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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Jan12

O Homem Sem Memória- 98

João Madureira

 

98 – Como num popular filme clássico da cinematografia nacional, dali rumaram todos ao quartel da GNR devidamente escoltados. Uns foram libertados ainda antes de ser elaborado o respetivo auto, e a alguns outros, os mais desprotegidos pela família e pelo título, lavrou-se tudo o que tinha de se lavrar e da secretaria do inquisidor passaram de imediato aos calabouços.


Depois de tudo formalmente esclarecido, entre meias verdades, inverdades e mentiras descaradas, apenas o pintor e o aprendiz de poeta ficaram presos com culpa formada. Os detidos perguntaram, e bem, pelos outros, mas foram informados que unicamente foi apresentada queixa contra um pintor indisposto, por insultos seguidos de agressão física e uma outra contra um poeta mal afamado, por agressão física seguida de insultos.


“Estão vossas excelências na disponibilidade de apresentarem queixa contra mais alguém?”, provocaram-nos as autoridades graduadas. Mas os dois aprendizes de intelectuais podiam ser truculentos, inconvenientes e agitadores, mas, definitivamente, não eram delatores. Por isso responderam que, para os autos, nada tinham a declarar.


O pintor fartou-se de pintar para o comandante do posto de Névoa da GNR. Pintou o tenente Sampaio sentado com ar de imperador romano, retratou-o em pose militar aconchegando a espada de chefe legionário, pintou-o ainda como cavaleiro medieval, como bom pai de família, como caçador rodeado de dois galgos, apesar de apenas possuir dois esguios cães perdigueiros, e, como não podia deixar de ser, de benemérito com cara de Monsenhor Escrivá de Balaguer.


Pincelou mesmo a tela com os delicados traços da esposa delicada do senhor tenente em pose de delicada esposa do senhor tenente, pintou as suas rosadas filhas em pose de filhas rosadas em pose, evidenciando-lhes a imagem de flores com pétalas bem definidas e suculentas. Retratou ainda os pais do senhor tenente, os sogros do senhor tenente e ainda uma avó nonagenária do senhor tenente, que se mostrou tão apreciadora das qualidades artísticas do pintor que decretou, ela própria, a sua libertação. E sem mais delongas. Foi por essas e por outras, que até o delegado do ministério público e o juiz do processo viram os seus retratos plasmados em tela e óleo de lei.


E o nosso herói?, perguntarão, preocupados, os estimados leitores. Bem, o José também fez pela vida. Logo de início foi visitado pela mãe e pelos irmãos, que lhe fizeram uma festa. Ele retribuiu os sorrisos e os abraços e pôs-se a comer as iguarias que a Dona Rosa lhe levou na mesma pasta que utilizava para transportar as refeições ao guarda Ferreira quando estava de plantão no posto de Montalegre.


Esperta como era, a Dona Rosa levava sempre junto com a refeição para o filho, um petisco para o guarda de plantão e outro para o senhor sargento. Enquanto esperava que o filho terminasse a refeição, a Dona Rosa desabafava: “Porque escolheste o caminho da perdição, filho querido. Porquê? Eu, que te apontei sempre, mas sempre, sempre, sempre, o caminho de Deus, vejo-me na triste situação de te saber um dos chefes dos exércitos do Mafarrico. Porquê, José, porquê? Porque teimas em me infernizar a existência?”


O José, sorrindo constantemente, dava-lhe sempre a mesma resposta: “São inescrutáveis os caminhos do Senhor.” E a Dona Rosa: “O senhor tenente disse-me que está a tentar levar-te para o bom caminho. Faz o que te aconselha. Olha que ele, mesmo não parecendo, é uma boa alma.” E o José: “Perdoai-lhe Senhor porque ela não sabe o que diz.” E a Dona Rosa: “Disse-me que andas a escrever um livro de poemas religiosos. É verdade? Fico tão feliz que aproveites o teu talento para enalteceres a nossa religião.” E o José: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.” E a Dona Rosa: “Ai José, José, tu que podias um dia ser bispo, pois nunca te esqueças que falaste na minha barriga, deste em putanheiro.” E o José: “Deus escreve direito por linhas tortas.” E a Dona Rosa: “Não blasfemes. Graças a Deus muitas, graças com Deus nenhumas.”


Estavam mãe e filho nesta frutuosa dialéctica, quando, vindo do seu gabinete, surgiu o tenente Sampaio para os informar, pessoalmente, que o pintor tinha sido libertado por falta de provas conclusivas e por bom comportamento, e que o mesmo podia acontecer no dia seguinte ao José se cumprisse com o prometido, isto é, se entregasse o livro de poemas que garantiu escrevinhar para ser apresentado no Bodo aos Pobres anual, cerimónia que iria ser presidida pelo excelentíssimo Governador Civil e apadrinhada pelo reverendíssimo Bispo de Vila Real.  


“O livro vai-me ser entregue logo à noitinha devidamente datilografado”, disse o José. E a Dona Rosa: “Deus te abençoe, meu filho. Tu és um eleito de Deus. Sinto-o. Sei-o desde que foste gerado. Sabe senhor tenente, o meu José falou na minha barriga. Ele já falava antes de aprender a falar. Isso só acontece com os eleitos por Deus…” “Ou pelo Diabo, Dona Rosa. Ou pelo Diabo”, lembrou sabiamente o tenente Sampaio. “Que Deus o oiça”, mangou o aprendiz de poeta.


Esta interessante conversa a três, ou talvez a quatro, se Deus se dignou a assistir, ou mesmo a cinco, se Belzebu tomou idêntica decisão, foi interrompida pelo guarda de plantão que, julgando que o calabouço estava apenas ocupado pelo preso e pela sua mãe, vinha entregar a panelinha que tinha servido de ataúde a um coelho estufado. Vendo o seu comandante em amena cavaqueira, fez a continência e pediu licença para introduzir o objeto dentro da pasta. Estava ele a depositar o tachinho quando apareceu, vindo do seu gabinete, o sargento que, também ele pasmado por aquela reunião imprevista, fez a continência ao seu comandante e pediu autorização para depositar na pasta a outra panelinha que tinha servido de esquife a um franguinho caseiro estufado.


Desta vez o tenente não resistiu a comentar: “Da próxima vez não se esqueça de mim. Olhe que eu também sou gente.” Ainda tais palavras não tinham sido pronunciadas até ao fim, já a Dona Rosa tinha na mão um embrulho constituído por salpicões, linguiças, sangueiras e chouriços de cabaça. Tudo aos pares. “Que lhe faça bom proveito, senhor tenente. É pouco mas é de boa vontade.”


O livro de poemas que o José escreveu foi editado com o título de “Mal Acompanhado”, seguido do subtítulo: “O livro mais solitário de Portugal”.


Foi na presença das forças vivas da cidade, do concelho, e da região, além, obviamente dos pobres a quem era especialmente destinado o afamado Bodo, que o José declamou o poema que, no seu polémico ponto de vista, se adequava mais à situação.


Chegada a sua vez, depois da verborreia do costume nestas situações, onde são useiros e vezeiros os políticos e os representantes oficias da igreja católica, o José aproximou-se do micro, pigarreou, para chamar a atenção dos distraídos, e declamou, para que conste, o seguinte poema, que sabiamente intitulou de “Perguntas ao Senhor”.


Senhor, em nome de todos os pobres espalhados pelo mundo, deixa que, na nossa humilde condição, te façamos algumas perguntas. / Porque nos deste a vida Senhor, se nos custa tanto vivê-la? Porque nos dás esta fome, se somos todos irmãos? / Enquanto uns comem até arrotarem, porque é que nós passamos fome? / Porquê senhor, porquê? / E porque é que também passamos sede, Senhor? / É que nós ainda gostamos de beber. / E, Senhor, porque é que os outros riem enquanto nós chorámos, Senhor? / E porque é que os outros nos desprezam enquanto nós os prezamos, Senhor? / Porque será, Senhor? Senhor, porque será? / Nós queremos ver-te Senhor, mas não conseguimos. Será que somos cegos, Senhor? / Nós queremos ouvir-te Senhor, mas não conseguimos. Será que somos moucos, Senhor? / Nós queremos falar-te Senhor, mas não conseguimos. Ou não nos deixam, Senhor. / Será que somos parvos, Senhor? Pois mudos parece-nos que não. / Ai Senhor, Senhor, talvez sejas “Nosso” Senhor, mas nosso amigo não és de certeza, Senhor!


O senhor Bispo por detrás da sua autoridade e do seu báculo com crucifixo dourado disse: “Alto lá com a litania. Isso raia a blasfémia.” O José, mesmo ali ao lado da sua coragem, contrapôs: “Nem tudo o que parece é!” O senhor Bispo, à frente do coro de puritanos e vítimas de outros enganos, ripostou: “Nem tudo o que é parece.” O José danado: “Inquisidor!” O senhor Bispo assanhado: “Herege.” O José encarniçado: “Filho da…”, mas não teve tempo de acabar o impropério, pois o tenente da GNR calou-o com a força de aço do punho da sua pistola de encontro à boca.

 

18
Jan12

O Poema Infinito (83): canção muda

João Madureira

 

Às vezes imagino como é tremendo o poder da linguagem. Certos dias, penso na infelicidade do sono de Deus, nas suas mãos perfurando peixes intraduzíveis. Quando era criança sentia-me caminhar para dentro do silêncio, enquanto Deus desarrumava as fronteiras da ilusão. Por isso a sua voz é um espelho que estremece quando se aproxima de outro espelho que nada reflete. Ou que reflete o outro espelho e o seu infinito de vacuidade. Quanto era criança cheguei a acreditar na terrífica fantasia do tempo. Fui uma criança profunda de lugares e de solidão. Então pensei na poesia e na sua inspiradora agitação. E nos distintos nomes da loucura. E na delicadíssima subtileza das lágrimas. E na cor bárbara da solidão das outras crianças. E no lugar onde se misturam as imagens. E nas pequenas estrelas que mudam de cor. E na raiz queimada dos sorrisos. E na abstração espalhada da verdade. E no interior difuso da loucura. Tanta inocência destruiu o lento milagre que trazia dentro. A vida tornou-se numa luz molhada pela idade. Presentemente sei como tudo amadurece, como a chuva ama a velocidade das cores do arco-íris. Dizem que agora sei tudo porque esqueço muito devagar. Ilusão. Os dias levantam-se sem eu acordar e as noites perecem sem eu adormecer. Entretanto a melancolia surge seguida pelo enorme desalento dos campos. Um demorado prazer toma conta do meu olhar. Toda a formosura surge da alarmada malícia do pecado original. Toda a doçura é uma infiltração de sombras silenciosas. É branco o meu amar, de um branco daltónico capaz de perfurar as noites fabulosas, capaz de acrescentar devoção às canções de embalar, capaz de aproximar a eternidade da finitude, capaz de ser incapaz. Muitas das canções que me cantaram falavam da força de ter força, no poder tremendo da ilusão, na húmida alegria da existência, no amor de véspera, no princípio ríspido da autoridade, na melancolia das colinas de ferro, no fogo transcendental da voz neutra de Deus, no vagaroso acender da chama do divino espírito santo, na incomparável distração vermelha da virgindade, na fantasia noturna da melancolia, da natureza indecifrável da verdade e da relação intransmissível dos presépios. É esse vasto campo de pó indestrutível e de sangue iluminado que me absorve o tempo de véspera e me bloqueia a idade da razão.

16
Jan12

Quase um conto para o ano novo

João Madureira

 

O menino Jesus tinha sido generoso com as prendas. João rejubilava e o seu amigo António partilhava da mesma alegria. Eram meninos felizes. João recebeu uma camisola de lã feita pela vizinha dona Rosa na sua máquina de tricotar elétrica, uma bola de catechu, um autocarro de plástico, um barco à vela, um pião, a respetiva guita para o pôr a dançar, e um tambor branco de plástico.

 

António recebeu quase o mesmo, menos o tambor, que no seu caso foi substituído por uma “lousa” de plástico igualmente branco, na qual se podia desenhar com um lápis de grafite e que pretendia substituir a verdadeira, onde apenas se podia escrevinhar com um ponteiro que se afiava nas pedras dos muros ou nas paredes das casas. Mas o António pouco lhe ligou. Entreteve-se durante algum tempo a destruir o barco. Nisso era muito bom. Destruir brinquedos estava-lhe na massa do sangue. Ele dizia que os destruía para depois os construir de novo. Mas nunca conseguia. Limitava-se a destruí-los com a minúcia de um menino atrevido, colérico e mal-educado.

 

Mal o António tinha acabado de abater o barco à vela, pegou no autocarro e principiou a sua obra de destruição sistemática. Nesse momento João aproximou-se dele e mostrou-lhe, cheio de orgulho, o seu tambor de plástico. Deu-lhe algumas pauladas com as baquetas e ficou à espera. António, com um sorriso nos lábios, aproximou-se do amigo e tentou arrancar-lhe o brinquedo. Ficaram, à distância de um passinho, um em frente do outro a medirem-se. António, o meia leca, e João, o leca e meia.

 

“Leio e não acredito”, diz o R. sentado no sofá azul enquanto folheia o meu semanário regional de referência. Ele aqui está, a meu lado, tentando ler enquanto eu tento escrever. Eu emito um resmungo distraído. E ele: “Leio e não…” Desligo.

 

António fez uma cara crispada, furiosa mesmo, pois ainda estava com os despojos da camioneta na mão, qual cão protegendo o seu osso de borracha, e arrancou naquele preciso momento as rodas traseiras do autocarro. João limitou-se a erguer o tambor de plástico.

 

António empenhou-se em deixar cair o que restava do autocarro. Essa era a sua qualidade inata, destruir os seus brinquedos e ir à procura dos preferidos dos amigos. João entregou-lho. António, na sua obsessão destrutiva, segurou-o, deu-lhe duas ou três voltas e, ao contrário do habitual, a sua expressão apaziguou-se um pouco. Mais do que isso era pedir um milagre. Embora continuasse tenso, com o seu olhar furtivo, João achou que era chegado o momento de lhe entregar as baquetas.

 

“Leio e não acredito”, tenta outra vez desabafar o R., mesmo sabendo do nosso contrato. “O que é? Desembucha de uma vez e depois cala-te”, peço-lhe distraidamente. E ele: “Então não é que o PSD fez aprovar na Assembleia Municipal de Chaves seis moções, todas elas rogando ao «seu» Governo que volte atrás nas suas políticas de portajar as SCUT’S…” Desligo.

 

Infelizmente, António não entendeu o seu movimento, sentiu-se ameaçado, arrancou-lhe as baquetas das mãos com um golpe do rebordo do tambor e, quando o João se estava a baixar para agarrar nas baquetas, pegou num objeto que estava nas suas costas e acertou-lhe com ele. João, educado e apaziguador, chegou-lhe pela segunda vez as baquetas. Mas António, pegando na corda do pião, acertou-lhe com ela no rosto. Aquilo estava a ultrapassar os limites do razoável. Talvez um pouco surpreso pela passividade do amigo, António pegou no pião e começou a enrolar nele a guita utilizada para o pôr a rodar.

 

“Leio e não acredito”, desabafa o R., mesmo sabendo que enquanto eu escrevo ele tem de estar quieto e calado. Sobretudo calado. “O que é? Desembucha de uma vez e depois cala-te. Tornei a tornar eu.” E ele: “Então não é que o PSD fez aprovar na Assembleia Municipal de Chaves seis moções, todas elas rogando ao «seu» Governo que volte atrás no novo modelo de organização judiciária, apelando ao restabelecimento dos benefícios fiscais para as empresas do interior … Achas que isto é para valer? Achas?” “Não. Acho que é para inglês ver. Mas deslarga-me, deixa-me escrever…” Volto a desligar.

 

Enquanto António tentava girar o pião, João olhava para ele dando-lhe um apoio quieto. António tentava e tentava mas nada de colocar o pião a zunir. Mal ele batia no chão dava duas ou três voltas e caía logo para o lado. Insatisfeito com o resultado, de novo se virou para o amigo e tentou mais uma vez chicoteá-lo. Alguém tinha de ser o culpado pela falta de jeito do pequeno António. Todos menos o próprio. Feitios.

 

Depois começou a cantar a canção do pião de forma cada vez mais rápida e precisa. Lá cantar cantava, mas pôr o pião a dançar e a zunir isso não conseguia. Enquanto enrolava a guita ao redor do corpo bojudo do brinquedo, lá ia murmurando a canção do pião. Mas ele nada de rodar. Mal batia no chão, dava duas ou três voltas e tombava de seguida.

 

“Leio e não acredito”, desabafa o R., mesmo sabendo aquilo que os estimados já sabem de cor e salteado. “O que é? Desembucha de uma vez e depois cala-te. Ameacei-o.” E ele: “Então não é que o PSD fez aprovar na Assembleia Municipal de Chaves seis moções, todas elas rogando ao «seu» Governo que volte atrás, pugnando pela manutenção da urgência médico-cirúrgica, indignando-se contra o encerramento do Pólo da UTAD e apelando a uma reforma da administração e organização do território. Achas que isto é para valer? Achas?” “Não. Acho que é para inglês ver. Mas, por favor, deixa-me escrever…” E voltei de novo a desligar.

 

O menino António desistiu então do pião e foi à procura do seu amigo João que, naquele momento, se entretinha a tocar o tambor. Sorrateiramente, enrolou-lhe a corda à volta das pernas e puxou-a com força. João deu um enorme trambolhão. Ele para um lado e o tambor para o outro. António, veloz como uma doninha, correu na direção do tambor e pôs-se a examiná-lo. Desconfiado, como sempre, mantinha o seu amigo debaixo de olho.

 

De um momento para o outro, o tambor foi atirado contra a esquina de uma cadeira, depois a prenda rolou pelo chão até bater na perna de uma mesa. E ali ficou, exibindo o buraco da sua inutilidade. António, insatisfeito, foi então à procura do barco do amigo e arrancou-lhe as velas. Com a madeira do casco bateu no tambor. Mas não tentou sequer tocá-lo, desfê-lo. A sua mão não produziu o mais pequeno ritmo.

 

Quando de novo João quis servir de intermediário, apesar das dores que sentia no corpo e no seu orgulho ferido, António de novo pegou na guita e tentou fustigá-lo. João, já sem paciência, saiu da sala e foi brincar para o pátio.

 

António pegou mais uma vez no pião e tentou de novo colocá-lo a rodar e a zunir. Mas o pião, mal saía daquelas mãos pouco habilidosas para o pôr a rodar, dava duas ou três voltas e caía para o lado. O António insistiu, insistiu e tornou a insistir. Mas o pião, mal saía das suas mãos, dava duas ou três voltas e caía para o lado.

 

Irado, foi novamente à procura do João, mas o amigo já tinha ido brincar para sua casa. António começou então a chorar e tão alto o fez que a sua mãe, que era bastante surda de um ouvido, veio logo em seu socorro. Ele, amuado, queixou-se do abandono do João. A mãe fez-lhe uma festa e disse-lhe para ir à procura de outros amigos.

 

António pegou no pião e na guita e foi para a rua. Pediu ajuda a muitos meninos, prometendo-lhes partilhar muitos dos seus brinquedos estropiados e abandonados. Os mais pobres e os mais rufias, ainda tentaram ajudá-lo. O António, todos o sabiam, só era bom numa coisa: na ambição. Tudo o que via invejava. Mas não conseguia brincar, não arranjava amigos verdadeiros, não levava nada ao fim. Acabava sempre por brincar sozinho. Isto se considerarmos brincadeira danificar os seus brinquedos e estragar os dos amigos. 

13
Jan12

O Homem Sem Memória - 97

João Madureira

 

97 – Quando se mistura a noite, com prostitutas, homens debochados, poetas inconsequentes, comida e bebida, mais cedo ou mais tarde a mistela tende a explodir. E foi isso precisamente o que aconteceu.


O José porfiava insistentemente no seu Bocage. E lindo que ele era. Lindo, não na sua beleza física, que era discutível, como todos bem sabemos, mas antes na sua excelência poética. Mas função que mete artistas introduz obrigatoriamente debate. Os artistas são assim: conflituosos devido à sua inquietude. Então se forem assumidamente de esquerda são quase sempre insuportáveis. Ou melhor, são sempre insuportáveis.


Claro está que falar de “intelectuais” e “esquerda” em Névoa era uma boutade do tamanho do Larouco. Então falar de “intelectuais de esquerda” (porque “intelectuais de direita”, desde que Sartre lhes negou a existência, extinguiram-se como os dinossauros) na terra adotiva do José era desmesura de otimismo, ou, dito de outra forma, era um tremendo excesso de zelo. Gado deste tipo até pode nascer na província, mas só consegue medrar em Lisboa.


Resumindo, e abreviando, por aqui não havia gente de esquerda e, muito menos, intelectuais. Tudo por estas bandas era um arremedo circunspecto. Menos as prostitutas que eram pessoas de bons modos e suculentas carnes. Isto quando não falavam e somente porfiavam no seu mester. Na província as meretrizes não eram muito dadas à conversa. Tudo por aqui era pão pão, carne carne, sexo sexo e missinha missinha. E vinho, porra, e vinho, que era Baco e que também era sangue de Cristo.


Podemos afirmar, sem faltar muito à verdade, que a pinga era o principal elemento motivador de desordens. Por aqui manjar presunto, salpicões, chouriços, batatas, grelos e demais iguarias finas, não predispunha por aí além à controvérsia. Já quando se exagerava no tinto do Gorçoço, todo o cenário tendia a complicar-se de forma preocupante.


O Senhor A. podia tentar fornicar com a sua prostituta preferida, que ninguém notava. Muitas das vezes nem o próprio dava bem conta do sucedido. Nem ele nem a companhia. Mas daí não vinha mal ao mundo. O cavalheiro porque não se encorpava. A madame porque já tanto lhe fazia. Não é que o seu sexo se gastasse, amarrotasse, encolhesse ou distendesse de forma definitiva, como muita gente teimava em acreditar. A sua falta de entusiasmo tinha muito mais a ver com o fastio. Todos sabemos que usar é bom, até porque é a função que cria o órgão. Já abusar é maçador. E contraproducente, porque o desregramento cria resistências. E quanto mais abuso mais resistência… etc.


O senhor B. podia comer uma travessa de carne, beber meia remeia de tintol, ingurgitar uma giga de grelos e um pote de batatas, que ninguém lhe levava a mal. Podia arrotar, peidar-se e rir como um alarve, enquanto apalpava a sua prostituta de serviço, que nenhum dos tertuliantes reparava ou comentava.


O Senhor C. podia dançar o tango acompanhado pela prostituta dançarina, que bailava com todos mas só fornicava com o seu Um, que aparecia já quase manhãzinha embuçado no seu embuço, como muito bem lembra o fado de Lisboa (que um dia, ó glória!, chegará a património imaterial da humanidade, tal como o flamengo, que é uma canção de ciganos urbanizados e o tango, que, à semelhança do fado, é uma música monótona e fastidiosa de bordéis nascida nos prostíbulos dos bairros típicos das respetivas capitais nacionais) podia contar anedotas porcas, invocar Deus e o Demónio, jogar à lerpa por boa maquia, insultar o Salazar, o Cerejeira e o Américo Tomás que ninguém diria uma palavra em contra. Ou a favor. A não ser o tal personagem embuçado que remoncava sempre dentro do seu disfarce: “Não estivesse eu embuçado dentro do meu embuço e outro galo cantaria. Mas seja tudo pelas alminhas.”


Podia até o senhor Delegado de Saúde juntar o útil ao agradável e, enquanto se divertia, comia e bebia, muito para além dos seus sábios conselhos e da sua douta sapiência, trabalhar examinando o que tinha a examinar nas senhoras que distribuíam luxúria, para que a gonorreia e a sífilis não atacassem por junto os membros dos principais membros das forças vivas da cidade, que ninguém reparava ou tão-pouco achava incómodo.


Podia o senhor embuçado tentar cantar o fado enquanto tentava fornicar, por aposta múltipla, uma prostituta tão elástica que conseguia copular, fumar e fazer números de faquirismo sem se aleijar ou aleijar quem se aventurava a ser seu partner, que nem um ai se ouvia. E muito menos um ui.


Tudo isto e muitas mais coisas, que aqui não conto por competente timidez e subido respeito pelo direito à reserva dos estimados leitores e dos seus entes mais queridos, podiam acontecer que ninguém levava a mal.


Tudo comiam, tudo viam, tudo ouviam e nada diziam. Pareciam autênticos maçons, apesar de muitos não o serem e muitos outros serem associados apoiantes de algumas ordens religiosas. Mas quem não tem pecados que se atreva a atirar o primeiro calhau.


Tudo isto acontecia até ao momento em que o vinho subia à razão dos aprendizes de intelectuais de esquerda.


Nos distintos cavalheiros que tentavam divertir-se, talvez um pouco levianamente para a ocasião, para o seu estatuto social e para a época que lhes tocava viver, o vinho do Gorgoço dava-lhes para dormir como cavalos cansados, para fornicarem em seco e para cantarem o fado da Samaritana em honra das distintas samaritanas que tão bem os aturavam, ou o fado do Embuçado em honra do rei que apreciava embuçar-se para ir assistir a sessões marialvas de fados e guitarradas.


Por vezes, a algum dos mais bebidos dava-lhe para se armar em forte e tentava esmurrar o parceiro que ou arriscava gozar com a sua embriaguez ou com a sua incompetência para se manter macho ativo no seu entretenimento. Mas dali nada de significativo surgia.


Já no grupo dos letrados, o vinho tendia a originar discussões intermináveis, cada um tentado complicar cada vez mais argumentos já de si muito complicados. Ora isto quase sempre ia desaguar em disputas de egos, ideologias, gostos artísticos e preferências estéticas.


Todos no grupo sabiam que especialmente um quase intelectual, dado à pintura, quando bebia uns copos se tornava intratável. Sem vinho era uma jóia de rapaz e um artista plástico com grande qualidade. Pintava quadros de um enorme sentido estético, alicerçado numa fina ironia conceptual. Mas com a pinga ficava insuportável.


Uma noite, já depois de muito porfiar no sexo, e de muito insultar um burguês anafado que teve a coragem de falar muito mal da pintura de Cherico, virou-se para o José e exigiu-lhe que declamasse, já que se julgava tão bom poeta, um poema de sua autoria. O José, sabendo do mau vinho do seu amigo pintor, fez que não ouviu. Mas o pintor insistiu e tornou a insistir até que na sala se fez silêncio, quando o José, virando-se para ele, lhe disse: “Posso não ter ainda escrito um grande poema, mas sou incapaz de plagiar.” Ao que o pintor retorquiu: “Como te atreves a acusar-me de plágio, tu um mísero aprendiz de Fernando Pessoa, que declama Bocage como uma freira disléxica?”


De insulto em insulto, a tensão subiu de tal modo que acabaram os dois à porrada. E a confusão cresceu tanto que, o Embuçado, contrafeito, teve de se desembuçar, e, em nome da autoridade conferida ao tenente da GNR, exigir calma enquanto estabelecia ligação com o seu plantão ordenando que a patrulha de serviço acudisse ao nº 19 da Rua das Gatas.

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