87 - Era certo e sabido que se o Fernando começasse a dedilhar o fado da Samaritana, o pai, no seu curioso sotaque minhoto, começava a cantar. E cantava tão bem, ou tão mal, como o João Braga, e isso pela singela razão de que ambos e dois não eram cantores do fado de Coimbra, que sendo também denominado fado, obedece a outros critérios de qualidade e gosto em tudo distintos do fado de Lisboa, que nem canção de Lisboa é, e muito menos portuguesa, mas de um seu bairro, conhecido, sobretudo, pela boémia e pela má vida.
Amanhecia quando a tertúlia desmobilizou, ou para as suas camas, ou para as respectivas casas.
À noite, por causa do bom tempo, da graciosa afeição do casal e devido ao ambiente acolhedor, a tertúlia da noite anterior voltou àquela casa com toda a ilusão do mundo. O primeiro a chegar foi o José.
Enquanto ouviam o A Saucerful of Secrets dos Pink Floyd no aparelhómetro discográfico e enquanto folheavam, com cara de caso, um Pilote repleto de BD de grande qualidade (Lone Sloane de Philippe Druillet, Tenente Blueberry de Charlie e Giraud, Astérix de Uderzo e Goscinny, Philémon de Fred, entre outros), o José, olhando de lado para o seu amigo, perguntou de chofre: “Qual a razão porque o teu irmão emigrou para França?” O Fernando limitou-se a ficar calado. Depois olhou para o José e fez-lhe reparar na qualidade dos cenários das aventuras desenhadas por Druillet, onde o seu herói de ficção científica se insere em cenários de estruturas gigantescas inspiradas na Art Nouveau, nos templos indianos e nas catedrais góticas, daí o apelidarem de “arquiteto de espaços”.
“Fantástico!”, exclamou o Fernando. “Fantástico!”, concordou o José. “O que fazia o teu irmão antes de emigrar?”, insistiu o José. “Estudava engenharia,” respondeu o Fernando sem olhar para ele. “Então porque emigrou?”, insistiu o José. O Fernando limitou-se a ficar calado. Depois olhou para o José e fez-lhe reparar na imensa qualidade dos desenhos de Giraud, onde o Oeste selvagem, que se estende desde as pradarias dos Estados Unidos até ao Novo México, aparece admiravelmente recriado em todo o seu ambiente e paisagem.
“Fantástico! Fantástico”, exclamou o Fernando. “Fantástico! Fantástico!”, concordou o José. “Mas se o teu irmão andava a estudar porque raio é que resolveu emigrar. Os emigrantes que eu conheço são todos iletrados ou pouco mais do que isso. De certeza que não foi por motivos económicos que ele se pirou para França. Deve existir outra razão. E forte. Mas qual?”, insistiu o José.
Mais uma vez o Fernando se limitou a ficar calado. Novamente olhou para o José e fez-lhe reparar no grande talento gráfico das pranchas de Uderzo e nos excelentes textos do mestre Goscinny, repletos de humor, tendo por base os trocadilhos, onde os portugueses (os lusitanos) são baixinhos e educados (Uderzo disse que todos os portugueses que ele conhecera eram assim).
“Fantástico! Fantástico! Fantástico!”, exclamou o Fernando. “Fantástico! Fantástico! Fantástico!”, concordou o José. Entretanto o lado A do LP dos Pink Floyd acabou e o Fernando levantou-se para pôr a tocar o lado B. Sentou-se novamente e pôs-se a olhar para as páginas coloridas do Pilote, impressas em bom papel branco brilhante e acetinado, muito diferente do utilizado para a impressão do Tintim português, que era baço e rudimentar, muito parecido com o utilizado para imprimir os poucos e maus jornais diários.
“Queres um copinho de vinho fino?”, perguntou o anfitrião. “Pode ser. Vai mesmo bem com esta música do A Saucerful of Secrets”, respondeu sorrindo a visita. O Fernando, vindo da cozinha com dois cálices de Porto, lembrou: “Comprei este disco porque li que A Saucerful of Secrets é a melhor demonstração de como do caos sonoro pode surgir a música mais celestial e melódica, apenas porque os seus autores assim o desejaram. De facto assim é.” Depois olhou para o José e levantou o copo. O José fez o mesmo. Brindaram. E no fim do cerimonial beberam o copinho de vinho fino de um só trago.
O José, obsessivo na sua teimosia, voltou à carga: “Estou em crer que também não existe por aí nenhum negócio de saias. Penso que ele não era rapaz para se pôr a andar depois de ter engravidado a filha de alguém importante. Nem o teu pai consentiria tal dislate. Sois uma família de bem. Comportamentos desse tipo são típicos dos filhos da mãe. Então porque é que ele foi a salto para França?” O Fernando mais uma vez ficou em silêncio. Tornou a olhar para o José e fez-lhe reparar no ambiente onírico da BD do Fred, no tom geral da série, no seu realismo fantástico retratando as andanças do jovem Philémon, em aventuras surreais com criaturas estranhas em lugares estranhos, daí o ter sido considerada uma dos mais poéticas e originais BD de todos os tempos.
“Fantástico! Fantástico! Fantástico! Fantástico!”, exclamou o Fernando. “Fantástico! Fantástico! Fantástico! Fantástico!”, concordou o José. A revista chegou ao fim. E o LP também. O Fernando tornou a encher de novo os dois cálices de vinho fino. Novamente brindaram e novamente emborcaram o vinho de uma só golada. À falta de música e de BD, o Fernando foi buscar o tabuleiro de xadrez e puseram as tropas nos seus devidos lugares. Rei branco em casa preta, rei preto em casa branca e por aí fora. Com uma inesperada saída de cavalo, o Fernando resolveu satisfazer a curiosidade do amigo.
De certeza que já tinha ouvido falar da guerra colonial. Em sua casa eram todos contra ela, como era fácil de deduzir. Entretanto lembrou-se que no andar inferior o bufo podia pôr-se à escuta e resolveu colocar um disco no aparelhómetro musical. Gilbert Bécaud serviu muito bem. Depois voltou ao xadrez e à conversa.
O seu irmão mais velho, que já era engenheiro civil quando foi para a tropa, que também era militante do PCP, e por isso mesmo era contra a guerra colonial, viu-se na estranha situação de, sendo contra a famigerada guerra, ter de participar nela por imposição partidária. Ele tinha intenção de fugir, mas o partido impôs-lhe a atitude correta e a orientação geral: um comunista não desertava, ia para a guerra combatê-la por dentro. Um comunista lutava ao lado do seu povo, esclarecendo os soldados, pois ele era um oficial miliciano, e também as populações da iniquidade da guerra. Devia abster-se de matar o “inimigo”, devia evitar o confronto, devia estabelecer contacto com os camaradas guerrilheiros dos movimentos de libertação e ajudá-los naquilo que fosse preciso. Isto em teoria até podia funcionar, mas na prática andava muito perto da traição à pátria e aos camaradas de armas. O seu irmão mais velho obedeceu e tentou comportar-se dentro dos limites do razoável para a situação. O Partido apenas autorizava uma deserção: quando ela era feita directamente para os movimentos de libertação, levando o desertor consigo tudo o que pudesse: armas, dinheiro, alimentos, homens e informação. Só que isso, o seu irmão mais velho não conseguiu fazer, por imperativo de honra. Ainda tinha algum sentido do dever, algum fervor patriótico, alguma consciência de Estado. Por isso ficou entalado entre a tradição e a traição. Ficou dividido entre o dever e a militância. Entre o seu mundo e um mundo que era totalmente o inverso. Com um exército destes qualquer país perdia qualquer guerra. Limitou-se, por isso mesmo, a escapar aos combates. A esperar, sentado, o lento decorrer do tempo. A aguardar a passagem dos dias. Mas essa era a orientação do Partido. Era preciso perder a guerra para o país ganhar a liberdade. Contradição terrível. Mas as ideologias totalitárias são assim mesmo, absurdas dentro da sua coerência paradoxal.