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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Fev12

O Poema Infinito (89): poema bucólico

João Madureira

 

As plantas deslocam-se à velocidade do verde. E o amor aumenta e a quietude que nos rodeia também. Repousamos na relva num desejo eterno que desperta por cima das flores selvagens. Este é o ciclo glorioso da primavera. Viajamos numa folha nervosa e descemos às raízes das árvores. As águas refazem-se do desejo dos minerais. As nossas bocas beijam rapidamente a memória labiríntica do fogo mágico. A terra incha à semelhança das sementes. Os jardins abandonam as aves e as aves mergulham nos olhos incandescentes das crianças e as crianças brincam com os animais e lambem breves nuvens de açúcar mascavado e suspiram e riem e choram. Este é o ciclo do regresso à terra dentro de uma história fascinada dentro da sua inverosimilhança. A paisagem prolonga-se por entre ruínas azuladas. Juntamo-nos com o olhar vago no ângulo recortado das árvores paralelas como se fôssemos dois atores que tremem e sorriem sem saber porquê. E o silêncio espreita e as raízes irrompem e tremem e sorriem sobre a quietude abandonada das pedras. Tu dizes: não tenhas medo, somos apenas um sonho numa folha paralela do tempo. Os teus lábios tremem e sorriem e a vida espreita-nos desconfiada. Um vento vertical adere aos nossos cabelos e os lagartos pressagiam calor e sombras e dedos afiados nas pedras e pedras cheias de musgo e plantas recolhidas na sua forma composta. E os insetos sossegam de repente aproximando-se lentamente dos malmequeres tranquilos no seu amarelo e branco superficial. E o vento torna a sossegar. E as colinas latejam nos seus sonhos imutáveis. Cresce-nos água na boca e os nossos corpos enchem-se de sinais que são rosas intactas. Não tarda e os nossos olhos vão entusiasmar-se a filmar o crepúsculo. Mais logo a memória poderá reconstruir toda a nossa vida a partir de imagens difusas. Por agora ainda nada é evidente. Só o azul. Todo o azul do mundo. Sabemos e sentimos que o instante se ergue como os carvalhos sussurrantes das serras frias do barroso. Lá ao longe tilintam os guizos das cabras na sua lucidez imitativa. O pastor sonha com a sua imobilidade impressa na paisagem. As borboletas acompanham a radiografia do céu. Os rios sacodem a língua turva dos montes e o isolamento vertiginoso das giestas e dos tojos e das urzes. Alguma chuva suspende-se nas encruzilhadas feridas pelos resíduos do pó. Os animais recolhem às suas tocas fixadas pela espera.  

27
Fev12

Da expetativa ao imobilismo (IV) – Presunção e água benta… (II)

João Madureira

 

Ora então, senhor presidente, vamos lá de novo a mais uma voltinha, mais uma viagem, pela sua “década de progresso”.

 

Na relação que tenho na minha frente, o senhor presidente, relativamente à requalificação urbana, enumera alguns planos de pormenor, pontes e intervenções em locais diversos. Realizações que, bem vistas as coisas, devem fazer parte da atividade normal de qualquer autarquia. O senhor dá-lhe destaque porque pretendeu fazer da sua gestão autárquica um número redondo. De facto, a sua liderança à frente do concelho andou quase sempre às voltas. Às voltas. Às voltas. Mais uma voltinha, mais uma viagem.

 

A sua liderança, titubeante e incerta, por muito que lhe custe admitir, andou à volta das palavras, à volta do improviso, à volta do imobilismo, à volta do não te rales. E a requalificação urbana, apesar do que enumera, ficou muito aquém do que foi prometido e do que era devido.

 

Grande parte dos imóveis do centro histórico ou estão abandonados e a ameaçar ruína, ou, então, para lá caminham. O centro histórico da nossa cidade é sinónimo de abandono, desqualificação, destruição e desinserção arquitetónica. É normal encontrarmos edifícios onde por cima de uma loja recuperada se encontra um ou mais andares desabitados e a ameaçar desabamento. Nada parece fazer sentido. Em suma, o tecido urbano do coração da nossa urbe definha perante a teimosa, ou a apática indiferença, dos senhorios ou inquilinos e o “não te rales” da autarquia. Uma parte substantiva dos edifícios mais antigos da zona medieval de Chaves é atualmente um viveiro de ratos e aranhas. Quando não de prostitutas e toxicodependentes mais atrevidos. À ruína imobiliária junta-se a miséria humana.

 

De seguida fala-nos da valorização ambiental, nomeadamente das margens do rio, e de mais algumas envolventes. Posso confessar que, no meu ponto de vista, o projeto Polis, que o senhor denomina, penso eu, como “envolvente das margens do rio”, para não lembrar o engenheiro de má fama que lhe deu nome e forma, é uma obra que deve orgulhar qualquer autarca digno desse nome. De facto, valorizou imenso o rio e todo o espaço circundante, sendo atualmente um lugar de lazer e de exercício físico que só pode orgulhar uma cidade. Eu utilizo-o todos os dias e sinto-me lá muito bem.

 

Pensei mesmo em dar-lhe publicamente os meus parabéns, mas alguém me avisou (talvez o grilo falante do Pinóquio), que o projeto já estava pronto e em fase de desenvolvimento quando o senhor presidente tomou conta dos destinos da nossa urbe. Ou seja, as obras foram executadas no seu mandato mas o projeto tem outro mentor e distinto impulsionador. E olhe que uma boa ideia e um bom projeto por vezes definem tudo. Ou quase tudo.

 

A dada altura inclui como valorização ambiental as obras executadas no Jardim Público. Ora porra, senhor presidente, o que foi feito no Jardim Público não tem nada de valorização ambiental. O que lá fizeram foi, primeiro, um atentado ambiental, segundo, um assassinato de memória, e, terceiro, um esbanjamento de dinheiros públicos. Sei que foram lá enterrados, pelo menos, 500 mil euros com o resultado que todos sabemos. Era preferível tê-los dado à Misericórdia, ou iniciado outro Centro Escolar. E o que lá foi feito é um atentado ao bom senso e à inteligência dos flavienses. Abateram-se árvores centenárias, arrasaram-se quase todos os canteiros e terraplanou-se o jardim com saibro. Transformam um jardim harmonioso e emblemático num descampado. E nisso gastaram 500 mil euros. Consumiram 500 mil euros a destruir um espaço público de qualidade. Mais lhe valia ter ficado quieto. E se assim fosse ainda possuíamos o Jardim Público que todos aprendemos a amar e a admirar e o erário público tinha ficado um pouco menos endividado. É por estas e por outras que estamos penhorados até à medula.

 

Essas medalhas já ninguém lhas pode tirar, senhor Presidente: o assassinato do Jardim das Ferreiras e a destruição do Jardim Público. Será que tem alguma coisa contra os jardins públicos da nossa cidade? E, infelizmente, é por tais atentados à nossa memória coletiva que irá ser lembrado quando terminar o seu mandato. 

 

Lembra-nos ainda do saneamento em Espaço Rural: cerca de trinta e sete obras. Eu até lhe podia dar os parabéns. E até tencionava. Olhe que tencionava mesmo, pois nasci numa aldeia. Mas não consigo entusiasmar-me a esse ponto. E sabe porquê? Pois, porque é triste que depois de ter fechado as escolas e, consequentemente, ter imposto que crianças e pais rumem à cidade, o que originou que nas nossas aldeias vivam meia dúzia de idosos, algumas galinhas, porcos e um ou outro burro, o senhor tenha feito o saneamento básico para os fantasmas. Agora que às nossas aldeias chegou a estrada alcatroada, a água canalizada, a luz e o saneamento básico, já lá não vive quase ninguém. É esta a nossa triste realidade. Isto não é um país, é mais o filme de um país, e de um concelho, onde tudo chega tarde e a más horas.

 

E também nos fala das acessibilidades. E nos bons acessos à Zona Empresarial de Outeiro Seco. Olhe, senhor presidente, outra grande asneira sua, pois gastaram-se ali milhões de euros para nada. O Parque está às moscas e nas estradas nem os animais passam, nem lá pastam, porque o alcatrão e o betão tomaram o lugar dos lameiros e das hortas. Ficou provado que a equipa que lidera tem mais olhos que barriga.  

 

Relativamente às atividades económicas deixe que lhe dê uma palavrinhas sobre os Santos, desde logo porque não atino com a razão de o senhor presidente citar a famosa feira como um projeto da sua autoria. Desde que me conheço, ela foi sempre realizada sem que eu algum dia me tenha lembrado de a ligar a um projeto da autarquia. E, muito especialmente, da que atualmente lidera. Mas, já que o lembra, deixe que lhe diga que a cada ano que passa a Feira dos Santos vai perdendo identidade, qualidade, interesse e valor económico e social. E sabe porquê? Pois porque a autarquia não tem feito nada por ela. Não lhe tem acrescentado nada. Tem deixado tudo ao deus dará. Ou quando se lembrou de executar algumas obras para a rentabilizar e requalificar, logo as abandonou porque viu que as pessoas não aderiram. Ora esse tipo de projetos devem ser primeiro testados e comprovados. E só depois executados. Mas a câmara que o senhor preside primeiro faz as obras só depois é que se preocupa com o facto de as pessoas considerarem se a infraestrutura que custou muito dinheiro serve ou não os objetivos para que foi construída.

 

 

Depois fala de serviços e cooperação, dos quais saliento a “Modernização Administrativa” e a “Eurocidade”. Relativamente à primeira apenas relembro aos estimados leitores mais distraídos, se é que ainda os há, que a tal “modernização” mais não é do que sanear quem não convém ao vice camarário e colocar no seu lugar os seus servis apaniguados.

 

No que se refere à segunda, desde logo afirmo que é um embuste. A “Eurocidade” é um embuste, uma falácia, uma ficção que não serve nada nem ninguém. Não serve os galegos nem serve os trasmontanos. É um ardil que foi montado para mais facilmente os dois concelhos (Chaves e Verin) poderem aceder aos fundos comunitários. Mas o que a princípio até parecia uma boa ideia, resultou apenas numa dita “agenda cultural” de teor quase ridículo, num mural do facebook para “criar” amigos, em algumas insípidas e enfadonhas visitas do inexpressivo presidente do concelho de Verin e da presença na feira dos saberes e (dis)sabores de uma barraca com fotografias dos caretos galegos, quando não de um trio de caretos enfadonhos e grosseiros que não se cansam de badalar os chocalhos, com que afastam as pessoas de bom gosto e atormentam as crianças mais sensíveis. 

 

Ou seja, a “modernização administrativa” resume-se a um ajuste de contas do vice camarário contra os funcionários competentes que não se vergaram, nem se vergam, aos seus ditames e à sua prepotência, e a “Eurocidade” é um conto infantil destinado a adultos, mas com um enredo muito mal elaborado, com uns protagonistas insossos e uma moral muito próxima do grau zero da honestidade.

 

Antes de terminar, por hoje, não posso deixar passar em branco o fundamento de que a câmara de Chaves, durante os últimos dez anos, investiu em 100 projetos/obras, 125 milhões de euros. Dito desta maneira até parece uma verdade insofismável, um facto indesmentível, um argumento irrebatível. 125 milhões de euros é uma pipa de massa. Pois é, sim senhor. Só que  gastar muito dinheiro não é sinónimo nem de muitas, ou sequer, de boas obras. Mas nem as obras são muitas, nem o dinheiro gasto pela gestão autárquica de João Batista foi bem gasto. Lá esbanjado foi. Mas o resultado é aquilo que todos sabemos: um tremendo endividamento.

 

Mas se fosse apenas isso, o senhor presidente podia argumentar em sua defesa que todos os outros municípios o fizeram e que até o governo da Nação cometeu o mesmo pecado. Mas não nos deixemos iludir pela falácia. A título de exemplo, paradigmático, podemos referir a eliminação ou descaracterização de espaços ancestrais (Freiras e Jardim Público), a teimosia nas obras redundantes (levantamento do pavimento da Rua de Santo António) e o entretém com minudências (as inenarráveis cestas de plástico da mesma rua).

 

Para tais dislates, melhor seria o senhor presidente ter ficado quieto. Mas todos sabemos que não podia. O que já não sei é se os flavienses estão pelos ajustes. E é nestes últimos onde a minha esperança no futuro se torna possível.

 

Urge mudar de política. Urge mudar de vida. Urge mudar de protagonistas. 

24
Fev12

O Homem Sem Memória - 103

João Madureira

 

103 – Durante a tarde, ele e o pai puseram-se a saltar entre os comunicados do MFA difundidos na rádio e os transmitidos na RTP. E, como eles aconselhavam, mantiveram-se calmos em casa. Nem a Dona Rosa, que era a mais arrojada da família, se atreveu a ir ao comércio da Dona Bárbara comprar o arroz de que necessitava para fazer o jantar. O povo, como muito bem dirá no futuro um patusco militar altamente graduado que chegou a primeiro-ministro, é sereno.


O guarda Ferreira fumava cigarro atrás de cigarro e bebia copo atrás de copo, enquanto escutava a rádio, via a televisão, ouvia as palavras um pouco imprecisas do seu filho mais velho e escutava os ralhetes da eterna maldisposta Dona Rosa. Mesmo o cão, as galinhas e os porcos, estranharam tanta gente em casa ao mesmo tempo e à mesma hora. Aquilo não era normal. Naquela família não. E, para piorar as coisas, as revoluções (ou melhor será dizer os golpes de Estado?) têm destas bizarrias, acontecem quando menos se espera.


Até a rapaziada mais nova teve dificuldade em atinar com as brincadeiras. Toda a gente metida em casa durante um dia inteiro colocou a família Ferreira à beira de um ataque de nervos. A televisão apenas transmitia música clássica, o que chegou a exasperar de maneira eloquente a Dona Rosa.


“Puta de música esta que me mexe cá com os nervos de uma maneira que não estou habituada. Também quem chama a isto música não pode estar bom da cabeça. Não terão por lá programas de folclore daquele senhor que fala e fuma devagar? Isso sim é que é música. A música do povo. Agora estes manjericos que se fartam de bufar em funis e arranhar as cordas daquelas violas pequerruchas, não tocam nada de jeito. Música daquela é boa para os funerais…”


Aqui o guarda Ferreira não se conteve, como era seu timbre e feitio, e retorquiu: “Então não vês que isto é mesmo um funeral. Está visto que o regime está morto. Pobre Marcelo Caetano. Ele que tanto fez pelo país vai ser destituído de forma vergonhosa e ainda por cima vão chamar-lhe todos os nomes e mais alguns. Só há uma forma do poder não cair na rua, é ser entregue ao Spínola. O distinto general é um militar prestigiado e sabe exercer a autoridade com… com…”, “Com muita autoridade” resolveu finalizar a Dona Rosa. Logo após puseram-se a olhar para os músicos tentando atinar com algo de mais substancial para dizer.


“E tu?”, perguntou a Dona Rosa ao guarda Ferreira. “E eu o quê?, tentou responder perguntando o guarda Ferreira à Dona Rosa. E ela: “Não achas que deves fazer alguma coisa?” E ele, entre o envergonhado e o surpreendido: “Fazer o quê? A GNR não se pode meter nisto. A política é para os políticos.” E ela: “Para os políticos, dizes tu. Para os políticos?, pergunto eu. Que políticos? Ao que oiço, são os militares que estão a tomar conta do poder. E tu, que eu saiba, és militar. E, como militar, também devias dar o teu contributo. O pior é ficar em casa de braços cruzados enquanto os outros se mexem e tratam da sua vida.” E ele, entre o surpreendido e o envergonhado: “Que contributo posso eu dar? Ir para a rua bater no povo que se manifesta? Ou ir ao encontro dos soldados revoltosos e disparar contra os seus tanques e os jipes? Espero que não estejas a insinuar que me devo colocar ao lado dos revoltosos. Eu sou todo do lado do Marcelo. Além disso estou a gozar os três dias de folga a que tenho direito. Eles que se amanhem. Nestes acontecimentos é sempre o povo quem deita os foguetes e apanha as canas, mas quem faz a festa e come os banquetes são os graúdos.” E ela já um pouco mais assanhada: “Continuas o bardamerdas de sempre. Só te interessa fumar e beber. És um medricas. Nestas alturas é que é preciso fazer alguma coisa. Podias tentar dar nas vistas para ver se te promoviam a cabo. E, depois, com um bocadinho de sorte e engenho, bem que podias chegar a sargento. O Vicente foi assim que conseguiu singrar na vida, meteu-se lá numas confusões e arranjou maneira de cair nas boas graças dos maiorais. Hoje é sargento e comanda o posto de Boticas. É para que vejas. Mas tu não. Tu és para aí um medricas, um pindérico que apenas se preocupa em beber e em fumar. Desenmerda-te homem. Desenmerda-te.”


“Olha, olha, lá vêm de novo as notícias!”, tentou apartar conversa o guarda Ferreira. Mas a Dona Rosa não estava para aí virada. “Não te ponhas com paleio de parvo para ver se me distrais. Eu se estivesse no teu lugar ia imediatamente para o Porto apresentar-me ao serviço e tentar fazer alguma coisa. Ficar em casa é uma cobardia. E dos cobardes não reza a história.”


“Por favor mulher, tem tento na língua. Olha os filhos!”, avisou-a o guarda Ferreira. Ao que ela retorquiu: “Muito dizes preocupar-te com os filhos, mas quem os cria sou eu. Aqui sozinha com o mirrado vencimento que me entregas todos os meses. Sou para aqui uma rodilha. Se te preocupasses realmente com o seu futuro tentavas ser alguém. Não te acomodavas com a tua miserável condição de guarda e tentavas progredir na carreira. Se tu não o fazes, outros o farão em teu lugar. Disso não tenhas a menor dúvida! Mexe-me com os nervos seres para aí um pamonha. Um homem sem ambição. E quem não tem ambição não presta para nada. Só é útil para servir os outros.”


“E que queres tu que eu faça, mulher do diabo?”, perguntou o guarda Ferreira. “Não sei. Além disso não sou eu que uso a farda”, respondeu a Dona Rosa. “Mas sempre te digo que não era pessoa para ficar em casa enquanto os meus colegas se movimentam de um lado para o outro à procura de uma maneira de saírem da confusão sem se prejudicarem.”


Mais uma vez o guarda Ferreira questionou a sua mulher: “ E se for para o Porto, que lado é que devo apoiar? O dos revoltosos ou o do Marcelo Caetano?”


“O teu”, respondeu-lhe a Dona Rosa com o sentido prático que se lhe conhece. “O teu.”

22
Fev12

O Poema Infinito (88): o voo, a canção e o grito

João Madureira

 

Andam canções estranhas no ar. Canções que começam pelo fim. Canções que são rostos de desilusão. Canções pungentes com gritos dentro. Canções com sons agudos de sexo. Canções de dedos e pensamentos de véspera. Canções de ausência e desânimo. Canções frias. Canções de fronteira. Ao fundo uma paisagem abre-se como um fruto maduro, uma paisagem veementemente incompleta empolgada pelo sonho extenuante dos criadores. No seu centro está o núcleo mágico do silêncio e dentro dele encontra-se o livro da vida e da fala. Todo o tempo foi destruído. Todo. E dentro da sua ausência Deus vive agora o tempo obscuro do esquecimento e da morte. No sítio por onde ele desapareceu chove continuamente uma chuva de palavras loucas. Nos teus olhos vê-se agora um fogo que anda. Grandes letras saem-nos da boca e enchem as folhas de poemas resplandecentes. E a memória avança. A memória das árvores e da neve e dos pássaros mortos pelo frio. Toda a natureza é uma máquina de força. Daí entrarmos nela a uma velocidade de silêncio e espanto. Corremos pela noite dentro como crianças feéricas. E lembramo-nos das estrelas e elas aparecem brevemente no céu. E as portas abrem-se como magnólias expostas ao tempo. E as ruas estão repletas de palavras que caçam nomes e os nomes dizem que os sonhos cantam linhas agudas e cidades inundadas de gritos e de viagens e de parêntesis de amor e de vírgulas desoladas pelo tamanho dos textos. A terra irada enche-se de silvas e deixa-se vencer pelo lirismo molhado da tristeza. E grita.  E grita de revolta por todas as naturezas mortas dos pintores. E grita pela destruição das aldeias quietas. E grita pela morte dos caminhos. E grita pelos poemas mudos dos poetas cegos. E grita pelo incêndio das searas obsessivas. E grita pelo enigma da eternidade. E grita pelo imprevisto silêncio dos cantores. E grita ainda pelo sol, pelos frutos, pelas crianças, pela água, pelo leite e pelo turbilhão dos dias. E a terra sente por fim que as palavras se elevam iluminadas por uma estranha tristeza divina. E só agora a minha boca pousa sobre a tua inspirada pelo voo melancólico dos melros. 

20
Fev12

Da expetativa ao imobilismo (III) – Presunção e água benta… (I)

João Madureira

 

Então vamos lá às obras, senhor Presidente. Ou, como muito bem diz o meu amigo, aos “projetos, às obras executadas e a executar”. E, como todos bem sabemos, as obras são sempre a grande fantasia de qualquer autarca responsável e o sonho de qualquer empreiteiro que se preze. Por vezes, tais fantasias e sonhos transformam-se em realidade com o sucesso que todos sabemos. Pois não há político que não se pele por uma obra emblemática e não existe empreiteiro que não se sacrifique em tentar ganhar a obra do seu contentamento. Daí, quase sempre, nascem amizades muito profícuas e que servem ambas as partes. Mas deixemo-nos de efabulações e voltemos à realidade. Se a realidade nos permitir.

 

O meu jornal regional de referência diz que o senhor presidente, “aproveitando o número 10” referiu as 10 mais emblemáticas áreas da sua intervenção. A saber: educação, cultura, desporto, ação social, requalificação urbana, valorização ambiental, acessibilidades, atividades económicas, desenvolvimento rural e serviços e cooperação.

 

Ou seja, referiu 10 áreas que são todas. Mas também é toda a ficção que conseguiu arrebanhar para o seu auto elogio (pois nem uma deixou de fora), porque, bem vistas as coisas, e descontando as palavras (pois palavras leva-as o vento), o que resta de concreto e palpável é muito pouco.

 

Já o número de ações é um dado mais fiável: 100. E também é emblemático. Toda a instituição que se preze gosta de celebrar, ou lembrar, os 100 anos de existência, ou os primeiros 100 dias de desempenho de um mandato. Olhe, senhor presidente, até eu me orgulho que o meu blog (TerçOLHO) esteja muito próximo dos 100 mil visitantes e que a minha narrativa do “Homem Sem Memória” tenha atingido na semana passada os 100 capítulos. Vaidades.

 

Mas, se me permite, vamos lá às suas 100 ações. Pois estou em crer, que o blog é-lhe perfeitamente indiferente e a minha narrativa nem lhe aquece nem lhe arrefece. Por exemplo, na educação refere, logo de início, o projeto “Viver a Escola”. Pois lá nome pomposo tem, mas pergunte por aí aos nossos munícipes, alunos, pais e professores incluídos, se sabem o que isso é. Nomeia também a “sua” “Carta Educativa”, e bem, pois nisso, tenho de reconhecer, foi um enorme sucesso. O seu a seu dono.

 

Todos sabemos que mandou fechar todas as escolas das nossas aldeias, o que determinou que muitos dos nossos povoados tenham chegado ao fim da sua milenar existência. Fala do apoio nos transportes e nas refeições aos nossos estudantes como se isso fosse, sequer, um projeto. Isso é uma obrigação sua a que não pode fugir pois recebe o dinheiro do Estado Central destinado a esse fim.

 

Qualquer dia também nos vem dizer que cobrar a água é um projeto autárquico da “sua” equipa. Nós sabemos que para atingir o número 100 teve de inventar, e muito. Mas até a ficção tem os seus limites e as suas regras, senão não se pode designar de fição, mas sim delírio. E enquanto a primeira é um dos elementos essenciais à boa literatura e ao bom cinema, já a segunda é uma doença que necessita de ser vigiada e controlada para bem de quem dela sofre.

 

E por falar em água, deixe que lhe lembre a notícia de que a Câmara, que o senhor sabiamente preside, é uma das cinco autarquias (Loures, Albufeira, Évora, Lisboa e Chaves) que mais deve às Águas de Portugal, com dívidas acima dos 10 milhões de euros cada uma. E, que eu saiba, os munícipes flavienses não deixaram de pagar a água e demais impostos diretos e indiretos.

 

Está visto que não é apenas o Estado Central o mau pagador. Ao que parece, o deixar crescer a dívida não foi só atributo do Cavaco Silva, do Guterres, do Durão Barroso e do Sócrates. No país é prática comum acumular dívida como quem colecciona selos, pois as gerações futuras, que já estão super endividadas, lá terão de pagar os erros de má gestão dos seus avós e dos seus pais. Isto é se ainda existir país. O que cada vez duvido mais.

 

Relativamente à cultura fala-nos de vários projetos, como por exemplo a Biblioteca Municipal, mas deixe que lhe lembre que a Biblioteca Municipal não foi um projeto seu mas sim de equipas autárquicas que o precederam. O senhor limitou-se a assistir ao início das obras e acompanhamento de um projeto já existente. Já o “Museu de Arte Sacra” é obra de sua autoria. Mas deixe que lhe lembre que o espaço está quase sempre às moscas e que até serviu para lá desterrar, como forma de punição, um artista plástico da nossa terra que o senhor convidou para vir trabalhar consigo.

 

E também a “Chaves Viva” é um projeto com a sua chancela. Mas também sabemos para o que serviu, e para o que serve: para dar emprego à “rapaziada” do partido e, por ter um estatuto de autonomia, o fazer sem prestar contas a ninguém, a não ser a meia dúzia de associados e dirigentes que também trazem na carteira, quase todos eles, o cartão laranja.

 

E o “Douro Jazz” também é um projeto da sua Câmara? Deixe também que lhe diga que não. Uma coisa é aproveitar alguns grupos que se deslocam à nossa região e pagar-lhes para fazerem um desvio até Chaves para aqui tocarem umas coisitas. Outra, bem distinta, é organizar um festival de jazz. Se o citado evento fosse flaviense não teria, com toda a certeza, a palavra “Douro” escrita na sua denominação.

 

Já a famosa “Agenda Cultural” é um projeto genuíno da sua equipa. E que bom que ele é. E também é distinto, repleto de interesse, vanguardista, dinamizador e altruísta. E, deixe que lhe diga mesmo mais, é bem o retrato da atividade cultural na nossa cidade: pequenina, comezinha e ridícula. Resumindo: liliputiana.

 

Já o desporto é um enchente de riso, porque é um amontoado de lérias. Por exemplo, chega a falar das provas desportivas ao ar livre (BTT) e de um “Regulamento de Apoio à Formação”. À formação de quê e para quê? E, relativamente às provas desportivas, deixe que lhe lembre que até a Casa de Cultura de Outeiro Seco chegou a fazer bem mais e com bastante menos dinheiro e pessoal.

 

Segue-se a ação social. E logo a abrir fala-nos da Carta Social. Lá cartas tem o senhor. O meu amigo é prolixo em epístolas. E esta é mais uma. Talvez doutra índole, mas, mesmo assim, curiosa e repleta de surpresas. Lembra-nos do apoio aos extratos sociais desfavorecidos (Ó raio de expressão mais infeliz, então os mais desfavorecidos, para si e para a sua equipa, são um extrato? Contas é que podem ter extratos, as pessoas, mesmo as mais pobres, são gente, não são extratos de nada.) e de mais uma dezena de projetos de índole indefinida e de concretização duvidosa. Mas a que me chamou mais à atenção foi o combate à toxicodependência.

 

Olhe que não, senhor presidente, olhe que não. A sua autarquia não a combate. Diz que a combate. E uma coisa é dizer, outra, bem distinta, é fazer. Por isso deixe que o cite: “Na ação política, mais do que intenções contam os resultados”. E os resultados aí estão com toda a sua cruel evidência. Bastava-lhe sair um dia à noite e ir à zona dos bares, na parte velha da cidade, para se inteirar de que a realidade é muito diferente do que diz, ou do que lhe dizem. Olhe que ali o tráfico e o consumo de estupefacientes são muito elevados. Mas, pelo que vou vendo, o local nem sequer é devidamente policiado. A polícia só lá vai quando é chamada e, mesmo assim, com toda a animosidade do mundo. Mas também reconheço que, como a Câmara só está aberta durante o dia, o combate por si propalado deve resumir-se a um que outro sermão de circunstância para vir nos jornais (eu sei, eu sei, e o seu vice também o sabe, não há almoços grátis, estamos aqui, estamos lá, ei sei, eu sei) ou, à falta de interlocutor, no seu Boletim Municipal. Mas é durante a noite que a droga toma conta dos espaços e da cabeça dos consumidores. Só que a essa hora já todos dormimos a bom dormir. E até ressonamos dentro da nossa indiferença.

 

Peço-lhe desculpa, mas hoje vou ficar-me pela metade do cardápio do seu auto elogio. Para a próxima edição fica a análise ao que ainda falta da sua relação dos “projetos concretizados, obras executadas e a executar”.

 

Até lá. Um abraço. 

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