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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Out11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

85 – Nas noites quentes de Verão, o José, se não tivesse algum bailarico a que ir, acampava em casa do Fernando e só de lá saía a altas horas da noite. Gostava muito do Fernando, mas apreciava ainda mais as conversas cultas do seu ilustrado pai. Então se tivesse já um grão na asa, o senhor Carvalho convertia-se num autêntico guru.

Convém referir que o pai do Fernando era o mesmo senhor que sugeriu e emprestou, ao José, vários livros da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian em Montalegre. A verdade é que o senhor Carvalho não se lembrava do José, mas o José lembrava-se muito bem do senhor Carvalho.

O bom do senhor Carvalho continuava o mesmo: bonacheirão, amável e culto. Sobretudo gostava de partilhar. Partilhava a sua intrínseca bondade, o sorriso amplo e ligeiramente atrapalhado, a cultura e a solidariedade. Podemos dizer, sem fugir muito à verdade, que o senhor Carvalho era também bom amigo do guarda Ferreira. No entanto, com o pai do José não partilhava a sua admiração por Elio Vittorini e Mozart. Com o GNR limitava-se a beber muitos e bons copos de tinto nas distintas tabernas da cidade e a falar da vida, das coisas boas da vida como a amizade, a comida, a bebida, a luz do sol, o chilrear dos pássaros, o sorriso das crianças, da mulher, dos filhos, da sua banda de música, da sua infância e do seu trabalho, que considerava um dos melhores do mundo, do privilégio que era trabalhar rodeado daquilo que mais amava, os livros. E bebia. E sorria. E sorria e bebia. O guarda Ferreira também sorria, mas por ver sorrir o amigo. Sorria por imitação. Sorria por entre uma nuvem azulada de fumo, com o seu sorriso paciente. Pensando-o feliz, o senhor Carvalho, bebia mais um copo, comia mais uma sandes de vitela assada e galhofava mais um pouco.

O pai do Fernando tinha tendência para acompanhar o copo de vinho com uma bucha, já o pai do José limitava-se apenas a acompanhar a pinga com os cigarros. O senhor Carvalho tendia a falar e a beber muito. O guarda Ferreira limitava-se a beber, a fumar e a ficar calado que nem um rato. Por isso, o senhor Carvalho apreciava a sua companhia, considerava-o um excelente ouvinte. E disse-lho muitas vezes: “Ouvintes como o meu caro amigo já há poucos. Por isso venha de lá mais um copo e uma sandes de vitela assada. Tem a certeza de que não quer comer mesmo nada? Fazia-lhe bem. Ao vinho devemos fazer cama no estômago.” Mas o guarda Ferreira limitava-se a sorrir com o seu sorriso afetado, a deitar abaixo mais um copo de tinto e a fumar outro cigarro.

Então o senhor Carvalho voltava a olhar para o sorriso triste do pai do José e, solidariamente, tornava a falar-lhe do privilegiado trabalho de emprestador de livros, da perfeição da natureza, da formosura de uma mulher, da infinita lindeza do sorriso de uma criança, da pulcritude do nascer e do pôr-do-sol.

Sempre que o senhor Carvalho empregava termos como “pulcritude”, o guarda Ferreira esboçava um esgar como se todo o vinho bebido lhe tivesse azedado no estômago e puxava uma grande passa do cigarro. O senhor Carvalho, fazendo que não via, ou não vendo mesmo, o ar contristado do amigo, tentava focar-se na sua imagem esbatida atrás da nuvem de fumo, e ali, no meio da semi-obscuridade da taberna, fazia renascer o piar dos passarinhos, o som transparente da chuva a cair na terra seca, a gargalhada profunda do seu filho Abel, o mais novo, a doce melodia de um solo de clarinete, o rufar de uma caixa, o som cavo e ligeiramente roufenho de um trompete, os passos profundos de uma tuba, o som de palha verde de um saxofone, o timbre budista dos ferrinhos ou o estridente estampido dos pratos.

O guarda Ferreira, que não era invejoso nem ciumento, olhando e ouvindo o seu amigo bibliotecário, sentia subir por si acima uma raiva surda, pois não era sequer capaz de se entusiasmar com o bonito sorriso dos seus filhos. Sabia que não podia falar como o senhor Carvalho, que não podia solfejar como o senhor Carvalho, que não podia aspirar a trabalhar num emprego calmo e tranquilo como o trabalho do senhor Carvalho, que deixava tempo para as coisas boas da vida, que não podia aspirar a mandar os seus filhos estudar para a universidade como o senhor Carvalho, pois o seus filhos não eram tão inteligentes como os do senhor Carvalho, nem ele ganhava um ordenado como o do senhor Carvalho, nem o Estado dava apoios como a Gulbenkian do senhor Carvalho, nem podia satisfazer-se com o sabor de uma sandes de vitela assada como o senhor Carvalho, pois não era homem para fazer cama ao vinho, ele emborcava o vinho, não por prazer, mas por vício, ele fumava, não por prazer, mas por vício, ele fornicava a mulher, não por prazer, mas por vício e por obrigação, ele não multava os transgressores por prazer, como a maioria dos colegas, mas por dever, pelo vício do dever, ele não era feliz como o senhor Carvalho porque não o sabia ser.

Para o guarda Ferreira a vida era um sofrimento. Pensava que estar vivo era uma enorme canseira e nada tinha de bonito ou agradável. Para ele, os pássaros serviam para comer, o sol para aquecer, a chuva para regar os campos, os livros para ajudar a subir na vida e para aprender a mandar nos outros, a mulher para procriar, os filhos para chatear, a música para bailar, o vinho para emborrachar, a comida para nos manter vivos, os cigarros para chupar e a lei para cumprir e fazer cumprir.

Mas vendo o prazer que o seu amigo Carvalho tirava apenas da lembrança da gargalhada de um filho, da simples imagem de um pôr-do-sol, da sonoridade de um instrumento musical, do sabor de uma sandes de vitela assada, do som da chuva ou do simples sabor de um copo de vinho, a raiva subia-lhe direitinha ao cérebro, pedia desculpa pelo incómodo e lembrava ao amigo que estava na hora de ir para casa ter com os seus, dos quais sentia saudades.

O guarda Ferreira dizia isto, mas pensava coisa distinta, pois, como bem sabemos, evitava ir para casa cedo para não dar de caras com as trombas da Dona Rosa. Dali, por certo, rumaria a outra taberna onde seguramente encontraria outros amigos da pinga que bebiam este mundo e o outro simplesmente por desfastio, por vício. A felicidade, e a bonomia, do senhor Carvalho ofendia-o, deixava-o triste. Uma pessoa infeliz convive mal com a felicidade dos outros.

Mal deu um passo caras à porta da taberna, o guarda Ferreira sentiu-se bambolear como uma árvore mole ao vento. Sentou-se de imediato e ficou amarelinho como um peido. O senhor Carvalho sentou-se a seu lado e começou a falar-lhe da saudade. “Gostei de o ouvir dizer que está com saudade dos seus. Isso é bom de ouvir. A mim basta-me passar um dia fora dos meus e sobe-me logo ao coração a saudade. Sinto muita saudade do meu filho mais velho que anda lá por África a combater naquela guerra desalmada. Sabe, a saudade é um sentimento genuinamente português,  só conhecida em galego e português. Descreve a mistura dos sentimentos de perda, distância e amor. A palavra vem do latim "solitas, solitatis" (solidão), na forma arcaica de "soedade, soidade e suidade" e sob influência de "saúde" e "saudar".

O guarda Ferreira, olhando com olhos de dizer para o senhor Carvalho, proferiu estas rudes palavras: “O senhor Carvalho que me desculpe, mas eu quero que a saudade se foda e o chilrear dos passarinhos e o nascer e o pôr-do-sol e a música do clarinete e do saxofone e do… e do trompete e… O senhor Carvalho que me desculpe, mas eu quero que se foda tudo, não sei se me compreende. E a saudade também. Sobretudo a saudade. Que se foda a saudade e o som da tuba e o cantar dos pintassilgos e a saudade, sobretudo a saudade. Eu quero lá saber da saudade para alguma coisa.”  

19
Out11

O Poema Infinito (70): a densidade de um segundo de criação

João Madureira

 

Vejo da minha varanda hermética um cavalo varado pelo desejo aromático dos prados verdes. O cheiro dos crisântemos assombra a tarde que se forma sobre o ar vivo das cores do arco-íris. Numa das margens do rio um astro melancólico começa a ascender. O sol suave abre agora a noite inteira sobre o dorso do cavalo varado. O silêncio na curva do rio é imenso. Cai a noite. Nesta noite imprecisa mora a memória derradeira dos meus antepassados. Por isso o cavalo varado persiste em caminhar sobre as pedras do desfiladeiro provocando relâmpagos persistentes. A noite ensurdece enquanto eu caminho sobre as pedras dispersas da minha pobre casa. Os meus olhos são agora lagos. Os meus membros são agora sombras e silêncio. A minha cabeça é agora o caos da criação. Todo eu sou a sede vertebrada dos desertos. Todo eu sou a língua que já não cabe na boca. Os anjos fosforescentes dançam na erva e depois elevam-se como ondas por entre as coxas das mulheres em cio. Os seus corpos esperam. As suas inconsoladas bocas assopram o fogo-fátuo do amor. Este é o celeste inferno do desejo e da morte. Mulheres enleadas nas asas dos anjos gritam explosões de orgasmos. Choram e gemem. Amam e desesperam. Sussurram e morrem na fúria do amor. Olho a torção dos seus corpos possuídos pelo desejo divino. Deus é agora uma mulher aos gritos e engasgada com a perda da virgindade. Os anjos explodem em palavras bíblicas. O sémen na vulva divina tem a suavidade sedosa dos hermafroditas. Deus é agora a lâmpada íntima do prazer. Corpos suaves arrancam-se da fúria. Todo o desastre de amor é uma ruína interior. A minha mão conduz firme o cavalo varado pela mansidão da noite. As palavras sagradas cruzam-se dentro do meu delírio. Todas as casas engolem a vida, os sonhos e a memória. O tempo toma conta da narrativa. O tempo persegue as noites densas do álcool, separa os corpos da vida, embrulha a mágoa em mortalhas febris, proclama a eternidade do vício, grita a infâmia dos mortos, a coragem dos versos lapidados, o timbre curto de um raio de sol, o destino portátil dos limites. O tempo é o riso postiço de Deus e de todos os deuses e de toda a raiva divina e da revolta do sangue, por isso grita a razão da fantasia, a evidência dos teoremas, a vertigem das carícias, o deslize das duas estrelas que te alumiam os olhos. Sentimos a espera orbital dos planetas inseguros, negamos três vezes a verdade e a mentira, recompomos a natureza humana a partir da serpente e distribuímos segredos impessoais. As palavras mais pobres choram na sombra dos teus olhos. Subo de novo as escadas submersas da casa da minha aldeia. O rio enlouqueceu por entre as pedras da barragem. Amanhece. A sombra do arco-íris ainda é visível na minha pele. O relógio continua a marcar o tempo cada vez mais inútil. Acaricio novamente com as minhas mãos navegadoras a constelação tranquila do teu corpo. Grandes animais silenciosos tomam conta do vale. Um homem metamorfoseou-se em menino. O cavalo varado converteu-se em cavalo de bruma. E com ele chega o bom cheiro da madrugada. Tudo se torna por momentos mais claro. Rejubilemos

17
Out11

A generosidade e o descalabro

João Madureira

 

É fácil ser-se generoso quando não interessa. A qualidade dos governos vê-se quando chega a hora de tomar as decisões difíceis. Este executivo, posto perante o dilema do doente diabético, cortou-lhe ambas as pernas antes mesmo de ser necessário.

 

Fazendo um inventário do país, olhando para ele como quem observa uma casa, veremos que tudo está cada vez mais errado: o telhado empenou, a pintura e o estuque do interior desbotou, os caixilhos das janelas começam a apodrecer e os tijolos necessitam novamente de argamassa.

 

Convenhamos que esta casa chamada Portugal nunca foi propriamente uma mansão, no entanto chegou a ser uma habitação robusta, ainda que rasteira. Mas ao estado a que isto chegou, já não sabemos se vale a pena arranjá-la ou se será aconselhável arrasá-la e construir outra nos caboucos da anterior.

 

Os novos profetas do desenvolvimento espalharam aos quatro ventos que andavam a fazer um Portugal melhor e com futuro, desprezando a voz daqueles que tiveram a coragem de avisar que gastar o dinheiro que não se tem é sempre um mau caminho a percorrer. Eles, lá do alto do seu poleiro, cacarejavam que o país devia desprezar a voz dos políticos razoáveis.

 

Agora descobrimos que a realidade do nosso buraco financeiro nem mesmo à luz da razão e dos sacrifícios pode escapar. Os culpados estão todos espalhados estrategicamente pelos quadros dirigentes dos (in)distintos partidos, uns porque pediram o possível e o impossível e outros porque ofereceram aquilo que não tinham, recorrendo sempre a empréstimos com que hipotecaram o futuro do país e das próximas gerações.

 

Logo após o 25 de Abril, a esquerda revolucionária desmantelou todo o nosso tecido produtivo, nacionalizando a eito, enquanto ia espalhando o patético slogan de que o povo só tem direitos. Por causa desses abusos, Mário Soares viu-se obrigado a meter socialismo na gaveta.

 

Entretanto, os trabalhadores, seguindo a ficcional e delirante narrativa sindical, transformaram o poder da rua em demagogia pura, dando lugar à tragédia atual. Pois, logo após cada jornada de luta, os trabalhadores, à medida que iam vendo subir os seus salários, tapavam as orelhas aos avisos de quem fazia as contas e anunciava que o endividamento do Estado e das empresas já tinha ultrapassado o limite da sustentabilidade. Perante o descalabro, os distintos governos foram-se comportando como verdadeiros autistas e suicidas.

 

Cavaco bem pode agora clamar pela agricultura e pelas pescas, que não se livra da legítima acusação de que foi ele quem as destruiu. Guterres bem pode ir carpir os seus pecados veniais para a ONU que também não se livra de ter espargido o dinheiro dos fundos europeus para cima dos problemas, como quem derrama água em cima de azeite a ferver. Durão Barroso, vendo a casa a cair aos bocados, aproveitou a boleia europeia e fugiu para a gaiola dourada de Bruxelas, onde nada se decide e tudo se atrapalha, protagonizando agora o deselegante papel de moço de recados de Merkel e Sarkozy.  

 

Santana, o menino guerreiro, demonstrou como se pode chegar ao poder com a competência de um presidente de junta de uma freguesia da área metropolitana de Lisboa. O seu partido envenenou-lhe o futuro político com a oferta do cargo de primeiro-ministro e o presidente Jorge Sampaio, em vez de lhe fornecer o antídoto, reforçou a dose com a desculpa do desajuste da representatividade parlamentar em relação à realidade política. Daí resultou, sem que, convenhamos, viesse mal ao mundo, um autêntico golpe de Estado constitucional.

 

Sucedeu-lhe Sócrates que começou a governar de forma incisiva e rápida. Se calhar rápida demais para a realidade portuguesa. As suas decididas reformas encheram as ruas de toda a espécie de manifestações. A esquerda insultou-o de tudo. A direita enxovalhou-o. Quando os sindicatos vieram para a rua exigir a cabeça dos ministros mais corajosos, Sócrates titubeou na estratégia, dando o flanco à esquerda e à direita, ficando cada vez mais apertado entre um país enraivecido pelas manifestações e pelas greves, apoiadas à altura, ó ironia das ironias, pelos partidos mais à direita que inventaram, à pressa, o direito do povo à indignação.

 

Agora temos um governo que, mais do que nos governar, se comporta como uma comissão liquidatária. Enganou-se no prognóstico, mentiu nas promessas, titubeou, e titubeia a cada dia que passa, na implementação das suas propostas eleitorais. Corta aqui, corta ali, corta acolá. Mente aqui, mente ali, mente acolá. Esconde a inoperância debaixo do manto diáfano da hipocrisia. Insulta os adversários políticos, lava as mãos como Pilatos quando se trata de assumir as responsabilidades económicas e políticas de longo prazo. Assusta as pessoas com a história do Lobo Mau chamado Sócrates e encobre Alberto João Jardim que é um intrujão compulsivo e um chantagista político. Mas o cartão laranja lava mais branco do que o Omo. E como se tudo isto fosse pouco, encarnou o papel do maior perseguidor de funcionários públicos de que há memória. E vinga-se neles como se fossem judeus, negros ou alienígenas.

 

Com toda esta tragédia grega, à portuguesa, Portugal apaga-se a olhos vistos. O seu corpo começa a descontrair-se com a expectativa da derrocada. Perdido por cem, perdido por mil. Actualmente já ninguém antecipa o prazer, mas antes o alívio da dor. E olhem que isto é que é o descalabro.  

 

Estamos mergulhados num dilema: precisamos de dinheiro para mudarmos de vida e de paradigma, mas também precisamos de mudar de paradigma e de vida para ganharmos dinheiro.

 

Entretanto roubaram o 13º e o 14º mês aos funcionários públicos, por entre o sorriso sardónico do ministro da economia e o sorriso cínico dos empresários e banqueiros. O primeiro-ministro faz que chora. Mas os portugueses sabem agora que deslizam num plano inclinado e vão bater violentamente na parede. A perspectiva economicista da política voltou a triunfar. O salazarismo continua ativo. O PSD apronta-se para matar o país da cura, não sabendo que, inevitavelmente, perecerá com ele. Este governo comporta-se como um verdadeiro serial killer do tecido económico e social do país. Para já, o PM entretém-se em destruir a classe média portuguesa concentrada no funcionalismo público. A seguir irá em busca da restante que se encontra espalhada pelos outros sectores laborais. Pedro Passos Coelho abriu a caixa de Pandora. Nisso, reconheço, tem a coragem dos incautos. O problema vai ser fechá-la. 

14
Out11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

84 – Após o desaparecimento do António, a música romântica passou a ser vista pela rapaziada do bairro como agoirenta. “Música de fraca qualidade só pode dar azar”, diziam uns para os outros com cara séria. Os mais velhos contrapunham que a música nada teve a ver com a tragédia do António. Mas os jovens, como é normal nesta idade, não os escutavam. Para eles músicas foleiras tais como o “Calhambeque”, “A Namoradinha de um amigo meu”, “Ó tempo volta para trás”, etc., apenas podiam levar o ouvinte ou a ouvinte, à desgraça, à alienação e à submissão. 

Naquela altura, à falta de um ídolo popular de bairro, os jovens começaram a seguir vários programas de rádio, nomeadamente um que baseava a sua popularidade na ideia da formação e expansão de grupos de escutas pelo país fora e que emitia cartões de associados a quem os solicitava. O eclético programa musical ia para o ar todos os dias da semana, aos fins de tarde, e também aos sábados e domingos, de manhã. Radiodifundia a música que os mais distintos grupos de escutas lhe solicitavam e divulgava outra tanta como sugestão a ter em conta nas próximas listas de pedidos.

No bairro existiam dois clubes já organizados e com os respectivos cartões emitidos. Um era liderado pelo David e o outro era dirigido pelo Júlio. O grupo do David baseava as suas preferências musicais em Joe Cocker e Elvis Presley, muito por influência de um tio emigrante nos EUA que lhe enviava, de vez em quando, uns discos desses artistas. O grupo do Júlio era devoto dos Uriah Heep e dos Slade, que escutava em casa de amigos, especialmente de um que, por ser filho de um relojoeiro, tinha alguma facilidade em adquirir discos dessas bandas rock.

Estava visto que havia ainda espaço para a criação de outro clube para diversificar, e melhorar, a proposta musical do recente programa da rádio. Nesse sentido, o José reuniu um conjunto de amigos e fundou o terceiro grupo de escutas do bairro, com o criativo nome de Águias. Quando ouviram, pela primeira vez, sair do altifalante da telefonia os seus nomes, pularam de contentes.

Os Águias eram adeptos dos Beatles, Rolling Stones, Deep Purple, Jimmy Hendrix e Pink Floyd. Cotizavam-se para comprar alguns discos, organizar bailes e também para comprar revistas de música e banda desenhada que trocavam entre si.

Foi nessa altura que o José se fez amigo de um rapaz que se chamava Fernando e que era muito míope. O Fernando tocava viola e era um fanático do xadrez, dos matraquilhos e das histórias aos quadradinhos. Coleccionava tintins e lia boas revistas de BD franco-belga que um irmão emigrado em França lhe enviava pelo correio. Apesar de míope, o seu amigo jogava muito bem à bola e desembaraçava-se com muita destreza em todos os demais desportos.

Em casa do Fernando, a música era outra: Johnny Halliday, Michel Polnareff, Adamo e Gilbert Becaud, por influência do irmão emigrado. Também se ouvia Beethoven, Mozart e outros compositores clássicos, pois o seu pai era um admirador incondicional de música sinfónica, emocionando-se, quando a ouvia, até às lágrimas. Com ela e com um ou vários copos de tinto, de quem era também fã absoluto.

O seu amor pela música, pela literatura (pois era funcionário de uma biblioteca itinerante da Gulbenkian) e pelo vinho tinto fizeram dele um homem excepcional. Era mestre querido da banda filarmónica de Névoa, um bom professor de solfejo e interpretação musical nos diversos instrumentos, um pai extremoso e um marido dedicado. Gostava de comer, beber e de recomendar bons livros. Era admirador confesso de Victor Hugo e de Elio Vittorini.

Podemos dizer, sem menosprezo pela verdade, que o José tinha uma inveja sã das qualidades do Fernando. Mas o que mais admirava no amigo era a sua habilidade inata para o desenho. Reproduzia os desenhos que via nas revistas de BD com uma fidelidade assombrosa. Além disso era um barra em matemática.

Foi por tê-lo como exemplo que decidiu deixar crescer o cabelo. Tornaram-se inseparáveis. Entusiasmados, matraquilhavam numa caixa mais reduzida que as originais, oferecida pela Gulbenkian por altura do Natal e jogavam xadrez num tabuleiro também oferecido pela Gulbenkian em circunstância idêntica.

O José ouvia o amigo tocar lindos sambas de Vinicius de Moraes e ousadas baladas de José Afonso, naquela altura um músico proscrito, e uma que outra canção dos Beatles, por serem de mais fácil execução do que muitas outras de compositores que admiravam.

Chegava a passar em casa do amigo dias inteiros absorvendo toda a cultura de que era capaz. Iam para um campo próximo onde o Fernando, apesar da miopia e dos óculos com lentes muito graduadas que era obrigado a usar, conseguia ser sempre o melhor em campo, pois tanto jogava a avançado, como a médio, ou mesmo à defesa, chutava com os dois pés, fintava como o Pelé, o Eusébio e o Garrincha, fazia passes com uma precisão incrível, e equipa onde jogasse ganhava sempre os jogos, fossem amigáveis ou mesmo a doer. Decorava as letras das canções em inglês de lei e reproduzia-as com um rigor assinalável, sempre acompanhado pela viola, que dedilhava com muito esmero e elegância. 

Além de imbatível no futebol, nos matraquilhos e no xadrez, era exímio no pingue-pongue e no snooker. Tinha um sentido de humor muito apurado e gostava de partilhar tudo o que era seu com os amigos e conhecidos. Mas se era assim com os rapazes, na presença de raparigas ficava acanhado, fechando-se em copas, sugerindo mesmo uma inusitada rispidez. Elas, as marotas, por seu lado, retribuíam-lhe na mesma moeda, lembrando-lhe amiúde o seu aspecto bizarro devido às lentes dos óculos que lhe conferiam um certo ar de deficiente. Diziam-lhe que tinha ar de fuinha. Por isso, o Fernando não ia a festas ou a bailes, não saía com raparigas, passava dias e dias em casa lendo, ouvindo os seus discos, jogando com os amigos, desenhando e tocando a sua viola. E fazendo panquecas. Até na cozinha era um ás.

12
Out11

O Poema Infinito (69): o ponto incandescente

João Madureira

 

A perfeição do teu brilho é lenta. Todo o rigor da tua vagina é uma estrutura perfeita que aparece veemente sobre o sossego do meu olhar. O brilho do silêncio circunscreve a extensão do coito. Sobre o sacramento dos nossos corpos o tempo sobra. Recebo-te em vagares felizes. O prazer entra em nós como uma luz redentora. Trazes-me o espírito da fecundidade. Eu sei que a idade é uma tristeza. Mas a tristeza é um acaso. Respiramos o espaço do tempo. O vento e a chuva que se afasta da janela. A surpresa da terra. O afeto dos rios. A transparência dos dias. A limpidez da chuva. A diafanidade da janela. O sonho concreto de uma abstração. Respiramos a transparência do amor e da morte. Todo o tempo é uma saudade mortal. Todo o tempo é uma insustentável melancolia. Abre-se em nós o júbilo da incerteza. Somos como anjos ascéticos prontos a pecar pelo bem. Somos o lugar do esquecimento onde tudo se lembra. Somos o mundo alado dos pássaros de fogo. Somos o fogo sagrado de um deus ausente. Somos o terreno celeste do vazio e a espera e o esquecimento e o espaço invisível e a memória aberta das coisas esquecidas. Somos a água que tudo empurra para o rio. Somos o rio. Somos as suas margens. Somos a sombra antiga do sossego e a inóspita certeza do abandono. Somos a consciência infinita e a interminável fé das marés. Somos a expetativa apurada da indulgência e o sossego incendiado do desejo. Somos a incorruptível verdade das manhãs e o pasmo dos dias e do cansaço das noites e o ritmo acelerado da paciência e da ciência e da fé e da esperança. Somos o menor indício de Deus e o maior indício da complacência. Somos o fulgor específico da perseverança. Somos o exercício da invisibilidade do pensamento e a ausência pacífica da guerra. Somos a teimosia azul da solidão. A eternidade vive na fugaz memória do amor e na certeza da morte. O infinito é uma tarde de sol ardente. Por isso o tempo perde a sua imagem. Celebramos o lento júbilo das imagens, a penitência eterna dos domingos, a rigorosa face de todos os espíritos. Todas as imagens se expandem na direção da máquina fotográfica. Dizem que pensar em Deus nos afeta a fé. Por isso sofremos a antiga deflagração do Big Bang. Deus é a prefiguração da verdade do Big Bang. Deus é uma big band. Deus é Count Basie e a sua orquestra tocando The Complete Atomic Basie. O movimento recrudesce e tudo volta a crescer. Somos a alegria do sofrimento e o silêncio que nos escuta. Somos, apesar de dois, o júbilo santíssimo das trindades. E a língua empolga e o desejo transparece e os sentidos expandem-se num mar de sensações. Todo o ato de amor é uma surpresa expansiva. A luz volta a repousar nos teus olhos que são estrelas cadentes.  Sossegamos agora no jubiloso acorde de uma ejaculação íntima e de um orgasmo plácido. Somos. Somos apenas o ponto mínimo de um universo em expansão, mas irradiamos ainda a intensa cintilação da claridade da vida. 

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