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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

09
Dez11

O Homem Sem Memória - 92

João Madureira

 

92 – Foi então que o guarda Ferreira, posto pela Dona Rosa entre a espada e a parede, resolveu resgatar o filho.


A busca tinha de parecer legal e foi-o. Mas antes houve necessidade de o pai do José fazer alguns contactos. E o que tinha mais à mão era a sua relação com a GNR de Névoa. Muitos dos agentes da autoridade eram seus amigos ou conhecidos e o sargento era mesmo gente lá da terra. Um camarada de armas dos tempos da Índia.


O sargento primeiro ouviu e calou. Foi sensível aos argumentos e à situação desesperada em que se encontrava o guarda Ferreira, isto para não falar do estado lastimável em que se achava a Dona Rosa, a filharada, a casa, a lavoura e a criação. Fácil era de concluir que o filho também não se encontrava nada bem.


Bem vistas as coisas, o filho de um agente da autoridade tem de ser um exemplo para a sociedade, não pode colocar-se ao lado dos prevaricadores e dos facínoras. Não pode ser visto como um modelo subversivo. Os filhos dos agentes da autoridade têm de ser os primeiros a respeitar a lei, a ordem, o país, os seus dirigentes e toda a hierarquia social, política e religiosa. Senão onde é que isto tudo pode ir parar?


O José tinha dado um passo enorme no caminho da perdição, por isso urgia resgatá-lo das mãos do demo e dos seus agentes mais inflexíveis.


O sargento do posto da GNR de Névoa, nesse mesmo fim de semana, descansou o seu ex-camarada de armas dizendo-lhe que dali a quinze dias seria feita uma rusga ao bairro dos indigentes. Que descansasse. Ia ele mesmo falar com o tenente para que fizesse um pedido de requisição dos serviços do guarda Ferreira para a operação.


Bem, o pai do José saiu do posto disposto não só a dar um presunto ao seu amigo sargento, mas antes a oferecer-lhe o reco inteiro e ainda os prestimosos serviços da Dona Rosa para confecionar todo o fumeiro, arte em que era exímia.


Ao sargento não lhe tinha saído a taluda, mas tinha-lhe tocado a aproximação. Não só fazia um grande favor a um conterrâneo seu subordinado, como ia limpar uma zona da cidade extremamente problemática, onde já há muito tempo as instituições do poder local pediam uma intervenção exemplar. O pretexto vinha mesmo a calhar. Era a gota de água que fazia transbordar o copo.


Estava ciente de que o tenente do posto fazia constantemente o seu veto de bolso relativamente a uma operação desta envergadura. Não porque fosse um homem de paz, um conciliador social, um estratega em busca da melhor oportunidade. Não.


O tenente da GNR de Névoa era um cobarde, tinha medo do lumpen porque sabia que aquela gente matava sem dó nem piedade. Para os indigentes não existiam nem barreiras da autoridade, nem impedimentos religiosos, nem complicações familiares. Para eles a vida era clara como água. De um lado estavam eles e do outro estavam… os outros. Todos os outros. Sem exceção. Quando punham o inimigo na mira da espingarda atiravam a matar.


Ele sabia-o bem porque a sua mãe era uma cigana resgatada aos seus pelo putativo progenitor que teve de fugir para parte incerta para se pôr a salvo do fio apurado das navalhas ou dos tiros certeiros das caçadeiras.


O tenente da GNR tinha as qualidades todas. Era, além de cobarde, um devasso, um trampolineiro e um jogador inveterado. Jogava muito, mas perdia muito pouco. Como tanta sorte não existe, nem mesmo ao jogo, está visto que ganhava nas cartas porque o deixavam ganhar. Todos sabiam, e os seus companheiros especialmente porque o tenente da GNR lho lembrava a miúdo, que, como principal agente da autoridade em Névoa podia encerrar a sociedade nevoense por causa do jogo, prender os batoteiros por causa de jogarem a dinheiro, aferrolhar os putanheiros por conduta imoral, perseguir contrabandistas e opositores ao regime porque eram bandidos aos olhos da lei e aos olhos de Deus.


Mas em vez de os prender, ou perseguir, convivia com eles, jogava com eles, contrabandeava com eles. Como eram tantos, e tão eficazes, o tenente da GNR de Névoa, em vez de os combater, juntava-se a eles. Por isso ganhava no póquer, tinha sempre a casa cheia de tudo e fornicava quem lhe apetecia lá nos bairros pobres, ou ainda nas famílias que por alguma razão se viam manietadas mas mãos do belzebu disfarçado de agente de autoridade.


Apesar disso, ou por isso mesmo, era muito apreciado pela sua generosidade e pela sua fé. Era mesmo dado como exemplo de caridade e virtude cristãs. O seu nome era sempre o primeiro de qualquer lista de angariação de fundos para as inúmeras obras sociais, o mais falado na missa por altura das festas religiosas devido às suas generosas oferendas em alimentos e roupas. Fazia mesmo questão em ter o seu próprio bodo aos pobres. Os seus pobres eram-lhe mais fiéis do que ao próprio Deus. Vestia-os, alimentava-os, batizava-lhes os filhos. Muitas delas, diziam as más-línguas, bem lhe podiam chamar de pai, que não erravam.


Para não fugir ao lugar-comum, era também dado à bebida. Em casa comportava-se como um carrasco, batia nos filhos com uma chibata e malhava na mulher como em centeio verde sempre com as suas luvas brancas de cerimónia. Na rua era só sorrisos e abraços. Confessava-se todas as semanas, ia à missa aos domingos e comungava com uma cara tão angelical que mesmo os anjos e santos, espalhados pelos diversos altares da igreja, coravam de vergonha. Era habitual vê-lo chorar lágrimas autênticas enquanto tentava engolir a hóstia sagrada sem lhe tocar com os dentes para não pecar.


No momento em que o sargento da GNR de Névoa entrou no seu gabinete e lhe propôs a rusga acordada com o pai do José, o tenente assustou-se e disse que tinha de pensar melhor no assunto.


O sargento, olhando-o bem nos olhos, informou-o de que esta diretiva tinha sido imposta, com data a definir, para o mês que estava a decorrer, pelo comando-geral após solicitação do presidente da Câmara a pedido de várias famílias influentes, da associação de comerciantes, de distintas associações de caridade e de defesa dos bons costumes e, sobretudo, da polícia política, do próprio bispado de Vila Real e do reitor do seminário de onde o José foi expulso.


“Então dá-me até amanhã, para fazer as minhas diligências, e logo definimos a data, os meios e a logística”, ordenou o senhor tenente. O sargento obedeceu, que remédio. Sabia que o tempo que o seu superior lhe pedia era para avisar os seus da investida. Mas o que podia fazer? O que interessava era resgatar o filho do seu colega, limpar os bairros da cidade daquela escumalha e, por último, se a operação fosse um sucesso, ganhar uma medalha e ser promovido.


O seu filho, liberto da guerra colonial por uma cunha certeira e bem untada, estava na altura certa para ingressar na universidade. Ele podia ser GNR, mas o seu filho ia ser doutor. Para isso era necessário dinheiro. O que na sua situação só podia significar uma de duas coisas: ou ser promovido ou ter de se submeter aos ditames do tenente. A corrupção era uma forte atrativo, tinha de reconhecer. No entanto, ele ainda não estava para aí virado. Mas o futuro a Deus pertence.

07
Dez11

O Poema Infinito (77): o canto das mulheres desassombradas

João Madureira

 

As mulheres desassombradas atravessam a carne enquanto sonham com as subtilezas da suavidade magnífica das suas vulvas. E cantam canções impuras e rutilantes que anunciam a desgraça da felicidade antiga e o orvalho inocente das roseiras e, inclinadas sobre os violinos, abrem os seus corpos que são pão, maçãs e vinho mosto. Sobre o meu corpo desce agora Deus com o seu tempo de silêncio e traz-me mulheres vazias. E essas mulheres cantam e mostram a boca e o ânus e uma mão vermelha pousada sobre o sexo. As flores do mal enlevam a minha melancolia e tornam-na doce como a inocência. As mulheres lentas e nuas pensam em folhas para se cobrirem. E choram numa velocidade molhada enquanto se inspiram na carne e na morte e se debruçam sobre a frescura veemente da ilusão. Essas mulheres pedem para que Deus lhes permita viver velozmente num fogo juvenil que se prende ao seu ventre. Sofro agora do amargo delírio de subir pelas mulheres em degraus. Essa é a expectativa fulminante, o movimento explicado aos geómetras que assaltam as cidades com gestos encerrados nos próprios gestos. As mulheres fazem que passam por mim segurando os seios como se fossem bolas de cristal. Os seus olhos são janelas em brasa e o seu mutismo contempla as flores e as folhas de sono. E de novo as mulheres alucinadas transportam Deus dobrado sobre a sua própria luz e as estátuas de anjos fixos nas suas asas e profetas girando sobre a sua própria loucura. E as mulheres atentamente suspeitas aos olhos de Deus enchem os seus corpos de orgasmos duros e embrulham o seu misterioso talento materno nos coitos interrompidos. Depois separam-se dos seus passos em volta e dizem-se apaixonadas pelas graves canções do desejo e do sacrifício e da penitência e da desgraça e choram fechadas nos seus labirintos de dor e ciúme. As pobres mulheres caminham pelo lado escuro da revelação e observam a vingança divina onde a sua beleza passa sem lhes tocar. E elas relembram o seu circuito ardente da velhice e da decomposição e o som curvo da paixão que morreu mesmo antes de nascer e a terrível purificação universal da infâmia e da morte e suspiram com as mãos transformadas em instrumentos de infelicidade. E a orquestra de mulheres exemplares levanta-se com os seus corpos de violoncelos e principia a tocar canções de amor impossível. Por isso as suas línguas começam a queimar-se como fósforos. Cada mulher é uma vingança. Cada mulher é um pecado explicado por Deus com um gesto infantil. Cada mulher é uma intempestiva e excitada iluminação da natureza. Cada mulher é um brilho interior. Cada mulher é um longo som de amor e morte. Deus tenta agora explicá-las como o fundo da sua existência, mas já é tarde. Por isso lhe voltam as costas e partem com a sua sinistra fantasia da absolvição. O eco dos seus passos funda uma nova existência e envolve a solidão extraordinária da paixão humana. E as mulheres aproximam agora os seus corpos de luz aos corpos dos homens desabitados e falam-lhes da lírica antropologia dos sexos eretos e, com as suas vozes brilhantes, encostam as línguas e principiam um coito tão grande como a eterna ilusão do amor. Daqui nasce o longo canto da vida. E Deus volta a morrer dentro da sua imortalidade no seu espasmo feroz de sangue feminino. A humanidade: a carne contra o tempo. A divindade: o tempo contra a carne. De repente acordo fecundado pela invenção iluminada deste poema e as mulheres desassombradas atravessam a carne enquanto sonham…

05
Dez11

A chantagem e os chantagistas

João Madureira

 

Entendamo-nos: a acreditar em algo, eu acredito na literatura, na música, na arte. Por isso não acredito na burrice e abomino lugares comuns. Sobretudo acredito nas coisas que possuem a capacidade de me comover. Reconheço que são poucas, mas, talvez até por isso, são fundamentais na minha vida.

 

Também aprecio o futebol, os bares modernos e os delírios dos políticos. Por vezes a verbosidade destes últimos é tocante, surrealista mesmo. Veem com olhos esbugalhados uma realidade que, de tão comezinha, chega a ser cómica. Penso que a realidade dos políticos é um jogo de espelhos. Não é a política, são eles mesmos. Não é a realidade que conta, mas eles mesmos. Espelho meu quem é mais político do que eu?

 

Entrementes, quando vão às festas, que é para o que servem, lançam os foguetes e apanham as canas. Descortinam numa tenda de venda de produtos regionais um alfobre de qualidades, um chuveiro de potencialidades, um aspersor de oportunidades. Gasta-se tanto dinheiro público na promoção destes certames que os feirantes que aí comerciam os seus produtos bem podiam fazê-lo a preço de saldo em vez de vendê-los, muitas das vezes, a preços exorbitantes. Até porque o consumidor já pagou aquilo tudo com a folha de impostos que lhe é imposta.

 

Depois relatam-nos acontecimentos públicos pífios e serôdios onde só têm olhos, e palavras, para doutores e engenheiros. Babam-se a pronunciar os títulos académicos como se eles valessem mais do que o carácter e a verdade. E deliram com as palavras ocas dos oportunistas de ocasião que vêm à província fazer de nós parvos. São os atores do costume, os astutos habituais que vão encher os bolsos para a capital e depois nos visitam unicamente nas épocas festivas e olham para nós como se fôssemos os verdadeiros índios em extinção que eles viram na sua juventude nos filmes americanos. Não sabendo que também eles, ou sobretudo eles, fazem parte desse jogo de espelhos.

 

Qualquer feira da cebola, qualquer mercado da jeropiga, qualquer iniciativa de venda de alhos, couve troncha, cebolas, nabos, pão e chouriças, qualquer evento de venda de pedras de granito ou de copos com nomes gravados, são pretextos para dizer tontarias, elogiar instituições e tecer elogios a personalidades que, num país culto e civilizado, não passariam de amanuenses, secretários ou coladores de selos. Muitos deles são presidentes disto e daquilo. Outros são executivos, governantes ou diretores de bancos e empresas do Estado ou coisas pelo estilo.

 

Li um artigo de alguém eleito pelo nosso distrito para o parlamento que apenas teve olhos para tecer panegíricos aos eventos concelhios onde os seus correligionários estão no poder. Aí até uma corrida de carrinhos de rolamentos lhe parece um grande prémio de fórmula um. Somos um país pequeno, de gente pequena, mas de políticos liliputianos, vesgos e autistas.

 

 

Os partidos são hoje uma família que todos tenderíamos a apoiar, e muitas vezes apoiamos, ou apoiávamos, com muita paixão, porque as famílias de onde vimos são boas. Mas essa tertúlia de prevaricadores quando ouve falar em família pensa logo na semântica italiana.

 

Tanto sectarismo provoca-me urticária, tanta saloiice mexe-me com os nervos, tanto primarismo põe-me à beira de um ataque de nervos, tanta mentira põe-me a rogar para que haja inferno. E pensar que tanta desta gente vai à missa, que se confessa e que comunga, deixa-me a rezar para que Deus exista e que seja o que eles dizem que é.

 

Considero que para alguém chegar ao parlamento, ou mesmo ao governo, deveria ser obrigatório passar numa espécie de exame onde fossem testados os seus conhecimentos, não só em política, como em história, direito, e também em cultura geral e, sobretudo, em literacia social e humana. Mas o que por aqui continua a contar é o cartão partidário e ser amigo de quem domina a estrutura partidária.

 

Além disso, são capazes de escrever nos jornais textos que mais parecem atas de qualquer associação recreativa e cultural. Nem sequer se dão ao luxo de disfarçar o seu estatuto de consignatários políticos, comportando-se na política como se estivessem num jogo de futebol a apoiar a sua equipa, sem notarem que para haver jogo tem de existir adversário. 

 

Não discutem ideias, não gostam de polémicas, evitam os concorrentes, manobram nos bastidores, conspiram na sombra. São tão maneirinhos que enjoam. Não se lhes conhece uma intervenção pública de jeito, uma ideia própria, uma obra consistente. Vivem do improviso, da lamechice, do desfile público, constantemente a sorrir como se fossem bonecos de porcelana, ajaezados nas suas vestes cómicas, como se não coubessem nelas, como se a libré lhes pesasse.

 

Se o ridículo matasse!

 

São também peritos em esfrangalhar a lógica, em aligeirar os processos, em fabricar cenários, em sorrir constantemente como se a vida, e esta miserável conjuntura que nos anunciaram como quase milagrosa, fossem motivo para a redenção. 

 

Claro que a política, para não morrer, e com ela a democracia, tem de se reabilitar, tem de promover gente capaz, pessoas cultas, com currículos significativos, com provas dadas em defesa da coisa pública.

 

Atualmente uma pessoa dá um pontapé numa pedra e aparece logo um candidato a presidente da Câmara, pontapeia um canhoto e descobre-se logo um candidato a deputado, abre-se uma porta do partido A ou B e damos logo de caras com um putativo secretário de Estado ou mesmo com um aspirante a ministro.

 

Passam da intriga e do manobrismo partidário para o Estado sem serem submetidos a qualquer tipo de audição ou escrutínio público.

 

Por exemplo, fala-se muito em competência e produtividade, mas nunca ouvi ninguém dos partidos políticos defender que os deputados ganhassem segundo o trabalho que produzem.

 

Ir para o parlamento para estar sentado a bater palmas às intervenções da “nossa” bancada e assobiar às dos opositores, para levantar o rabo para ir comer ou nos momentos da votação, é vexante, é um desperdício de dinheiro, de tempo e de palavreado. Penso que esse tipo de escassez de produtividade devia ser combatida como gordura do Estado ou como desadequação do eleito ao seu posto de trabalho.

 

A nobreza de um estadista não está em parecê-lo mas, efetivamente, em sê-lo. A política, e os políticos, têm também de ser chamados à tarefa da produção. 

 

Os políticos habituaram-se a resolver tudo no ano que vem. E quase nunca cumprem. Pelo menos até agora nunca cumpriram. A princípio ficávamos felizes com as suas promessas. Bastava-nos a ideia de que o futuro seria melhor.

 

Este executivo neo-neo-liberal, e esta maioria, vieram impor-nos a ideia de que o futuro será pior. Que o futuro reside no corte de salários, nos despedimentos, em maior desemprego, na recessão económica. E ameaçam que para o ano o cenário piorará. Do lado da bancada que sustenta o governo, os parlamentares não dizem nada, apenas se limitam à prédica de enviar as culpas para cima dos políticos que os precederam.

 

Quando olho para aquelas bancadas, reparo que a maior parte são funcionários públicos. Mete dó vê-los ali sentados a votarem um orçamento que é justificado, na sua essência, como um corretivo aos trabalhadores do Estado.

 

Por detrás desta atitude é visível o desprezo, a mentira, o embuste, a desqualificação, a perseguição, o escárnio e o mal-dizer. Esquecem esses senhores que ao serviço do Estado estão os portugueses mais qualificados e que sem eles Portugal, pura e simplesmente, nem sequer consegue existir como Estado moderno.

 

Lendo os sinais, podemos concluir que o governo do PSD/CDS se inclina para diminuir o número de trabalhadores do Estado. Mas temos que pensar que isso tem de passar por diminuir os serviços públicos de qualidade. Nos inícios do século XX os funcionários de Estado quase não existiam porque o Estado também não.

 

Por isso não havia água potável, saneamento básico, recolha do lixo, estradas, pontes e, sobretudo, saúde, educação e segurança social. Pois, caros leitores, quando Pedro Passos Coelho fala de cortar nas gorduras do Estado, e é aplaudido de pé pelos deputados do seu partido, especialmente pelos que são funcionários públicos, no que está a pensar é em desqualificar a educação, defenestrar a saúde e depauperar a segurança social. E isso é um retrocesso social e político sem paralelo na história do nosso país.

 

Até agora o país evoluía pouco, mas evoluía. Agora estes senhores descobriram a fórmula de andarmos para trás no tempo impingindo-nos a ideia de que ou aceitamos a inevitabilidade ou vem aí o dilúvio, o castigo, o fim do mundo.

 

O que mais me entristece, e indigna, é que o primeiro-ministro do meu país utilize a estratégia do medo e da chantagem para humilhar o povo português. Mas eu sei que o medo não é o que mais nos obriga a fazer seja o que for. A estratégia do medo vai falhar pela simples razão de que todos esses estratagemas falham quando aplicados a um povo que teima em ser cordato, paciente, mas livre. 

02
Dez11

O Homem Sem Memória - 91

João Madureira

 

91 – O José começou a fumar e a beber. Passou diretamente do seminário para a taberna sem passar pela situação de empregado, que é o mal maior. Sem dinheiro e sem responsabilidade, a boémia torna-se ainda mais degradante.


A princípio, a mãe ainda lhe deu algum dinheiro para o dia-a-dia, ensaiando amimá-lo na tentativa, que nós sabemos vã, de o convencer a voltar ao seminário. Quando lhe passava a nota de cem escudos para a mão dizia-lhe sempre que não havia vida melhor do que a de padre, que o dinheiro não nasce nas árvores e que uma vida dedicada a Deus e à sua Igreja é uma vida venturosa.


Ele respondia-lhe sempre torto, que o seminário é uma tortura, que os padres são uns falsos e uns devassos que tanto defendem Deus como o Diabo, que são os profetas do nada, os homens das palavras ocas, e que a existir inferno é lá onde quase todos vão parar com viagem reservada em avião supersónico. E concluía: “Além disso não me querem lá. Eu tratei-os muito mal. Por isso me expulsaram. Nem eles me querem lá, nem eu quero ir para lá. Desiluda-se. Está decidido.”


Mas a Dona Rosa não o levava a sério: “Essa raiva passa-te. Tu falaste na minha barriga. Isso é um sinal divino. És um predestinado. Deus seleccionou-te ainda estavas cá dentro. O que tem de ser tem muita força. E tu tens de ser padre. E logo bispo.”


Mas o filho primogénito do guarda Ferreira, sentindo dinheiro no bolso, ia logo direitinho para a taberna conviver com o lumpen. Era como uma maldição. Nesse sentido, o José era um homem profundamente religioso, um visionário que acreditava piamente que conviver com os mais desfavorecidos, conversar com eles e redimi-los, era o caminho que devia percorrer para também ele se salvar.


Era nos pobres de espírito onde estava a salvação. E quanto mais pobres mais redentores. Entre bolo de bacalhau, copo de vinho e cigarro, José dirigia-se àquela gente carente de tudo (e também de consciência política, rapazes e homens desligados da produção social, muitos deles dedicados a actividades marginais, roubando o que podiam e até prostituindo filhas, mulheres e irmãs), e tentava organizar um discurso coerente que os levasse a ganhar consciência da sua condição enquanto seres humanos, de tentar incutir-lhes princípios sociais, morais, éticos e, à falta de melhor recurso, também religiosos.


Mas eles eram como macacos: ouviam-no tagarelar e riam-se muito. A maior parte das palavras não as entendiam e a outra tornava-se inaudível no meio da chalaça, dos impropérios e da pura agressão verbal. Mas o José não desistia, pegava noutro bolo de bacalhau, pedia renovada rodada de tinto, acendia novo cigarro e dizia-lhes que se deviam lavar, que deviam arranjar um emprego estável, que deviam mandar os filhos à escola, “e as filhas?”, perguntavam-lhes alguns a rir, “e as filhas também”, respondia ele, “para quê?”, perguntavam-lhe de novo e respondiam de imediato, “para conseguirem emprego nalguma casa de um burguês para servirem de concubinas dos patrões e de putas dos filhos e dos criados a troco da comida e da bebida? Se querem carne boa têm de pagá-la a bom preço. As nossas mulheres, apesar de pobres, têm a greta igual às mulheres deles, ou até melhor. Por isso há que aproveitar enquanto estão sadias e pô-las a render.” E riam-se muito. Afinal não lhes restava alternativa. A pobreza extrema transforma os homens em animais.


Muitos deles confessavam que eram os próprios a violar as filhas e só depois é que as punham a render. E exprimiam evidências: que os ricos da cidade, apregoando bons princípios católicos, eram os primeiros a arranjar mulher e amante, ou amantes, que davam trato de polé às esposas enquanto tratavam as concubinas como princesas, que alugavam as mulheres da má vida para fazerem coisas porcas, em grupo, que esses senhores, muitas vezes nem as mulheres queriam, mas sim homens viris e devassos, loucos, que a troco de bom dinheiro abonavam ricos burgueses que, fazendo-se passar por homens na sociedade, se comportavam como mulheres débeis e permissivas, como raparigas perversas, como autênticos pecadores.


“Depois de nos explorarem, espezinharem, perverterem e comprarem a nossa carne, aproveitam-se da nossa pobreza para nos roubarem a alma. Nutrem-se com os nossos corpos e em troca dão-nos uma esmola. São uns filhos da puta.”


“Tu, ó padreca, achas que pode existir assim um Deus tão cruel que vê tudo isto e cruza os braços?”


Depois os homens do lumpen riam-se como se chorassem e bebiam copo atrás de copo até caírem para o lado. Alguns deles pediam-lhe encarecidamente que os confessasse. Ele, a princípio, recusou mas depois entrou no jogo. Que mal vinha ao mundo se ouvisse os pecados desta pobre gente. Tanta maldade não tinha perdão, mesmo que existisse Deus e fosse tão tolerante como o pintam. No entanto, ouvia-os e arrepiava-se com a verdade.


Viver com o lumpen transformou-o num marginal. Era difícil conviver com eles, beber com eles e ser-lhes indiferente. Toda a amizade requer uma certa intimidade e, sobretudo, cumplicidade. Por isso foi roubar na sua companhia e, em muitos casos, chegou mesmo a ir dormir nos seus pobres barracos.


Ajudava-os no que podia, prestava alguma informação médica, dava-lhes algum conforto espiritual, contava-lhes histórias bíblicas, ajudava uns a tratarem da horta, outros a pescar no rio e ainda outros no contrabando. Comprometeu-se a dar conselhos de higiene corporal às mulheres que se prostituíam e aos rapazes que também seguiam esse caminho.


Vivendo com eles, tornou-se promíscuo como eles. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. Chegou a dormir com várias mulheres dos seus novos amigos e com as suas filhas também. A princípio custou-lhe, mas depois foi-se habituando. E por fim já não destrinçava muito bem o que fazia. Andava constantemente bêbado. Bebia para não ressacar e para esquecer.


Várias vezes a sua mãe, em pranto, o foi procurar no meio dos barracos do bairro, mas nunca o chegou a encontrar. Se ele não queria ser encontrado, o seu povo adotivo fazia-lhe a vontade. Escondia-o. 

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