O Homem Sem Memória
85 – Nas noites quentes de Verão, o José, se não tivesse algum bailarico a que ir, acampava em casa do Fernando e só de lá saía a altas horas da noite. Gostava muito do Fernando, mas apreciava ainda mais as conversas cultas do seu ilustrado pai. Então se tivesse já um grão na asa, o senhor Carvalho convertia-se num autêntico guru.
Convém referir que o pai do Fernando era o mesmo senhor que sugeriu e emprestou, ao José, vários livros da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian em Montalegre. A verdade é que o senhor Carvalho não se lembrava do José, mas o José lembrava-se muito bem do senhor Carvalho.
O bom do senhor Carvalho continuava o mesmo: bonacheirão, amável e culto. Sobretudo gostava de partilhar. Partilhava a sua intrínseca bondade, o sorriso amplo e ligeiramente atrapalhado, a cultura e a solidariedade. Podemos dizer, sem fugir muito à verdade, que o senhor Carvalho era também bom amigo do guarda Ferreira. No entanto, com o pai do José não partilhava a sua admiração por Elio Vittorini e Mozart. Com o GNR limitava-se a beber muitos e bons copos de tinto nas distintas tabernas da cidade e a falar da vida, das coisas boas da vida como a amizade, a comida, a bebida, a luz do sol, o chilrear dos pássaros, o sorriso das crianças, da mulher, dos filhos, da sua banda de música, da sua infância e do seu trabalho, que considerava um dos melhores do mundo, do privilégio que era trabalhar rodeado daquilo que mais amava, os livros. E bebia. E sorria. E sorria e bebia. O guarda Ferreira também sorria, mas por ver sorrir o amigo. Sorria por imitação. Sorria por entre uma nuvem azulada de fumo, com o seu sorriso paciente. Pensando-o feliz, o senhor Carvalho, bebia mais um copo, comia mais uma sandes de vitela assada e galhofava mais um pouco.
O pai do Fernando tinha tendência para acompanhar o copo de vinho com uma bucha, já o pai do José limitava-se apenas a acompanhar a pinga com os cigarros. O senhor Carvalho tendia a falar e a beber muito. O guarda Ferreira limitava-se a beber, a fumar e a ficar calado que nem um rato. Por isso, o senhor Carvalho apreciava a sua companhia, considerava-o um excelente ouvinte. E disse-lho muitas vezes: “Ouvintes como o meu caro amigo já há poucos. Por isso venha de lá mais um copo e uma sandes de vitela assada. Tem a certeza de que não quer comer mesmo nada? Fazia-lhe bem. Ao vinho devemos fazer cama no estômago.” Mas o guarda Ferreira limitava-se a sorrir com o seu sorriso afetado, a deitar abaixo mais um copo de tinto e a fumar outro cigarro.
Então o senhor Carvalho voltava a olhar para o sorriso triste do pai do José e, solidariamente, tornava a falar-lhe do privilegiado trabalho de emprestador de livros, da perfeição da natureza, da formosura de uma mulher, da infinita lindeza do sorriso de uma criança, da pulcritude do nascer e do pôr-do-sol.
Sempre que o senhor Carvalho empregava termos como “pulcritude”, o guarda Ferreira esboçava um esgar como se todo o vinho bebido lhe tivesse azedado no estômago e puxava uma grande passa do cigarro. O senhor Carvalho, fazendo que não via, ou não vendo mesmo, o ar contristado do amigo, tentava focar-se na sua imagem esbatida atrás da nuvem de fumo, e ali, no meio da semi-obscuridade da taberna, fazia renascer o piar dos passarinhos, o som transparente da chuva a cair na terra seca, a gargalhada profunda do seu filho Abel, o mais novo, a doce melodia de um solo de clarinete, o rufar de uma caixa, o som cavo e ligeiramente roufenho de um trompete, os passos profundos de uma tuba, o som de palha verde de um saxofone, o timbre budista dos ferrinhos ou o estridente estampido dos pratos.
O guarda Ferreira, que não era invejoso nem ciumento, olhando e ouvindo o seu amigo bibliotecário, sentia subir por si acima uma raiva surda, pois não era sequer capaz de se entusiasmar com o bonito sorriso dos seus filhos. Sabia que não podia falar como o senhor Carvalho, que não podia solfejar como o senhor Carvalho, que não podia aspirar a trabalhar num emprego calmo e tranquilo como o trabalho do senhor Carvalho, que deixava tempo para as coisas boas da vida, que não podia aspirar a mandar os seus filhos estudar para a universidade como o senhor Carvalho, pois o seus filhos não eram tão inteligentes como os do senhor Carvalho, nem ele ganhava um ordenado como o do senhor Carvalho, nem o Estado dava apoios como a Gulbenkian do senhor Carvalho, nem podia satisfazer-se com o sabor de uma sandes de vitela assada como o senhor Carvalho, pois não era homem para fazer cama ao vinho, ele emborcava o vinho, não por prazer, mas por vício, ele fumava, não por prazer, mas por vício, ele fornicava a mulher, não por prazer, mas por vício e por obrigação, ele não multava os transgressores por prazer, como a maioria dos colegas, mas por dever, pelo vício do dever, ele não era feliz como o senhor Carvalho porque não o sabia ser.
Para o guarda Ferreira a vida era um sofrimento. Pensava que estar vivo era uma enorme canseira e nada tinha de bonito ou agradável. Para ele, os pássaros serviam para comer, o sol para aquecer, a chuva para regar os campos, os livros para ajudar a subir na vida e para aprender a mandar nos outros, a mulher para procriar, os filhos para chatear, a música para bailar, o vinho para emborrachar, a comida para nos manter vivos, os cigarros para chupar e a lei para cumprir e fazer cumprir.
Mas vendo o prazer que o seu amigo Carvalho tirava apenas da lembrança da gargalhada de um filho, da simples imagem de um pôr-do-sol, da sonoridade de um instrumento musical, do sabor de uma sandes de vitela assada, do som da chuva ou do simples sabor de um copo de vinho, a raiva subia-lhe direitinha ao cérebro, pedia desculpa pelo incómodo e lembrava ao amigo que estava na hora de ir para casa ter com os seus, dos quais sentia saudades.
O guarda Ferreira dizia isto, mas pensava coisa distinta, pois, como bem sabemos, evitava ir para casa cedo para não dar de caras com as trombas da Dona Rosa. Dali, por certo, rumaria a outra taberna onde seguramente encontraria outros amigos da pinga que bebiam este mundo e o outro simplesmente por desfastio, por vício. A felicidade, e a bonomia, do senhor Carvalho ofendia-o, deixava-o triste. Uma pessoa infeliz convive mal com a felicidade dos outros.
Mal deu um passo caras à porta da taberna, o guarda Ferreira sentiu-se bambolear como uma árvore mole ao vento. Sentou-se de imediato e ficou amarelinho como um peido. O senhor Carvalho sentou-se a seu lado e começou a falar-lhe da saudade. “Gostei de o ouvir dizer que está com saudade dos seus. Isso é bom de ouvir. A mim basta-me passar um dia fora dos meus e sobe-me logo ao coração a saudade. Sinto muita saudade do meu filho mais velho que anda lá por África a combater naquela guerra desalmada. Sabe, a saudade é um sentimento genuinamente português, só conhecida em galego e português. Descreve a mistura dos sentimentos de perda, distância e amor. A palavra vem do latim "solitas, solitatis" (solidão), na forma arcaica de "soedade, soidade e suidade" e sob influência de "saúde" e "saudar".
O guarda Ferreira, olhando com olhos de dizer para o senhor Carvalho, proferiu estas rudes palavras: “O senhor Carvalho que me desculpe, mas eu quero que a saudade se foda e o chilrear dos passarinhos e o nascer e o pôr-do-sol e a música do clarinete e do saxofone e do… e do trompete e… O senhor Carvalho que me desculpe, mas eu quero que se foda tudo, não sei se me compreende. E a saudade também. Sobretudo a saudade. Que se foda a saudade e o som da tuba e o cantar dos pintassilgos e a saudade, sobretudo a saudade. Eu quero lá saber da saudade para alguma coisa.”