno”. Se lhe pediam chita a metro ou umas cuequinhas de renda, o António debitava a “Namoradinha de um amigo meu”, ao centímetro e o “Sete e Pico” quase ao milímetro. Então se a clientela se atrevia a comprar uma vestimenta de baptizado ou um fato de casamento por atacado, o António era imediatamente solicitado a debitar todo o cardápio de canções, menos o “Coração de luto”, do Teixeirinha, e, por precaução, “Ó tempo volta para trás” do António Mourão, pois se as mães dos nubentes ficavam de olhos lacrimejantes e com pele de galinha ao ouvi-la, os jovens noivos, depois de escutá-la, consideravam a sua mensagem inquietante ou extemporânea.

07
Set11

O Poema Infinito (64): uma definição de Deus

João Madureira

 

Tu és a minha alegria luminosa por isso me sinto ofegar dentro da tua tensão global como se Deus respirasse sílabas plenas de tranquilidade imediata. Deus é uma palavra. Por isso Deus introduz-se no nosso desespero. Deus é uma lâmina despojada de sentido porque teima em permanecer na sua tranquilidade extrema olhando para nós como se fossemos pequeníssimos pontos imersos no mar imenso do vazio. Os olhos de Deus são glaucos e estão desocupados da pulcritude crua das cores. O seu olhar é a preto e branco. Deus está coroado de figuras rasas de sentido por isso é invulnerável à humanidade. Deus proibiu-se de actuar na vida dos humanos. Essa é a sua omnimpotência. Dele se diz que é o fim inicial de tudo, que é a abertura central da destruição, a união principal do imponderável, a intocável serenidade da indiferença, a noite inteira, o frio do vazio pleno, o universo cravado nos olhos cegos da matéria. Deus é o último alento de cada homem que morre, a noite trocada nos sonhos das mãos, as casas engolidas pelo tempo, o coração confundido dos mártires, as cidades que arderam e ardem em seu nome, as palavras soterradas dos profetas, o tempo duro das pedras. Deus é a imensa prole constituída por milhões de esfomeados que entre si dividem a impotência da humanidade proclamada pelos poderosos, da ciência celebrada pelos poderosos, da solidariedade laureada pelos poderosos, da verdade declarada pelos demagogos. Deus transformou o tempo fecundo em tempo implacável. Deus transformou o tempo da razão em tempo de silêncio. As suas palavras martelam persistentemente no muro silencioso dos crentes. Deus é a insónia pronunciada do Diabo. Deus é o boi cego da impaciência, é o amor desabrigado do desespero, é o sonho sofrido da felicidade, o relógio inútil da vida, a fadiga inerte da eternidade. Deus é o grito escuro das nebulosas, a poalha cintilante dos céus, o eterno carinho do passado, a grávida linha do caos, o martírio das estrelas, a rigorosa exactidão do nada. Deus também é a breve titilação do corpo de uma mulher que dorme perfumada pelo sémen do homem que ama. Deus é todo o silêncio de vidro do mundo. Deus é um palácio de areia junto ao mar. Deus é a eterna tranquilidade das nossas cinzas. Deus é a grandeza do pó dos humanos. Deus é um caminho de palavras que vai dar a lado nenhum. Deus é um condutor de fórmula um omninconsciente. Deus é um pai omnimpotente. Deus é a sumptuosidade silenciosa do absurdo. Nós somos os seus olhos carregados de silêncio. 

05
Set11

Quinta crónica estival: Agenda Cultural, palestras e tsum, tsum, tsum…

João Madureira

 

“Estiveste na praia?”, perguntou-me de supetão o C. Eu disse que sim. E ele: “Pois não parece. Vens branquito.” E eu: “É que uso um protector solar com um filtro de número elevado. Com o sol não brinco. Além disso só estou na praia até ao meio-dia e depois das dezasseis horas. E uso t-shirt, óculos de sol e chapéu.” E ele: “Se pensasse e agisse como tu juro-te que não ia para a praia”, atirou-me de supetão o C., que apenas passou uma semana à beira-mar e ficou mais castanho do que o Eusébio. Mas é cor de pouca dura pois são já visíveis pedaços de pele a erguerem-se pelo meio dos pêlos do corpo. Parece uma cobra, o fanfarrão. Coitado. Depois de se ir embora fiquei a pensar se o C. é mesmo meu amigo ou apenas se faz. Ele jura que sim, mas quem muito jura muito mente.

 

Aqui que ninguém nos ouve, a nossa amada terrinha no Verão fica um pouco insuportável. Os emigrantes desequilibram-na, atrapalhando as ruas, enchendo os supermercados e os cafés. E o calor aperta forte. Por isso só saio de casa a meio da tarde e durante a noite. As noites são agradáveis, isto quando não venta. E é à noite que o burgo se anima. Mas para isso acontecer teve de existir um prévio trabalho de organização.

 

O Vasco (Pulido Valente) considera que há muito tempo que o Estado (leia-se Câmaras Municipais) tomou sobre si o extraordinário encargo de animar a populaça. O direito “a ser divertido” é hoje um direito intocável do cidadão. Diz ele, o Vasco Pulido (Valente) que as câmaras não hesitam em fechar ao trânsito partes da cidade, mesmo da cidade central, a benefício de um concurso de bandas (de género desconhecido ou ambíguo) ou de um acampamento de barraquinhas. Resumindo e concluindo, o Valente (Vasco Pulido) fica possesso pelo singelo facto de as autarquias gastarem o nosso dinheirinho em animação de bailes ou festas que nada adiantam e só incomodam. Mas isso é ele, que é homem muito mal disposto e sempre pronto a cascar forte e feio nos portugueses e em Portugal.

 

Eu, por exemplo, penso de maneira distinta. Eu apoio tudo o que ele desapoia e desapoio tudo o que ele apoia. Como os estimados leitores sabem, ou se não sabem ficam agora a saber, a primeira quinzena de Agosto passei-a fora, por isso foi com extrema mágoa que, depois de consultar a Agenda Cultural de Chaves que me esperava ansiosamente na caixa de correio, não pude assistir nas Termas de Chaves - SPA do Imperador (já gora uma salva de palmas a quem teve a brilhante ideia de qualificar as instalações das Termas flavienses com tão pomposa denominação: parabéns, parabéns, parabéns) às palestras sobre “A Podologia: A saúde dos seus pés” (primeira); “Estilos de vida saudáveis”; “Osteoporose – factores preventivos”, “Cuidados e higiene correcta dos pés”; “Alimentação sustentável e biológica”; “Dieta mediterrânica: um padrão de vida”; nem pude participar na caminhada “Dar mais vida aos anos, dar aos anos mais vida”, e por isso perdi ainda a actuação do Rancho Folclórico (que só ela, a actuação do rancho, bem entendido, valia os 5 euros de inscrição).

 

Mas, como isto está pensado ao pormenor, no dia quinze a palestra sobre “A Podologia: A saúde dos seus pés” foi repetida. Contudo, para mal dos meus pecados, nesse dia estava em viagem de regresso, por isso voltei a perdê-la. Mas no dia seguinte, logo após o almoço, ainda com alguma areia nos sapatos e na bainha das minhas calças de linho, fui assistir à palestra sobre “Estilos de vida saudáveis”.

 

Lembro os estimados leitores que estou a seguir as propostas relevantes da Agenda Cultural do Município de Chaves (e Verin), editada pelo Gabinete de Apoio Técnico à Eurocidade Chaves-Verin, seja lá isso o que for, referente a Agosto, pois é neste mês que Chaves se enche de turistas e emigrantes.

 

No dia 22 fui assistir à palestra “Pé plano e pé cavo: diferenças”; no dia seguinte assisti embasbacado à pertinente palestra sobre: “A alimentação dos nossos filhos e netos”; e ainda a uma outra, originalíssima, sobre “A importância da roda dos alimentos”; no dia 26 fui assistir, tal e qual um colegial, à palestra: “Pratos de Verão – Económicos e Saudáveis”. No dia 29 assisti a mais uma palestra sobre os pés: “Mitos sobre os pés”; e no dia 30, para finalizar em beleza, assisti à última palestra do mês: “Como nutrir o seu coração – Doenças cardiovasculares”.

 

Lembro de novo os estimados leitores, e repito para que conste, que estou a seguir as propostas relevantes da Agenda Cultural do Município de Chaves (e Verin), editada pelo Gabinete de Apoio Técnico à Eurocidade Chaves-Verin, seja lá isso o que for, referente a Agosto, pois é neste mês que Chaves se enche de turistas e emigrantes.

 

Com a barriguinha repleta de palestras das Termas de Chaves - SPA Imperador, ainda tive tempo para me divertir com muitas outras propostas estatais (leia-se camarárias) de animação cultural. Assisti às XXVIII Xornadas de Folclore 2011, com a participação da Bielorrússia, Togo, Bolívia e Coreia; com apresentação totalmente feita na nossa língua comum: o galego. Ouvi encantado o trinado da voz e das guitarras do fado de Coimbra e a actuação da Banda Filarmónica da minha terra. Com o coração aberto fui a Vidago dar um abraço e visitar a exposição de pintura da minha querida colega e amiga Priscila. Fui a Vidago, repito, porque em Chaves as propostas pictóricas eram tantas e tão variadas que os espaços estavam repletos e por isso resolveram expor os quadros da pintora na vila que dista de Chaves apenas 15 quilómetros.

 

Mas como as propostas públicas, leia-se estatais, leia-se camarárias, não preenchiam a noite toda, nem todas as noites, isso é que era bom, deixei-me levar pela onda privada, especialmente pelos bares de balcões, e coração, abertos. Refresquei-me, eu e os meus amigos, mais amigas que amigos confesso, porque os amigos só falam de futebol e as mulheres falam sobretudo de política, com sangria de champanhe bebida com palhinhas (ó eufemismo!) muito parecidas com mangueiras, finos e mojitos. E posso-vos dizer tsum, tsum, tsum… que tentei ver o Malenga Machel Mandela e a namorada, filho do presidente (sic), [que eu penso que já não é], Nelson Mandela da África do Sul, … tsum, tsum, tsum… special guest do Ámiça Bar, José Castelo Bra… tsum, tsum, tsum… e o Augus… tsum, tsum, tsum… e a Cristina Pai… tsum, tsum, tsum… e os residentes Pisco e Pu… tsum, tsum, tsum… e no Bb ainda tentei tsum, tsum, tsum… pôr-me na fila para ir ver o Lucen… tsum, tsum, tsum… mas ela era tão grande que… tsum, tsum, tsum… e ainda tentei dançar… tsum, tsum, tsum… ao som do melhor beatboxer portu… tsum, tsum, tsum… Fubu Bea… tsum, tsum, tsum… e do Papa London… tsum, tsum, tsum… mas afinal fiquei entretido a beber… tsum, tsum, tsum… caipi… tsum, tsum, tsum… sangria de… tsum, tsum, tsum… finos… tsum, tsum, tsum… e mojitos e viva Cuba Livre… de Fidel… tsum, tsum, tsum… e dos manos Castros… tsum, tsum, tsum… e mais…  tsum, tsum, tsum…

02
Set11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

79 – O bairro onde vivia a família do José por vezes proporcionava interessantes cenas familiares. Habitavam lá famílias grandes de prole, mas remediadas de rendimentos, o que equivale dizer que se não passavam fome andavam lá muito perto. A vida naquele tempo era a ilustração perfeita da moderníssima teoria da reciclagem, tudo se aproveitava: roupa usada que se remendava, cerzia ou compunha; calçado que se reparava e engraxava; comida que se preparava uma vez e cujas sobram eram aproveitadas para a ceia ou para o mata-bicho; latas, caricas, tecidos, milho, batatas, madeira, plásticos e carrinhos de linhas que eram transformados em brinquedos para gáudio da criançada. Aquele era o laboratório vivo onde se provava, como se fosse preciso, a teoria de que a necessidade aguça o engenho. E ali mesmo, naquele pedaço de terra onde foram erguidas algumas dezenas de casas simples, a teoria de Lavoisier passou do livro de Física do José à evidência da vida: na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. E seja o que Deus quiser, se é que existe e é amigo dos pobres.

Na primeira casa do bairro habitava a família mais numerosa. Como o pai não conseguia ganhar o suficiente para alimentar e vestir a sua descendência, o filho mais velho, mal concluiu a quarta classe, foi obrigado a ver-se na condição de guardador das vacas de um vizinho que possuía uma pequena herdade de lavoura. António, o infeliz moço, não recebia dinheiro em troca do seu trabalho. Naquela altura a lavoura não dava para tanto. Mas levava para casa, em doses muito moderadas, convenhamos, leite, batatas, centeio, fruta e ainda alguma produção da horta e do jericó.  

Nas lentas horas de labuta, o António tinha de fazer alguma coisa senão dava em doido. Tentou a leitura, mas os livros enfadavam-no de morte, quando não o faziam recordar as muitas reguadas que levou por ler de forma hesitante e pelos muitos erros que dava, nunca menos de trinta, mas também nunca mais de cinquenta. Para ele a língua portuguesa, além de difícil, era madrasta. Por causa dela, tanto o professor como o pai o castigaram severamente. Na tentativa de matar o tédio, tentou o truque da flauta, pois conhecia vagamente a história do flautista de Hamelin.

O desconsolado pastor queria atrair qualquer coisa, mas tocava tão mal que as vacas, em vez de pastarem em paz, tinham tendência a dispersar-se para bem longe de onde ele actuava. Algumas começaram mesmo a evidenciar sinais de uma irritabilidade inusitada e a sua produção de leite diminuiu a olhos vistos. O patrão não gostou do que viu e ameaçou despedi-lo. O António resolveu deixar a flauta em casa. Comprou em segunda mão um realejo já muito gasto mas que depois de soprado continuava a emitir notas musicais minimamente perceptíveis. Isso na boca do tocador que lha vendeu, pois, nos lábios do António, o instrumento musical nunca mais foi o mesmo. Todos lhe diziam que a gaita-de-beiços tinha de estar desarranjada, porque nunca ninguém tinha ouvido um realejo, mesmo gasto, emitir sons tamanhos de dissonância e incorrecção.

Como na feira dos Santos tinha observado um homem a tocar sanfona, realejo, flauta e caixa, enquanto um macaco dava cambalhotas, batia pratos e pedia dinheiro estendendo um púcaro de alumínio, decidiu mercar um tambor. A sua ideia era, com o rufar do tambor, camuflar a desafinação da flauta e da gaita-de-beiços. E conseguiu-o. Mas o som produzido, além de espantar a passarada, afugentar os coelhos e colocar os texugos em pânico, fez com que a Mimosa, a vaca mais produtiva e amada do seu patrão, se pusesse em fuga e, no seu desnorte, enfiasse a pata numa cova funda, fracturando-a. Foi assim o animal para abate e o António para o desemprego.

Nos seus doze anos, o ex-guardador de vacas e da quimera de vir a ser artista de variedades, conseguiu arranjar emprego de moço, que era a modos que o ajudante de trolha, o escalão mais baixo da carreira de operário da construção civil. E por ali se manteve vários anos. Com algum do dinheiro arrecadado, à custa de muito porfiar, convenceu o pai a comprar-lhe uma bicicleta. Todas as bicicletas médias lhe pareceram grandes. E as dos adultos pareceram-lhe enormes. No entanto, adquirir uma bicicleta para crianças estava fora de questão. Ele podia parecer um fedelho, devido à sua baixa estatura, mas já não o era. Além disso, comprar uma bicicleta pequena equivalia a mercar uns sapatos do tamanho certo, loucura que nenhum rapaz do bairro se atrevia a cometer, pois era certo e sabido que o pé aumentava mais rápido que o tempo necessário a ganhar dinheiro para comprar novo calçado. Naquela altura todo o calçado e toda a roupa se compravam sempre dois números acima do tamanho adequado. Essa era a lei fundamental da sustentabilidade das famílias pobres e remediadas.

Viu-se, dessa forma, o António, forçado a pedalar a sua máquina nova com as pernas metidas no triângulo entre rodas e sempre de rabo no ar, o que lhe dava um certo ar de garoto do circo. Pedalou dessa forma a sua bicicleta ainda durante três anos. Aos quinze, finalmente assentou o traseiro no selim e começou a pedalar a bicicleta como um homem.

Foi por essa altura que o pai, vendo que o filho se estava a fazer varão, o levou às, com vossa licença, putas. Mas não se sabe se pela inexperiência se por medo, o António não conseguiu uma única erecção. A mulher da vida, como se fosse uma mãe virtuosa, disse-lhe que assobiasse para ver se o que tinha de crescer crescia, pois essa era uma das tradicionais formas de pôr os pirralhos a fazer chichi. Ele assim fez. Dos efeitos da terapia nada sabemos, o que sim sabemos é que o António descobriu que era proprietário de um assobio de timbre agradável, conseguindo silvar cantigas com muito talento e respeitável harmonia. Chegaram mesmo a organizar-se bailes onde o artista convidado era o António mais o seu assobio. Foi por essa altura que também começou a imitar o trinado de toda a passarada conhecida. E assim foi feliz à sua maneira, que é a maneira mais feliz de se ser feliz, mesmo que não pareça. Dizem que a felicidade é um mito, mas ali estava o António, mais a sua bicicleta e o seu assobio, para provar o contrário. 

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