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89 – Se quando o José principiou as férias ainda guardava dentro de si alguma réstia de fé, durante as férias de Verão perdeu o que dela restava. Entendamo-nos, não foi bem ele que perdeu a fé, foi mais a fé que o perdeu a ele. A fé já não é o que era, diluiu-se na imensidão dos livros, na vastidão da música, na necessidade instintivamente animal de possuir fêmea.
Sempre lhe tinha custado regressar ao seminário, mas desta vez o esforço foi imenso.
Já não era só uma questão de fé, era sobretudo o ambiente, a rotina, as palavras vazias de sentido, Deus vazio de sentimento, os evangelhos vazios de racionalidade, a liturgia estéril e vazia de objetivo. E, como se ainda fosse pouco, existia a monotonia dos espaços, das vozes, das relações.
José definhava a cada dia que passava. Passou a enfrentar tudo e todos. Começou a dar nas vistas pelos piores motivos: o desleixo e a provocação.
Principiou por contestar a infalibilidade de Deus e da sua Igreja, a comentar a mentira dos Evangelhos, a depreciar a propagandeada pobreza cristã, a criticar o celibato dos padres e todos os dogmas da fé católica: a virgindade da Virgem, a imortalidade do seu Filho, a vida eterna, a omnisciência e a omnipotência do Pai, que ele, qual profeta inconformado, definia como omninconsciência e omnimpotência. Defendia que a religião não devia pregar a obediência mas antes o contrário. Para ele, Cristo foi um revolucionário consequente, que combateu o Império Romano, que lutou pela igualdade e pela tolerância e vergastou os usurários e os vendilhões do templo e os falsos líderes do seu próprio povo.
Dizia, e escrevia, que a Igreja que Pedro fundou serviu apenas para instituir na terra o poder de uns quantos fanáticos religiosos que se limitaram a ser como todos os outros déspotas: criminosos de guerra, ladrões, sodomitas e difusores de mentiras piedosas. Toda a história da Igreja se baseia na falsidade, na opressão, na perseguição, no terror, na mentira. Dizia, com voz de visionário, que a Igreja era a instituição, não de Cristo, como apregoava, mas do Anti-Cristo, como o provam as chacinas praticadas pelos seus membros em nome de um Deus infalível e cruel.
Disfarçado de franciscano, com umas sandálias de pano e couro cru, enfiado num saco de serapilheira, utilizado para armazenar batatas barrosãs, em forma de túnica, de barba e cabelo comprido e esquelético como um cão, ostentando um bordão encimado por uma cruz de pau talhada à navalha, fazia retiros espirituais nas celas frias, alimentava-se de frutos silvestres, migalhas e água da chuva. Rezava como um fanático e escrevia como um herege, autênticas blasfémias impiedosas.
Em noites de maior delírio, visitava os seus colegas nas camaratas e enchia-os de filhos do demónio, mentirosos compulsivos, netos de belzebu, bisnetos do mafarrico, sodomitas, papa-hóstias e devassos. Muitos deles desculpavam-no porque viam nele um homem possuído pela necessidade de uma verdade perfeita. Outros prometiam entre dentes esmagá-lo aos pés, mas ninguém tinha a coragem necessária para bater num monte de ossos atormentado pela fome, pela sede e pela verdade absoluta. Ninguém bate num espírito. Mesmo que ele seja um provocador nefando.
De longe veio um padre exorcista para lhe arrancar o demónio do corpo. Por mor das dúvidas, ninguém lhe disse nada. Apresentaram-lho como um padre versado em teologia, um crânio ao serviço de Deus e da Madre Igreja a quem o José devia expor todas as suas dúvidas e incertezas. As certezas que as guardasse para o Mafarrico. Ele assim fez.
O exorcista, que também era um homem versado em psicologia, filosofia e história, depois de ouvir o José concluiu que tanta dúvida em Deus e tanta certeza nas heresias anunciadas pelo Tinhoso, só podiam ser obra do Arcanjo do Mal. E foi-se a ele com as suas vestes de exorcista.
Antes da terapia de choque eclesiástico, tentaram alimentá-lo convenientemente, mas o José vomitou tudo; tentaram vesti-lo condignamente, mas ele rasgou a roupa com as unhas e com os dentes; tentaram barbeá-lo e cortar-lhe o cabelo, mas ele mordeu-os como se fosse um cão raivoso. Deram-lhe banhos de água fria seguidos de banhos de água quente para o tornarem razoável. Celebraram missas em seu nome, tornaram a baptizá-lo, e ele sempre a teimar na sua litania.
Levaram-no a um médico especialista em doenças do foro psicológico e o seu prognóstico foi de que o José estava razoavelmente bem da sua saúde mental. Quanto ao resto, ele não se metia em discussões teológicas. À ciência o que é da ciência, a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. No entanto sugeriu que lhe levassem fêmea. O reitor do Seminário negou-se a autorizar tal ato. Disse que todos eles, tanto quanto sabia, sofriam da mesma privação e não insultavam Deus, a sua Igreja nem se transformavam em cães raivosos. Cada um tem de aguentar a sua cruz. Tem de se saber privar dos prazeres terrenos para ganhar o céu. O médico ainda argumentou que deviam entender a sua sugestão como uma prescrição médica. Deus e a sua Igreja, tanto quanto ele sabia, não proibiam os seus fiéis de se tratarem, de acederem aos tratamentos médicos para melhorarem a sua saúde. O senhor reitor contra-argumentou que a terapia do sexo não é propriamente um medicamento. Além disso, se permitisse desta vez a exceção, é bem possível que o seu seminário se transformasse num antro de possuídos. Por isso não podia abrir essa caixa de Pandora. Além disso, à Madre Igreja, tal como à mulher de César, não lhe basta ser séria, tem de parecê-lo.
Mas as estruturas têm sempre as suas boas almas de serviço. E foram elas quem, à socapa, introduziram na cela do José uma prostituta e vários cobertores para a pobre mulher não morrer de frio. O José, que podia estar um pouco desequilibrado pela busca da razão teológica, mas não tinha bebido o juízo, fez o que tinha a fazer com um desempenho muito para além do expectável em tais condições.
Mas a toleima não o largou. Foi então quando avançou o exorcista como a derradeira arma de combate a Belzebu. E somos testemunhas de que o sacerdote se preparou convenientemente para a sua função de expulsar os demónios por meio de orações instituídas pela Igreja. O esconjurador vestiu a sua sobrepeliz e a estola roxa e iniciou a série de orações, declarações e apelos O padre pediu encarecidamente a Deus para livrar o José do demónio através da "fórmula da súplica": "Deus, cuja natureza é sempre de misericórdia e perdão, aceita esta nossa oração para que este vosso criado, amarrado pelos grilhões do pecado, possa ser perdoado por vossa amorosa benevolência". Depois esperou um bocado. O José apenas se ria. Por isso, o padre tentou agora a "fórmula imperativa": “Em nome de Deus, exijo-te, demónio, que abandones o corpo do paciente. Sai ímpio, sai, amaldiçoado sejas, sai, ordeno-te, com todos os teus enganos, pois Deus sempre quis que o homem fosse o Seu templo".
Enquanto ia recitando, o padre borrifou de água benta todos os cantos da cela, colocou as suas mãos no paciente, fez o sinal da cruz tanto em si como no José, e tocou-o com uma relíquia católica, um objeto associado ao santo Agostinho.
Mas a verdade é que o José não sofria nem de desordens psicológicas, nomeadamente da síndrome de Tourette, que causa movimentos involuntários e explosões vocais; não era epilético, por isso não entrou em convulsões; nem era esquizofrénico e por isso não teve alucinações auditivas e visuais, nem paranóia, ou sequer ilusões.
Como mais tarde averiguámos, questões psicológicas como auto-estima e narcisismo podem fazer com que uma pessoa aja como uma "pessoa possuída" para chamar atenção. E foi esse o caso.
Já no final, vendo que o exorcista crescia para ele, depois de o ver constantemente a rir, pegou no seu bordão e espetou-lhe umas bordadas em nome da verdade e sentenciou: “Tu é que és o verdadeiro demónio. Vai e não voltes.”
disseminada pelos livros está a nossa vida e o ato de escrever enquanto a casa zumbe na noite à procura de mais um jovem poeta jovem que não se canse de decorar o traço fino das frases certas que choram muito depressa como se fossem igrejas sitiadas pelo acaso da vida enquanto tu dormes deitada sobre o livro do riso e do esquecimento coberta por lençóis gráficos que se incendeiam e gritam com saudades dos corpos delirantes como se o silêncio fervesse na ausência das crianças e na presença dos seus pais e enlouquecesse pensando de novo no jovem poeta jovem que foge dorido pela idade que há de ter e depois a minha memória levita infestada por brinquedos escondidos no choro diáfano do jovem poeta jovem que relê os ombros de pedra dos anjos que antes do pecado original arderam de sexo e luxúria como se fossem chuva divina antes de existir céu e inferno enquanto a bruma do tempo ergue a esquizofrenia das abelhas obreiras e das formigas rabigas e então as paredes dos templos estalam e os homens e as mulheres e os outros dormem sobre o vidro velho das esfinges e gravitam em redor dos corpos e da jovem loucura do jovem poeta jovem que agora sente saudades das saudades que há de sentir e os seus lábios secam devido aos sons produzidos pelo cornetim que apregoa a alvorada e então o jovem poeta jovem pronuncia frases trémulas que fazem arder o meu sonho que é uma saudade livre de saudade e então dizes que tenho de pôr as minhas mãos trémulas na noite e puxar pela noite e exteriorizar a noite sonhada pelo jovem poeta jovem que come a minha noite intranquila e se abriga nas casas solitárias das ruas decompostas pelo progresso e ainda mal acordado o jovem poeta jovem escreve um poema onde fala do comércio das almas praticado por deus e pelo demónio e no valor do seu peso específico na bolsa de valores de wall street enquanto os santos e os seus congéneres do mal empacotam as almas mais refinadas em papel de embrulho com estampas do vaticano e com cordéis de prata fina e depois o jovem poeta jovem desaparece do meu sonho dilatado pela ilusão mínima e pela angústia máxima e pela insistência abruta dos biólogos das almas que professam todas as religiões monoteístas que veneram os deuses e as suas alcunhas e os seus conceitos uniformes e entretanto o jovem poeta jovem revisitado descobre que as almas embrulhadas não toleram música espessa nem pianos elétricos nem peixes ofendidos pelos sermões de santo antónio nem as intrincadas partituras da bíblia e da tora e do alcorão nem do manifesto comunista e agora a alma de chet baker toca no trompete de miles davis the touch of your lips para o jovem poeta jovem num solo semilouco provocando uma súbita transfusão de almas na esquisita alma de uma testemunha de jeová que constrói nuvens de outras almas empenhadas em construir a eterna fluidez das flores murchas que se debruçam sobre o crepúsculo do meu corpo que sonha com o jovem poeta jovem que sou eu debruçado sobre a varanda da fábrica dos construtores de almas silenciosas vendo e ouvindo peixes perplexos por viverem na imensidão do mar sem disso se darem conta e o jovem poeta jovem nada no meio deles enquanto ativa certas palavras que se metamorfoseiam em girinos que mais tarde darão origem a anjos e demónios embrulhadores de almas alegoricamente perpétuas como perpétuas são as lágrimas do velho e o mar e do seu autor que também foi amigo do jovem poeta jovem quando ele não era jovem nem poeta nem tinha saudades das almas que agora transportam os astros e os homens e as mulheres e os outros que chupam palavras que chupam sílabas que chupam letras e que as mastigam e com elas fazem bolas como se fossem pastilhas elásticas que perfumam o mau hálito e dão sossego aos néscios que gostam de se sentar na sintaxe e decorar as mesas com lindos paninhos de renda rendados pelas suas mães que choram o triste tricotar das palavras do jovem poeta jovem que delas sente toda a saudade do mundo
A minha amiga G. bem teima para que eu leia alguns dos novos romances de Arturo Pérez-Reverte. Ela teima. E eu resisto. Não gosto de romances de aventuras. Embirro com eles. Prefiro de longe o irónico e deslumbrante “Tambor de Lata” de Günter Grass ou o encantador “O Retorno” da Dulce Maria Cardoso, dois magníficos livros que recomendo como quem se confessa. No entanto, algumas das entrevistas do romancista espanhol são relativamente interessantes. Não tivesse sido Arturo um repórter de guerra. Por exemplo, diz que a coisa mais importante que aprendeu com a guerra foi que não há fronteiras claras entre o bem e o mal. Pensa que vivemos actualmente numa sociedade estúpida, na qual tudo é considerado bom ou mau. Kadhafi era mau e os ecologistas e os amigos dos animais são bons. A vida é muito mais complicada do que isso. Na sua perspetiva todos estamos a saltar de um lado para o outro da linha.
Perguntaram-lhe se acredita que as lições de História podem melhorar a condição humana. Ele disse que sim, mas… “num lugar normal, de gente culta, de gente razoável. Na Península Ibérica nunca aprendemos e nunca aprenderemos a lição. Nunca. Somos muito maus alunos da nossa própria História”.
Questionado sobre se considera isso uma fatalidade, o escritor espanhol respondeu que “as fatalidades criam-nas os povos, com o seu caráter. É sobretudo uma questão de cultura.” (Sobre cultura aconselhamos a leitura do PS desta crónica.) “Tenho uma teoria. (…) Creio que o mundo ibérico – e o mundo latino, em geral – escolheu o Deus errado no Concílio de Trento, quando começou o protestantismo, a Igreja Católica teve de eleger entre um Deus protestante – comerciante, burguês, progressista – e um Deus católico – reacionário, triste, hierárquico. E a Igreja escolheu o Deus obscuro e sombrio. Perdemos aí a nossa oportunidade. Esse Deus católico marcou-nos desde então, colocou-nos nas mãos dos padres e reis e bispos e aristocratas durante muitos séculos. Foi assim que ficámos para trás. É uma questão de cultura (Sobre cultura, insistimos na proposta de leitura do PS desta crónica). Faltou-nos a cultura (Sobre cultura voltamos a aconselhar a leitura do PS desta crónica) burguesa.”
O homem afirma-se não crente. O que postos perante as atrocidades que se praticaram, e ainda hoje se praticam, em nome da religião, é uma bênção divina que eu também defendo.
Arturo Pérez-Reverte teve fé, quando jovem, mas perdeu-a quando observou aquilo que se passa na guerra, “quando vi as crianças, as violações, o ser humano a exercer a sua crueldade inata sobre os outros seres humanos. Vi a injustiça que há em tudo e percebi que não podia haver um árbitro a organizar isto. Era impossível. Percebi que só existem as regras do caos, de um mundo cruel.”
De tudo isto ia dando conta ao meu amigo R., quando, ao virar na esquina do Lopes, como quem vem da Eira, nos deparámos com um espetáculo de um gosto mais que duvidoso. Estou a referir-me aos cestos de pedras, intervalados por bancos de 2500 euros a unidade, que servem para os transeuntes ficarem sentados virados para as paredes e portas dos estabelecimentos da rua de Santo António, que foram instalados nos passeios para dividirem aquilo que estava dividido e que, com a intervenção recente de levantamento do piso, deixou de o estar.
O R., posto perante esta intervenção de mau gosto, questionou-me sobre se eu sabia de quem era a responsabilidade por esta “ingerência”, que, além do mau gosto evidente, custa milhares de euros à autarquia. Disse-lhe que desconheço de quem é a autoria, mas lembrei-lhe que me parece uma obra dispensável desde o início, além de, como já referi, custar muito dinheiro aos bolsos de todos os contribuintes, que, nestas como noutras coisas, nunca são tidos nem achados. É evidente que os empreiteiros têm muita força eleitoral. Especialmente nos contributos generosos que dão aos partidos políticos por esse país fora. Daí a nossa modernidade. Daí o nosso progresso.
A verdade é que o vice-presidente da nossa autarquia anda já em pré-campanha eleitoral, perseguindo furiosamente as obras, os eventos e as efemérides. Afinal, onde pára o senhor presidente? Será que pretendem que ele delineie a mesma encenação que o seu antecessor, quando deixou, dois anos antes do término do seu mandato, o seu delfim na presidência?
Pusemo-nos a olhar para aqueles cestos de plástico com aparas de coco à superfície, a reparar nos caros arbustos que plantaram lá dentro e veio-nos à cabeça uma ideia: a obra de arte só podia ser, na minha opinião, de um engenheiro agrícola que nunca trabalhou na área, ou, na opinião do R., de um arquiteto paisagista conservador e ligeiramente estrábico.
Vindo de baixo, ainda a rir-se por causa dos cestos, o F. convidou-nos para uma visita à exposição dos Lumbudus. Depois de comprar três garrafas de vinho tinto da Quinta de Arcossó, com rótulos de fotografias de vários membros da associação, fomos até à casa do R. comer umas fatias de presunto e queijo da serra, mas pagos do nosso próprio bolso, pois, ao que soubemos, alguns gabirús, com a desculpa de representação oficial, comem polvo à borla nas tendas da especialidade.
Depois tive outra epifania, como se uma voz viesse do além: “Está provado que a Câmara de Chaves não sabe o que o povo quer e o povo também já desistiu de tentar saber o que é que a Câmara verdadeiramente pretende.”
PS – O prometido é devido. Por isso, novamente regressamos à já célebre Agenda (Axenda) Cultural da Eurocidade Chaves-Verín, seja lá isso o que for, e sirva lá isso para o que servir (para alguns tachos, estamos em crer).
A cada mês que passa, a Agenda (Axenda), perde em música e espetáculos, para ganhar naquilo que a Eurocidade, através das Termas de Chaves – SPA do Imperador, se vai especializando e promovendo como a alma da proposta cultural de qualidade da nossa cidade: As palestras sobre pedologia e afins.
Durante o mês de outubro realizaram-se, nada mais nada menos, do que onze. A saber: Calos e calosidades: causas e tratamentos; A importância da roda dos alimentos; Osteoporose – fatores preventivos; Dor dos seus pés: causas e tratamentos; A menopausa e a alimentação; Dieta mediterrânea: um padrão de vida; Mitos sobre os pés; Os mitos da alimentação; A alimentação dos nossos filhos e netos; Doença das unhas: causas e tratamentos; Como nutrir o seu coração – doenças cardiovasculares; Um workshop: Pão e cereais, (inscrição a 7 euros). E uma caminhada: Dar aos anos mais vida, dar mais anos à vida, (Inscrições a 5 euros). É obra.
Cá para nós, que ninguém nos ouve, alguém na Câmara anda a tentar ganhar algum prémio internacional que distinga a originalidade e o pioneirismo em animação cultural em cidades de província. Se assim é, tem desde já o nosso mais caloroso apoio. Nós não só apoiamos a original ideia entusiasticamente como a subscrevemos por inteiro. Por muito que isso custe aos críticos do costume.
88 – O LP de Gilbert Bécaud chegou ao fim e, momentos antes de se levantar da cadeira para ir substituí-lo pelo Johnny Hallyday, de seu verdadeiro nome Jean-Philippe Smet, também conhecido como o Elvis Presley francês, disse na sua voz suave: “Xeque-mate”. O José ficou fulo, mas disfarçou muito bem. O José se fosse a ficar fulo e a admiti-lo por perder com o Fernando, tinha de ser seu inimigo, pois era vencido por ele em tudo. Iniciaram outra partida de xadrez. O anfitrião tornou à conversa.
O seu irmão do meio, vendo que o mais velho, por imposição partidária, andava metido em várias guerras sem conseguir definir bem o inimigo, resolveu questioná-lo diretamente, numa ocasião em que veio à metrópole em serviço oficial. O que é que o aconselhava a fazer, pois, como antifascista que era, estava igualmente contra a guerra. Mas também não se via enfiado numa farda a coçar os tomates enquanto os seus camaradas de armas matavam e morriam numa guerra sem razão e sem justificação.
O militar, triste como as manhãs de inverno chuvoso, disse-lhe que só existiam dois caminhos: ou desertava ou entrava em contacto com o Partido para as suas estruturas dirigentes estabelecerem as respetivas ligações com as distintas células que existiam espalhadas pelo país e pelas colónias. Depois era seguir o guião normal: sujeitar-se às orientações, deixar-se dirigir, acatar com espírito de militância as diretivas do coletivo partidário. Mas o irmão do meio insistiu com o mais velho que não conseguia fazer o papel de traidor passivo. Parecia-lhe uma iniquidade.
O irmão do meio em discurso direto ao interlocutor: “Isso é bom para ti que és obediente e disciplinado. Aceitas tudo o que o Partido te diz sem discutires uma vírgula que seja. Eu não consigo ser assim. Ou estou dentro ou estou fora.” O irmão mais velho: “Mas…” O irmão do meio: “Comigo não há mas nem meio mas. Comigo é sim ou sopas”. O irmão mais velho: “Tu é que sabes. A vida é tua. Mas se optares pela deserção tens de te preparar para não vires a Portugal durante muito tempo. Vais deixar de poder ver a família. Vais ter de abandonar o curso. Vais ter de viver como um qualquer emigrante, com a agravante de que se te apanham por cá em visita à família prendem-te e despacham-te, sem dó nem piedade, para a pior frente de combate, onde se morre todos os dias vítima das minas antipessoais ou anticarro. Mas tu é que sabes. A vida é tua. E desengana-te se pensas que podes contar lá fora com o apoio do Partido. O Partido não liga a desertores.” O irmão do meio: “O teu partido é muito solidário. Dá-lhe os meus melhores cumprimentos.”
O irmão do meio do Fernando ainda fez a recruta, tendo em vista conseguir não ser mobilizado para o ultramar, mas quando viu o seu nome na lista dos convocados para a Guiné, nessa mesma noite meteu num saco o mínimo de roupa possível, que era toda a que tinha, e pôs-se a caminho de França sem passar por casa dos pais.
Em Paris, começou a labutar como operário numa fábrica de automóveis. Mas lá trabalhava-se a valer. Por isso, e devido aos estudos que tinha e à sua visão antifascista e de esquerda, tentou ir para um qualquer país de Leste trabalhar nalguma rádio ou coisa do género. Experimentou falar com o Partido. E o Partido veio até ele na figura de um homenzinho pequeno e roliço que escutava muito bem mas não dizia palavra. No final sempre explicava: “Vou contatar a direcção e logo lhe digo alguma coisa, camarada.” Cinco vezes o desertor à guerra colonial, tanto na perspetiva do regime como na perspetiva do Partido, falou com o homenzinho e cinco vezes o homenzinho lhe repetiu a resposta: “Vou contactar a direcção e logo lhe digo alguma coisa, camarada.” Um dia soube, por linhas travessas, que nem sequer o admitiam como simpatizante, quanto mais como militante. O Partido, tal como Roma, não pagava a traidores.
Por isso, o irmão do meio do Fernando começou a escrever para a família desde França sob pseudónimo, trabalhava como operário especializado na fábrica de carros, enchia-se de namorar com francesas, portuguesas, espanholas e italianas. Comprou um carro, alugou um apartamento condigno, comprou boa música, muitas revistas de BD que, depois de utilizadas quanto baste, enviava ao Fernando sempre com os olhos rasos de água.
Com os olhos rasos de água ficou ainda o Fernando e o José também fungou o nariz uma ou duas vezes. Quando olharam um para o outro, e ainda antes de beberem mais um copinho de vinho fino, o Fernando disse para o José: “Xeque-mate”. De novo o José ficou fulo, mas tornou a disfarçar muito bem. O José, como já dissemos, se fosse a ficar fulo e a admiti-lo por perder com o Fernando, tinha de ser seu inimigo, pois era vencido por ele em tudo.
Preparavam-se para iniciar mais uma partida de xadrez, quando o senhor Carvalho tossiu nas escadas.
Desta vez, o pai do Fernando não cantou o fado nem regeu a sua orquestra imaginária. Desta vez falou de livros. Ou melhor, falou de dois livros. O senhor Carvalho quando falava de livros falava sempre de dois livros: “Os homens e os outros” de Elio Vittorini e “Os Miseráveis”, de Vitor Hugo.
No primeiro fascinava-o o ponto de vista sentimental, onde o personagem é dilacerado pelo amor impossível em relação a Bertha, mulher casada que não pode decidir abandonar o marido. Depois falava da luta entre fascistas e antifascistas, numa relação de ódio e morte. E tão desumana que vários resistentes antifascistas, depois de vários atentados mortais, são feitos prisioneiros e lançados vivos aos cães que os devoram com requintes de malvadez, perante o olhar indiferente dos maus, que são os fascistas. “Todos eles são maus, todos, todos, todos”, dizia o senhor Carvalho incendiado e contaminado pelo romance do escritor italiano.
“Os homens e os outros” foi escrito no meio da luta partidária. Por isso, o romance é uma celebração da força. E o Fernando, dentro do seu rigor, lembrava sempre ao senhor Carvalho: “Então a cena dos cães não acontece porque um vendedor, em auto-defesa, matou a cadela preferida do general Clemm e, por isso, foi lançado aos cães do militar para pôr eles ser dilacerado, sob o olhar regalado do líder fascista?”
“Vai tudo dar ao mesmo, Fernando. Todos os fascistas são maus, todos sem exceção”. E, entusiasmado, cuspindo alguma saliva, mexendo a papada e agitando as suas gordas mãos, contava sempre a cena onde o En 2, o personagem principal, e Bertha, a sua indefinida amante, assistem à cena monstruosa onde alguns cadáveres de civis mortos são lançados na calçada em retaliação pelos alemães abatidos numa emboscada. Entre eles estavam uma menina, um velho e dois rapazes de quinze anos.
Cansado, pelo agitar do corpo e pelo vibrar da mente, pedia um copo de tinto à esposa e punha-se seguidamente a falar de Jean Valjean, a figura que se destaca em toda a história de “Os Miseráveis”, preso por ter roubado um pão para alimentar a família e que, em consequência da sua tentativa de evasão, vê a sua pena permutada para trabalhos forçados nas galés. Um dia Jean Valjean é libertado. O bispo recolheu-o. Durante a estadia, Jean Valjean repara no móvel do quarto do bispo, pois nele são guardados os castiçais e um faqueiro de prata. À noite, enquanto todos dormem, Jean Valjean levanta-se, pega no faqueiro de prata e vai-se embora com ele. Mas não vai longe.
No dia seguinte, três polícias levam-no a casa do bispo para entregar o faqueiro e certificar-se de que a história do Jean Valjean corresponde à verdade. Depois aparece na história uma menina e Javert, um inspector de polícia, que não mais deixa de o perseguir.
“A história é a puxar para o dramático, mas o que no livro é interessante, e inesquecível, até mais do que Jean Valjean, é a sanha perseguidora do polícia, como se fosse um cão de caça. Sempre com os olhos postos na presa.” Depois parava de falar e fazia que adormecia. Ou adormecia mesmo. Quando assim acontecia, a dona da casa dava a noite por terminada.
Quando saiu de casa, o José, ficou com pele de galinha e com os cabelos em pé. Primeiro pensou que por ali andava um lobo e a respectiva família. Quando olhou para trás viu um vulto aproximar-se: era o Virtudes. “Donde vens?”, perguntou-lhe. Ele disse que não lhe podia dizer. “Coisas de bruxos, caro José.” Mas como o cemitério não ficava longe e a igreja também não, pensou que talvez o seu amigo estivesse a falar verdade. E a prudência dizia-lhe que se fizesse desentendido. Acompanhou-o até uma encruzilhada onde um macho taludo o esperava inquieto espanando moscas notívagas com a cauda. Viu-o montar, olhou para os seus olhos carregados de escuridão e foi para casa.
Na segunda-feira, aconteceram três casos paradigmáticos que confrangeram a vizinhança e a cidade. Uns mais do que outros, claro. Mas todos eles com um elo de ligação: o de serem vizinhos da família Carvalho. O bufo da Pide queimou as mãos num incêndio ficando praticamente paralisado. O filho do seu vizinho do lado, dono de uma sapataria, foi abalroado e esmagado dentro da carrinha que conduzia, pelo comboio quando tentava atravessar a passagem de nível. E outro vizinho, que vivia paredes meias com a linha do comboio, foi preso por estuprar a sua filha mais nova, depois de já ter estuprado tudo o que era rapariga da família.
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