95 – O José passou cerca de um mês no hospital a recuperar dos ferimentos e outro mês em casa a reconquistar o ego. Das contusões e dos ossos fraturados recobrou sem mazelas evidentes. Já a recuperação dos rasgos na pele fiou mais fino.
Os médicos coseram e trataram os cortes como souberam e puderam. E muitos que eles foram. Uma costureira não teria feito melhor. O filho do guarda Ferreira ficou para toda a vida com 25 suturas resultado de outras tantas facadas e coronhadas. Talvez tantas como Jesus se tivesse sobrevivido aos ferimentos, ao flagelo da Via Crucis e à posterior crucificação. O ponto alto do sacrifício do Cordeiro de Deus.
Ninguém sabe bem como depois de ressuscitado, Jesus, agora Cristo, apareceu aos seus apóstolos. Disso não há registo algum. Nem oral, nem escrito. E sobre o assunto a Bíblia também nada adianta. Mas estamos em crer que se o filho de Deus, e da Virgem Maria, tivesse sobrevivido era bem capaz de ter ficado como o José, com o corpo pejado de extensas cicatrizes e linhas de pele suturadas com agulha e guita apropriadas. Valha-nos ao menos isso.
À primeira vista, o José apenas patenteava uma cicatriz sobre a sobrancelha esquerda, o que lhe dava um ar verdadeiramente aproximado ao Django, um herói dos filmes de Western spaghetti muito apreciado na altura. Os amigos, quando o viam aproximar, assobiavam-lhe as melodias aprendidas nas matinés do Cine-Teatro e faziam que disparavam armas de fogo, soprando no dedo indicador como se ele fosse o cano de um revólver justiceiro.
Ele sorria e retribuía o assobio e um que outro disparo. Também não se esquecia de bufar na direção do seu indicador, imitando rigorosamente a postura, o charme e a coragem do herói cinematográfico.
Escusado será dizer que o José se tornou uma lenda na cidade. A sua coragem e a sua determinação passaram a ser admiradas pelas pessoas de bem. Muitas delas pediam-lhe para exibir as “medalhas”, o que ele fazia sempre que o local e a assistência permitiam a apresentação das suas reverenciadas cesuras.
A mãe aconselhou-o a matricular-se no Liceu para acabar o sétimo ano. Lá matricular matriculou-se, mas não ia às aulas. Começou a achar piada à boémia estudantil. Fundou um grupo de poetas e com eles começou a visitar diversas casas de boas famílias que diziam apreciar poesia e principiou a frequentar tertúlias vagamente culturais e saraus militantemente intelectuais.
Inspirado na leitura de distintos poetas portugueses e estrangeiros passou a escrever poesia espiritual. Era capaz de demorar um dia a escrever uma quadra, desperdiçar outro a alterá-la de fio a pavio e ainda consumir um terceiro a riscar palavra a palavra até nada dela restar.
Incapaz de ajeitar versos que enaltecessem com talento Deus e toda a sua Corte Celeste, virou-se para a poesia trovadoresca, mas as loas saíam-lhe pífias e pleonásticas. Por vezes lia-as aos amigos nos dias das reuniões ordinárias do grupo e, apesar de muitos deles lhe elogiarem a rima e o acerto de algumas figuras de estilo, ele não se sentia confortável e rasgava-as ali mesmo, na presença de todos, para dessa forma radical serem testemunhas privilegiadas da sua busca da qualidade e da perfeição, argumentando que um bom poeta demora anos a fazer-se, além de ficar caro em papel deitado ao lixo e tinta gasta em escrever coisas inúteis e isentas de genialidade.
Muitos dos amigos argumentavam que o ótimo é inimigo do bom e que também os génios nunca se deram conta que o eram e por isso é bem possível que, também eles, tivessem atirado coisas geniais ao lixo pensando que eram apenas boas e guardado coisas apenas boas pensando que eram geniais, pois não existem bons juízes em causa própria. Além disso os génios são sempre tão modestos que, só depois de mortos e enterrados, é que se lhes reconhece o mérito. E nem sempre.
Lembravam-lhe que os génios só conseguem esse estatuto quando já são apenas memória, uma memória quieta e afável que põe qualidade numa obra que até ao momento da descoberta dos críticos era apenas um conjunto disperso de bons poemas.
A crise de inspiração fê-lo penar e meditar muito. Meteu-se em casa e começou a magicar nas causas das coisas, nomeadamente na sua falta de jeito para a versalhada. Depois de muito cogitar chegou à brilhante conclusão de que o que lhe estorvava o génio e o jeito eram as suas vivências. Até ali apenas tinha convivido com gente analfabeta e pobre. Dali nada podia surgir como verdadeira inspiração para uma poesia realmente poética.
Poesia a enaltecer a pobreza e as suas virtudes era coisa para burgueses, católicos pindéricos e padres. A verdadeira poesia, desde os primórdios, enaltecia o amor e as relações amorosas. Era aí onde residia o cerne da questão.
Mas para cantar o amor e as relações carnais eloquentes tinha de experimentar. A professora Marília bem explicava nas aulas de filosofia: Primum vivere, deinde philosophari. E ele tinha vivido tão pouco que a sua filosofia tendia a sair-lhe sem sentido e despida de ideias. E, bem vistas as coisas, a poesia é a forma superior da filosofia. A poesia, à semelhança da filosofia, tende a do nada completar tudo e vice-versa, que é a forma mais nobre de redimir a condição humana. Pois a vida dos homens resume-se a falar, comer, trabalhar e fornicar. Da comida e do trabalho tratam as ciências exatas e as que lhe estão próximas, do falar e do fornicar trata a poesia e a filosofia.
Claro que o José podia, com a experiência que tinha, dedicar-se a escrever romances ou coisa que o valha. Mas ainda era jovem e os romances dão muito trabalho. Tem de se passar muito tempo com a caneta na mão, tem de se alinhavar muito enredo, tem de se organizar um esquema ou vários, tem de se inventar personagens, tem de se passar tempos infinitos a escrever e a corrigir, a corrigir e a escrever e, na maioria dos casos, depois de tanto porfiar, o calhamaço, que deu uma trabalheira imensa a escrevinhar, ou vai para a gaveta ou para o caixote do lixo.
O José, todos o sabemos, até era um rapaz corajoso e, convenhamos, moderadamente trabalhador, só que não se sentia naquela altura com coragem para enfrentar tamanha tarefa. Daí o ter optado pela poesia. Um poema escreve-se num dia, gasta-se uma folha de papel, ou duas se for revisto, e se não prestar, a desilusão não é muita. Nem o trabalho, concordemos, pois rasgar uma folha é fácil, já rasgar quinhentas folhas datilografadas é quase um enforcamento por empenho próprio.
Por isso escrever poesia dá algum estatuto, faz bem ao ego e não nos torna escritores obsessivos. Outra coisa bem distinta é passarmos anos a escrever um romance e depois, pelas razões já anteriormente apontadas, termos de sentir que todo aquele trabalhão foi um desperdício de ideias, tempo e energia.