98 – Como num popular filme clássico da cinematografia nacional, dali rumaram todos ao quartel da GNR devidamente escoltados. Uns foram libertados ainda antes de ser elaborado o respetivo auto, e a alguns outros, os mais desprotegidos pela família e pelo título, lavrou-se tudo o que tinha de se lavrar e da secretaria do inquisidor passaram de imediato aos calabouços.
Depois de tudo formalmente esclarecido, entre meias verdades, inverdades e mentiras descaradas, apenas o pintor e o aprendiz de poeta ficaram presos com culpa formada. Os detidos perguntaram, e bem, pelos outros, mas foram informados que unicamente foi apresentada queixa contra um pintor indisposto, por insultos seguidos de agressão física e uma outra contra um poeta mal afamado, por agressão física seguida de insultos.
“Estão vossas excelências na disponibilidade de apresentarem queixa contra mais alguém?”, provocaram-nos as autoridades graduadas. Mas os dois aprendizes de intelectuais podiam ser truculentos, inconvenientes e agitadores, mas, definitivamente, não eram delatores. Por isso responderam que, para os autos, nada tinham a declarar.
O pintor fartou-se de pintar para o comandante do posto de Névoa da GNR. Pintou o tenente Sampaio sentado com ar de imperador romano, retratou-o em pose militar aconchegando a espada de chefe legionário, pintou-o ainda como cavaleiro medieval, como bom pai de família, como caçador rodeado de dois galgos, apesar de apenas possuir dois esguios cães perdigueiros, e, como não podia deixar de ser, de benemérito com cara de Monsenhor Escrivá de Balaguer.
Pincelou mesmo a tela com os delicados traços da esposa delicada do senhor tenente em pose de delicada esposa do senhor tenente, pintou as suas rosadas filhas em pose de filhas rosadas em pose, evidenciando-lhes a imagem de flores com pétalas bem definidas e suculentas. Retratou ainda os pais do senhor tenente, os sogros do senhor tenente e ainda uma avó nonagenária do senhor tenente, que se mostrou tão apreciadora das qualidades artísticas do pintor que decretou, ela própria, a sua libertação. E sem mais delongas. Foi por essas e por outras, que até o delegado do ministério público e o juiz do processo viram os seus retratos plasmados em tela e óleo de lei.
E o nosso herói?, perguntarão, preocupados, os estimados leitores. Bem, o José também fez pela vida. Logo de início foi visitado pela mãe e pelos irmãos, que lhe fizeram uma festa. Ele retribuiu os sorrisos e os abraços e pôs-se a comer as iguarias que a Dona Rosa lhe levou na mesma pasta que utilizava para transportar as refeições ao guarda Ferreira quando estava de plantão no posto de Montalegre.
Esperta como era, a Dona Rosa levava sempre junto com a refeição para o filho, um petisco para o guarda de plantão e outro para o senhor sargento. Enquanto esperava que o filho terminasse a refeição, a Dona Rosa desabafava: “Porque escolheste o caminho da perdição, filho querido. Porquê? Eu, que te apontei sempre, mas sempre, sempre, sempre, o caminho de Deus, vejo-me na triste situação de te saber um dos chefes dos exércitos do Mafarrico. Porquê, José, porquê? Porque teimas em me infernizar a existência?”
O José, sorrindo constantemente, dava-lhe sempre a mesma resposta: “São inescrutáveis os caminhos do Senhor.” E a Dona Rosa: “O senhor tenente disse-me que está a tentar levar-te para o bom caminho. Faz o que te aconselha. Olha que ele, mesmo não parecendo, é uma boa alma.” E o José: “Perdoai-lhe Senhor porque ela não sabe o que diz.” E a Dona Rosa: “Disse-me que andas a escrever um livro de poemas religiosos. É verdade? Fico tão feliz que aproveites o teu talento para enalteceres a nossa religião.” E o José: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.” E a Dona Rosa: “Ai José, José, tu que podias um dia ser bispo, pois nunca te esqueças que falaste na minha barriga, deste em putanheiro.” E o José: “Deus escreve direito por linhas tortas.” E a Dona Rosa: “Não blasfemes. Graças a Deus muitas, graças com Deus nenhumas.”
Estavam mãe e filho nesta frutuosa dialéctica, quando, vindo do seu gabinete, surgiu o tenente Sampaio para os informar, pessoalmente, que o pintor tinha sido libertado por falta de provas conclusivas e por bom comportamento, e que o mesmo podia acontecer no dia seguinte ao José se cumprisse com o prometido, isto é, se entregasse o livro de poemas que garantiu escrevinhar para ser apresentado no Bodo aos Pobres anual, cerimónia que iria ser presidida pelo excelentíssimo Governador Civil e apadrinhada pelo reverendíssimo Bispo de Vila Real.
“O livro vai-me ser entregue logo à noitinha devidamente datilografado”, disse o José. E a Dona Rosa: “Deus te abençoe, meu filho. Tu és um eleito de Deus. Sinto-o. Sei-o desde que foste gerado. Sabe senhor tenente, o meu José falou na minha barriga. Ele já falava antes de aprender a falar. Isso só acontece com os eleitos por Deus…” “Ou pelo Diabo, Dona Rosa. Ou pelo Diabo”, lembrou sabiamente o tenente Sampaio. “Que Deus o oiça”, mangou o aprendiz de poeta.
Esta interessante conversa a três, ou talvez a quatro, se Deus se dignou a assistir, ou mesmo a cinco, se Belzebu tomou idêntica decisão, foi interrompida pelo guarda de plantão que, julgando que o calabouço estava apenas ocupado pelo preso e pela sua mãe, vinha entregar a panelinha que tinha servido de ataúde a um coelho estufado. Vendo o seu comandante em amena cavaqueira, fez a continência e pediu licença para introduzir o objeto dentro da pasta. Estava ele a depositar o tachinho quando apareceu, vindo do seu gabinete, o sargento que, também ele pasmado por aquela reunião imprevista, fez a continência ao seu comandante e pediu autorização para depositar na pasta a outra panelinha que tinha servido de esquife a um franguinho caseiro estufado.
Desta vez o tenente não resistiu a comentar: “Da próxima vez não se esqueça de mim. Olhe que eu também sou gente.” Ainda tais palavras não tinham sido pronunciadas até ao fim, já a Dona Rosa tinha na mão um embrulho constituído por salpicões, linguiças, sangueiras e chouriços de cabaça. Tudo aos pares. “Que lhe faça bom proveito, senhor tenente. É pouco mas é de boa vontade.”
O livro de poemas que o José escreveu foi editado com o título de “Mal Acompanhado”, seguido do subtítulo: “O livro mais solitário de Portugal”.
Foi na presença das forças vivas da cidade, do concelho, e da região, além, obviamente dos pobres a quem era especialmente destinado o afamado Bodo, que o José declamou o poema que, no seu polémico ponto de vista, se adequava mais à situação.
Chegada a sua vez, depois da verborreia do costume nestas situações, onde são useiros e vezeiros os políticos e os representantes oficias da igreja católica, o José aproximou-se do micro, pigarreou, para chamar a atenção dos distraídos, e declamou, para que conste, o seguinte poema, que sabiamente intitulou de “Perguntas ao Senhor”.
Senhor, em nome de todos os pobres espalhados pelo mundo, deixa que, na nossa humilde condição, te façamos algumas perguntas. / Porque nos deste a vida Senhor, se nos custa tanto vivê-la? Porque nos dás esta fome, se somos todos irmãos? / Enquanto uns comem até arrotarem, porque é que nós passamos fome? / Porquê senhor, porquê? / E porque é que também passamos sede, Senhor? / É que nós ainda gostamos de beber. / E, Senhor, porque é que os outros riem enquanto nós chorámos, Senhor? / E porque é que os outros nos desprezam enquanto nós os prezamos, Senhor? / Porque será, Senhor? Senhor, porque será? / Nós queremos ver-te Senhor, mas não conseguimos. Será que somos cegos, Senhor? / Nós queremos ouvir-te Senhor, mas não conseguimos. Será que somos moucos, Senhor? / Nós queremos falar-te Senhor, mas não conseguimos. Ou não nos deixam, Senhor. / Será que somos parvos, Senhor? Pois mudos parece-nos que não. / Ai Senhor, Senhor, talvez sejas “Nosso” Senhor, mas nosso amigo não és de certeza, Senhor!
O senhor Bispo por detrás da sua autoridade e do seu báculo com crucifixo dourado disse: “Alto lá com a litania. Isso raia a blasfémia.” O José, mesmo ali ao lado da sua coragem, contrapôs: “Nem tudo o que parece é!” O senhor Bispo, à frente do coro de puritanos e vítimas de outros enganos, ripostou: “Nem tudo o que é parece.” O José danado: “Inquisidor!” O senhor Bispo assanhado: “Herege.” O José encarniçado: “Filho da…”, mas não teve tempo de acabar o impropério, pois o tenente da GNR calou-o com a força de aço do punho da sua pistola de encontro à boca.