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102 – O José hibernou durante uns tempos. Não saía de casa sob pretexto nenhum. Podemos ser levados a pensar que foi por medo, mas ele, como todos sabemos, era uma pessoa corajosa, ou imitava muito bem. Podemos ser levados a pensar que foi por precaução, mas o José, como todos também sabemos, era um rapaz instintivo. Podemos ainda ser levados a pensar que foi devido a qualquer motivo de força maior, mas nem essa hipótese é um argumento válido para justificar esta estranha atitude do nosso protagonista. Foi mesmo por fastio. O José estava farto de tudo.
Estava farto do seminário, estava farto das amizades, estava farto das tertúlias, estava farto dos pobres, estava farto dos ricos, estava farto das putas, estava farto dos poetas, estava farto dos bêbados, estava farto dos fascistas, estava farto dos antifascistas, estava farto de ler, estava farto de escrever, estava farto de comer. E quase estava farto de viver, o que era o indício mais preocupante.
Dormia muito, comia o indispensável para sobreviver, lia o suficiente para não embrutecer, via televisão por pura diletância e ouvia música para se manter vivo. No seu aparelho de rádio, e reprodutor de cassetes, que o pai lhe tinha oferecido para se entreter na prisão, ouviu vários LP’s de Cat Stevens até perder a paciência e o álbum “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band” dos Beatles até à exaustão. E leu “O Idiota” de Dostoevsky como quem se diverte a ver sangrar um porco. Teimas!
A mãe bem batalhou com ele para que saísse de casa, para que fosse ter com os amigos, para que fosse tomar ar, para que fosse à missa, para que fosse às aulas ao Liceu. Mas o José parece que tinha apreciado a prisão. A luz do sol incomodava-o e as pessoas aborreciam-no.
Deixou crescer o cabelo e a barba. Apenas tomava banho dia sim, dia não e mudava de pijama seguindo a mesma sequência. Nisso era extremamente exigente e metódico. Os pijamas eram de cetim às riscas azuis claras e escuras, sendo que as riscas claras eram mais largas do que as escuras, enquanto o robe era também de cetim às riscas azuis escuras e claras, sendo que as riscas escuras eram mais largas do que as claras. Os chinelos eram também de tecido em tons de azul.
Quando o pai chegou no fim do mês a casa e encarou com ele, disse-lhe, entre o triste e o estupefacto: “Pareces um parvo vestido de azul às riscas.” Ao que ele respondeu: “É o que sou, meu pai. E cada um é para o que nasce.” E o pai: “Não te iludas, tu não nasceste para parvo.” E o José: “Lamento desiludir-te, mas sou mesmo parvo. Só dou problemas.” E o pai: “De facto és um rapaz inquieto. E essa inquietação pode trazer-te muitos dissabores.” E o José: “Ainda mais? Por que será que não consigo ser como as outras pessoas? Eu gostava tanto de ser uma pessoa normal! Esforço-me tanto.” E o pai: “Olha, não te esforces tanto, talvez assim consigas ser um pouco mais aquilo que pretendes.”
No dia seguinte, o guarda Ferreira conseguiu que o José fosse até à taberna do Trinta comprar um garrafão de vinho para acompanhar o frango que a Dona Rosa assava no forno. No caminho encontrou o Graça que lhe fez uma grande festa e o convidou para ir até à cidade ver o que por lá se passava, pois a rádio informou que tinha havido um golpe de Estado. “E isso o que é?”, perguntou fazendo-se de assombrado. Ao que o amigo lhe respondeu: “É a modos que a mudança de regime. Parece que o governo do Marcelo Caetano caiu e os militares tomaram o poder.” “Parece?”, perguntou o José. “Não parece. É. Então, vens ou não vens?” Desafiou o Graça. “Agora não posso. Está cá o meu pai e vamos almoçar em família”, desculpou-se o José. “Talvez mais lá para a tarde.” “Acontecimentos destes dão-se uma vez na vida”, avisou o amigo. “Pois, eu sei, mas já não estou com o meu pai vai para uns meses e não lhe posso dizer que deixo de almoçar com ele para ir contigo ver as pessoas aos berros e aos pulos. Além disso, estou em crer que o povo vai andar aos berros e aos pulos durante muito tempo”, desculpou-se de novo o José. “Continuas na mesma, um misantropo incorrigível”, disse o Graça. “Não me dês desses elogios senão coro”, ironizou o José. E dali se foi com o garrafão numa mão e a incredulidade noutra.
“Então o tenente Sampaio disse mesmo a verdade”, pensou enquanto sorria e dava um pontapé num cão que veio colocar-se a seu lado.
Mal chegou a casa, ligou a televisão, mas o que nela viu não lhe deu nenhum sinal de que tinha acontecido alguma coisa de grave. Na caixinha marota von Karajan desenhava gestos enérgicos com a batuta enquanto o seu cabelo se movia de um lado para o outro com a cadência dos compassos da sinfonia de Mozart, ou seria de Beethoven? Ligou a rádio mas naquele momento só de lá saía música corriqueira e banal.
Intrigado, dirigiu-se à cozinha onde o pai estava de roda da fogueira a tentar brincar com os filhos mais novos e perguntou-lhe: “Pai, sabes de alguma coisa?” “Acerca de quê?”, interrogou-o o pai. “Encontrei lá fora o Graça que me disse que houve um golpe de Estado e que o Marcelo Caetano foi destituído”, informou-o o José. E o pai: “Ó caralho, então estamos fodidos.” E o filho: “Pai, olha os pequenos. Se calhar devias contactar o teu posto. Isto pode dar para o torto.” E o pai: “Para o torto parece que já deu. Mas como estou de folga, os que lá estão que se amanhem.”
As palavras caem das árvores como pedras. Palavras com consciência dentro. Palavras em contínua explosão. Palavras com a consciência brilhante do sol ou com a consciência infinitamente frágil do ar. Palavras com a consciência efémera da vida e da sua eminência fúnebre. A cabeça fica vazia enquanto a mão escreve a consciência das palavras. As palavras que são desejo, que são abandono, que são desencontro. As palavras que são sombras que respiram o vazio e o esplendor do nada. As palavras que são espaços finitamente infinitos. Tu, no entanto, falas da consciência e da vontade das palavras combaterem a força viva do desejo. Esse é o espaço aberto dos corpos ainda livres. Pedra sobre pedra, as palavras definem a exata e verdadeira dimensão das sombras na clareira, da sua consciência vegetal, da sua unidade íntima com os animais. Por isso há como que uma densidade inconsciente dentro da consciência dúctil das palavras, dentro do seu grau variável, dentro das linhas livres das tuas mãos que agora procuram a forma transparente da água e das margens lisas da neve e dos círculos abertos dos objetos que no campo inventam a lentidão e as pausas do esquecimento da terra. De novo as palavras recomeçam o seu limpo e intacto alcance do espaço, a nudez recomeçada da tua face, ou o rumor do teu olhar que percorre o murmúrio do desejo. A consciência volta de novo com as palavras que agora interrogam a respiração da infância. Palavras que nos interrogam sobre o desejo obscuro da respiração das imagens, que embranquecem as páginas de sombra da virgindade das árvores. Por isso, as palavras dentro da sua inconsciência consciente procuram o resultado da velocidade absoluta da raiva, da esquizofrenia ordenada das obsessões, da periferia da lucidez, da orla amargurada que habita em cada um de nós. Dizes que as palavras inconscientes incendeiam todas as imagens e as imagens das imagens. Essa é a referência absoluta dos textos: serem incendiados por imagens.
E de novo volto à putativa “década de progresso” da gestão do PSD, e de João Batista (ou melhor será dizer, da sua fação partidária alargada aos neutros e aos que estão sempre com quem vence), com a vontade do costume. Viver numa cidade de província tem destas coisas, por mais voltas que possamos dar, voltamos sempre ao local da desavença.
Entendamo-nos, dizer meias verdades é ainda pior do que mentir, porque nos fundamentamos no parecer (não no ser), porque confiamos nas aparências, porque persistimos no embuste, tingindo-o com o manto diáfano das palavras que não correspondem aos factos. E na apresentação (encenação?) da sua “façanha” à frente do município, João Batista, apesar de não mentir, também não falou verdade. Ou não contou a verdade necessária.
Encheu as páginas dos jornais (eu sei, eu sei, e o seu vice também o sabe, não há almoços grátis, estamos aqui, estamos lá, eu sei, eu sei) com palavras bonitas, politicamente corretas, agradáveis de ouvir, fáceis de dizer, mas que falam de uma outra coisa, a ficção política. Podíamos aqui falar das tão propaladas cem obras realizadas e das quinze que afirma querer ver concluídas até ao final do seu mandato. Podíamos, mas fica para a semana que vem. Cada coisa a seu tempo.
Desta vez quero referir-me, sobretudo, à demagogia com que elaborou o seu discurso. A determinado momento afirmou: “O desenvolvimento constrói-se em bases sólidas tendo como pilares fundamentais as pessoas, o território, a criação de condições para o desenvolvimento de atividades económicas e a cooperação.” Lembrando que esse foi o seu “rumo claro” e a “sua matriz explícita” nos dez anos da sua gestão. São bonitas de ouvir, tais palavras, e ficam bem a quem as profere, mas, infelizmente, senhor presidente, não correspondem à verdade.
A verdade é que a população do nosso concelho diminuiu durante os últimos dez anos, o que retira de imediato toda a solidez ao seu argumento. Se as pessoas foram embora é porque aqui não lhes foram criadas as condições necessárias e suficientes para conseguirem viver com a dignidade indispensável. Por isso rumaram a outras terras, porque esta onde nasceram passou a ser-lhes madrasta. Não lhes proporciona emprego, não lhes fornece a educação superior necessária, não lhes dá espaço para criarem família, para se divertirem com qualidade, para se cultivarem com regularidade e para viverem com esperança no futuro. Por isso migram, abandonando pais e mães, amigos, terras e casas. Antigamente ainda iam e voltavam. Agora vão e não voltam mais. Só uns dias nas férias e um que outro nas quadras festivas.
Ou seja, o tal desenvolvimento de que se orgulha assim tanto não existiu, o território ficou mais desertificado e as atividades económicas são hoje um arremedo do que já foram. Por exemplo, apesar de ter construído o parque industrial de Outeiro Seco, que custou uma fortuna e se encontra literalmente às moscas, servindo quase exclusivamente para os mais novos irem praticar o arremesso livre com pedras, por lá não se instalaram novas indústrias, nem no nosso concelho emergiu qualquer atividade económica digna de registo. E sem atividade económica não há emprego e sem emprego não há salário e sem salário não há pão, nem casa, nem roupa, nem educação, nem família. E sem família não há crianças e sem crianças não existe futuro. É por isso que Chaves expira a cada ano que passa. É por isso que os campos estão abandonados, as casas desertas e os caminhos cheios de ervas. É por isso que nas aldeias só vemos pessoas idosas, galinhas e cães. É por isso que temos que mudar de rumo. É por isso que temos de mudar de vida.
Para lhe ser sincero, relativamente à cooperação não faço a mínima ideia ao que se quer referir. Só vislumbro uma única possibilidade: a Eurocidade, mas essa é uma outra ficção que será desmontada a seu tempo.
Pensei que o senhor presidente ia falar no comércio local, que diz defender mas que abandonou à sua sorte. Basta subir a rua Direita e descer rua de Santo António para nos inteirarmos do seu lento definhar. O comércio local, uma das principais riquezas da nossa textura urbana, está tão anémico que até dói. As lojas mudam de mãos, e de atividade, a um ritmo frenético, sugerindo falência atrás de falência. Isto apesar de muitos dos proprietários, ou arrendatários, gastarem aquilo que têm e não têm em obras de remodelação que se revelam uma aposta ruinosa. Falta-lhes apoio, falta-lhes incentivo, falta-lhes dinâmica. As pessoas preferem as grandes superfícies. E se calhar a Câmara também não vê grande mal nisso.
É relevante que, por se sentirem sós e abandonados, muitos dos mais dinâmicos comerciantes, proprietários e locatários do coração da nossa cidade, sentindo que a autarquia os abandonou, se tenham unido e criado uma associação para combaterem a desertificação e o abandono a que estão sujeitos. E fizeram-no porque amam Chaves. Porque foram aqui nados e criados, porque é aqui que vivem e é aqui que querem continuar a viver. E já que a autarquia, como bem dizem os flavienses, não lhes “bota uma mão”, são os próprios a pôr mãos à obra e a tentar dinamizar uma parte da cidade que, apesar de histórica, se vê abandonada. E as noites por ali são muito difíceis de passar.
Por ali trafica-se droga em quantidades assinaláveis e a prostituição é uma dura realidade. Uma realidade que envolve mulheres emigrantes que se prostituem à luz de velas em quartos abandonados, em casas de madeira, mesmo ali perto da Igreja Matriz e a uma ou duas centenas de metros da Câmara Municipal. Só que isso acontece durante a noite e, à noite, o centro da cidade transforma-se num bairro abandonado à sua sorte e à sua desgraça. Enquanto os mais jovens se tentam abstrair da dura realidade em que vivem consumindo álcool e outras substâncias bem mais tóxicas, as pobres mulheres latino-americanas, ou do Leste europeu, satisfazem as carências afetivas de adultos solitários.
Apesar da dura realidade, que causa incómodos e transtornos a quem continua teimosamente a fazer do centro da cidade o seu local de trabalho e residência, a autarquia faz olhos cegos perante a triste realidade e varre o lixo para debaixo do tapete. Sei de proprietários que estão na disponibilidade de cederem espaços habitacionais gratuitamente a associações recreativas e culturais para tentar criar um tipo de ambiente mais saudável que expulse dali os drogados, os traficantes e as prostitutas, para que a degradação não se torne endémica e atinja o ponto sem retorno.
João Batista, na cerimónia de propaganda servida aos jornalistas, refere que o balanço da sua “década de progresso” é positivo. E afirmou que “pretende ser lembrado pela obra feita e pelo que ela representa para o bem geral dos cidadãos”.
Mais uma vez lamentamos dizer-lho, mas o balanço da sua “década”, apesar das suas boas intenções, não é positivo. É, pelo contrário, negativo. E não sou eu que o afirmo, são as pessoas que foram obrigadas a ir-se embora do nosso concelho, muitas das vezes com o coração apertado e as lágrimas nos olhos, que o evidenciam e o confirmam. E, que eu saiba, ninguém abandona uma cidade em progresso. O contrário é que é verdadeiro.
Depois, tentando confundir desejos com a realidade, diz que a “sua” equipa “funciona independentemente de quem está à frente”, porque estão “cheios de entusiasmo”. Para já, perdoe-me que lhe diga, mas não tem equipa, e, muito menos, entusiasmo. Se é que algum dia os teve. Todos sabemos que já passou o testemunho ao vice camarário, mas o senhor presidente também sabe que o seu segundo nunca fez verdadeiramente parte da sua equipa.
O António fez sempre parte da equipa do António. E o senhor tentou sempre fazer que não via a realidade. Mas todos sabemos que pior cego é aquele que não quer ver. E sempre lhe digo que com a cretinice feita em relação às chefias na Câmara, que penso que ainda preside, o senhor não se vai embora sem que a água lhe dê pela barba, desculpe, pelo bigode. Hoje o poder não se compadece com os Pilatos de trazer por casa. E o povo não lhes perdoa desde tempos imemoriais. E o senhor presidente sabe disso melhor do que eu.
Antes de terminar, por hoje, deixe que me refira a uma coisa que, depois de lida e pensada, me inquietou. Por me preocupar com a ideologia e por prestar atenção às definições, reconheço que fiquei de boca aberta quando, a determinada altura, destacou, relativamente aos seus dez anos de “progresso”, “uma matriz social-democrata inequívoca” (até aqui cheguei, mas quando fez o enunciado é que me fui abaixo do entendimento): “Realismo na ambição, pragmatismo e humanismo na gestão.” Então esta é que é a sua matriz social-democrata? Raios parta, mas esta matriz é a de qualquer um, seja ele social-democrata, democrata-cristão, socialista, comunista, fadista, taxista, bancário, jogador de golfe ou filósofo da treta.
Mas deixemo-nos de perifrásticas, como muito bem diz o povo que quer passar por erudito, e vamos tentar finalizar esta crónica da melhor maneira possível, pois tristezas não pagam dívidas, nem desfazem dúvidas.
Perdoe-me, mas razão tem Francisco Taveira, quando na sua análise da situação política, feita no mesmo local e à mesma hora, disse sem papas na língua: “Há vida para além dos problemas financeiros e económicos. Falharam os economistas, agora é preciso dar lugar aos psicólogos, aos filósofos e aos poetas, pois é preciso trazer novamente alegria para a política.”
Desde já afirmo que estou inteiramente de acordo com o seu antigo vereador. Realçando, talvez, a necessidade de dar lugar aos poetas. Mas, senhor presidente, o seu vice não encaixa na definição apresentada. Além disso, a política, a necessitar de alegria, com o seu vice vou ali e já venho. Sisudo como é, encaixa melhor no perfil marcial. E a política autárquica democrática entregue a um autocrata é uma aberração.
O poeta Manuel António Pina diz que há muitos bons poetas em Portugal, mas do que nós estamos precisados não é de bons poetas, é de boas pessoas. Pois o seu vice, não sendo poeta, podia até ser boa pessoa. Mas nem mesmo assim consegue, por muito que tente, encaixar no figurino, pois quem o conhece sabe do seu instinto persecutório, da sua arrogância institucional, do seu caráter belicoso, da sua ânsia de poder, da sua manifesta prepotência que o levou a destituir e despromover técnicos superiores da Câmara, com provas dadas desde há muitos anos, leais à sua independência, rigorosos nos seus princípios e competentes no seu serviço.
Mas, o que todos sabemos é que vice-presidentes já passaram pela Câmara uns quantos, enquanto os técnicos que o seu vice destituiu aí vão permanecer até ao fim das suas carreiras, dando o melhor de si com o firme propósito de servir o município e os seus munícipes. E, estou em crer, não se importarão muito quando virem o António sair, rodeado pelos seus compinchas a quem agora arranjou os tachos, pelo portão gradeado com o rabo entre as pernas para não mais entrar.
Por isso é que eu, e muitos outros como eu, já estamos com saudades do futuro. Então, até lá. E que a sabedoria nos acuda e a paciência não nos abandone.
101 – E o equívoco foi desfeito em muito pouco tempo, pois, pelos vistos, havia interesse manifesto de ambas as partes.
O tenente disse ao José que estava livre desde aquele preciso momento. E que a sua prisão, podendo não ser bem entendida pelo próprio, tinha mesmo uma explicação plausível e bem diferente daquela que podia parecer à primeira vista.
A princípio foi preso, como toda a cidade sabia, por desacatos, ofensa à moral pública e embriaguez, mas a segunda prisão foi motivada por uma outra razão. Aparentemente ela ficou a dever-se à provocação feita às autoridades civis, militares e religiosas. Mas isso foi aparentemente. Por detrás dessa detenção existiu o firme propósito de não o deixar cair nas garras da polícia política, que já o vigiava bem de perto.
A princípio, o tenente Sampaio não foi muito sensível às petições feitas pelo sargento, a mando dos progenitores do José. Não estava para ali virado. Mais a mais, o rapazola era um provocador sem tino, sem norte, sem educação nem respeito pelas autoridades. Era um jovem dissoluto que não merecia qualquer tipo de apoio ou condescendência.
Mas a amizade e o espírito de corpo falou mais alto. A GNR é como uma família onde todos se apoiam, especialmente quando estão em causa os familiares mais próximos.
O filho de um elemento da GNR cair nas garras da PIDE/DGS, além de uma derrota, era um pretexto para os elementos da polícia política se poderem vingar de uma força policial que frequentemente amesquinhavam e da qual gostavam de troçar. Ora se apanhassem o filho de um agente da ordem detido por estar ao serviço da subversão e dos comunistas, espremiam-no como um limão até confessar que tinha sido ele quem sabotou a cadeira que vitimou Salazar.
Por isso tinha estado detido no posto da GNR, onde os sanguinários agentes da PIDE/DGS tinham dificuldade em se aproximar. Porque, além do mais, o tenente Sampaio também tinha os seus contactos e a sua influência. E nestas coisas da ordem e da lei, nem tudo o que parece é. Por debaixo da farda de um oficial da GNR também bate um coração sensível.
O José tudo isto ouviu com a maior calma do mundo. Tinha chegado à conclusão de que vida melhor do que aquela ia ser muito difícil de arranjar. Comer bem e a horas, ler sem horário e sem limitações e dormir sem contemplações, não estava ao alcance de qualquer um. Claro que estar encerrado dias a fio dentro de quatro paredes e ver o sol aos quadradinhos também tinha os seus inconvenientes. Por isso, limitou-se a ouvir o que o tenente Sampaio tinha para lhe contar e a acenar com a cabeça sempre que lhe era exigida uma resposta ou solicitado algum auxílio para ir mantendo a conversa.
No entanto uma pergunta pertinente foi feita ao senhor tenente por parte do José. Por que é que ia ser libertado, se nada do cenário traçado se tinha alterado? A PIDE/DGS podia prendê-lo mal soubesse da sua libertação e todo o esforço feito na sua proteção e encobrimento teria sido inútil.
O oficial da GNR concordou com a pertinência da questão, mas pouco mais adiantou. Disse-lhe que mantê-lo preso dali para a frente podia colocar em causa o seu emprego, a sua sobrevivência e a segurança e o bem estar da sua família. “E porquê?”, tornou a insistir o José.
“Não te posso adiantar muito mais, mas devo avisar-te de que algo vai acontecer no país que o porá de pantanas”, adiantou com alguma tristeza e outra tanta insatisfação, o tenente Sampaio.
“A ser assim, o que para si poderá ser uma má notícia, para mim, com toda a certeza, é uma ótima novidade”, rejubilou o José.
“Olha, José, o que aqui te disse deve ficar apenas entre nós. Na política, existem muitas realidades e distintas verdades. Todas elas passíveis de triunfar ou de serem derrotadas. Nada nesta vida é definitivo. De certo só temos a morte. O resto é ir vivendo cada dia como se fosse o último. E amanhã logo se verá. Hoje eu por ti, amanhã tu por mim. E o que vier será.
Quando ambos olharam através dos vidros da janela do gabinete do tenente Sampaio para o Jardim das Freiras, repararam que os varredores já tinham limpo meia praça e que não tardaria a amanhecer. O Brunheiro ainda era uma mancha escura no horizonte e os pássaros começavam a agitar as suas asas voando de árvore em árvore.
“Não sei se está a acabar a noite se está a nascer o dia?”, perguntou distraidamente o tenente Sampaio. “Para o caso tanto faz”, disse por dizer o José. “Tanto faz não”, teimou o GNR. E declarou: “Neste caso faz toda a diferença.” “Como assim?”, tornou a inquietar-se o José. Desta vez, o tenente Sampaio clarificou: “É que se for a noite que esteja a terminar, convido-te para beber um whisky irlandês e fumarmos uns charutos cubanos que tenho ali guardados no armário. Mas se já estiver a amanhecer, apenas te posso convidar a irmos à Pensão Império tomar o pequeno-almoço. Cabe-te a ti decidir. Hoje já estou por tudo.”
Naquele preciso momento, os primeiros raios de sol começaram a colorir o cocuruto da serra. Quase de imediato, o José levantou-se da cadeira, que até ali tinha sabiamente aquecido e, num gesto decidido, fechou as portadas das janelas. “A noite dura o tempo que um homem quiser”, disse olhando sorridente o rosto impassível do oficial da GNR. “O alvorecer chegará quando for o seu tempo.”
O tenente Sampaio dirigiu-se ao esconderijo e dele tirou a bebida e o tabaco. De seguida pegou em dois generosos copos de vidro e meou-os de aguardente irlandesa. Por estar alegre, o José lembrou-se de que o guarda Arménio também era homem para apreciar beber um pouco de whisky e predispôs-se a ir convidá-lo. Mas o tenente da GNR lembrou-lhe que, apesar do prometido alvorecer da liberdade, que, diziam, podia estar a caminho, a noite ainda estava por sua conta. E não havia tradição das elites, mesmo que provincianas, partilharem os seus momentos de reflexão e intimidade, com o povo, mesmo que fardado.
“Vai-te habituando. A situação de quem manda é sempre diferente daquela de quem é mandado. Sempre.”
E para ali ficaram a beberricar e a fumaçar os seus charutos com muita propriedade e estilo. Depois despediram-se como dois respeitáveis inimigos e cada um foi à sua vida.
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