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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

08
Fev12

O Poema Infinito (86): a mesa iluminada

João Madureira

 

A mesa está iluminada pelos elementos que alargam e concretizam o espaço e o tempo. Lá fora a terra respira a surpresa do vento. Cá dentro o afeto ajusta-se ao nosso tamanho. A mesa expõe a inteligência do pão e do vinho. É essa a insondável alegria dos limites. Cada vez mais é visível a invisibilidade e a insondável saudade da tua prolixa nudez. Regressa de novo a memória aberta, a presença das coisas esquecidas, o culto do trabalho, o rigor da preguiça, a compenetração, o estudo, o mundo aquático dos teus olhos recolhidos. E a idade retém o sossego e a sua sombra antiga. Todos os sítios se alargam na minha consciência e o brilho dos fenómenos mais comezinhos torna-se um imprevisto de júbilo e solidão. Interminavelmente a luz continua a guiar-nos para o abismo. O teu rosto é uma abundância de beleza. As tuas formas são como as formas humanas voadoras, os animais voláteis e os frutos lúcidos da terra pintados por Chagall. Esta é a hora em que toda a sabedoria se endominga à mesa e o dia se iliba do esplendor da noite e Deus se vinga da sua policromia. Fixo-me na tua paciência iluminada e no teu exercício de espera. Por isso invento o sítio perfeito onde os ecos são irrepetíveis. Deduzo a paciência da música. Se um poeta antigo se afirmava um pastor de rebanhos, eu nomeio-me um pastor de ritmos. E seja o que Deus quiser. Por isso continuo a ouvir a paciência atenta da luz que ilumina a mesa e a tua invisível visibilidade e a saudade aberta da tua nudez dilatada e o rigor da memória e o mundo imprevisto do nosso júbilo e a sabedoria lúcida do brilho dos teus olhos e daí deduzo o fulgor específico da firmeza, da subtil firmeza da solidão, da singular extensão das imagens fotográficas, da mentira limpa da eternidade, da passagem fugaz de todas as tardes já passadas, da espessura invisível dos limbos, da gravitação neutra da morte, da abstração da inteligência, da ascensão tensa dos santos, do júbilo dos hereges, da penitência de todas as mulheres que sempre foram e serão virgens e também de todas as mulheres violadas, de todas as frases feitas e desfeitas com todo o carinho por homens desistentes. De novo o tempo é uma deriva frágil. Alguém celebra uma nova narração. A ausência de glória é uma dádiva eficaz. Por isso nos afeta a fé que se baseia na prefiguração da verdade. Por isso nos acolhemos naquilo que nos falta. 

06
Fev12

Da expetativa ao imobilismo (I) – a liquidação da memória

João Madureira


O prometido é devido. E eu cumpro sempre com a palavra dada. Mesmo que me custe, o que não é manifestamente o caso. Por isso hoje vou dedicar o parco tempo de que disponho a escrevinhar umas palavras de aplauso e reconhecimento ao presidente da Câmara de Chaves pela sua “década de progresso” frente aos destinos da nossa cidade e do nosso concelho.

 

Neste preciso momento levanto as mãos do teclado do computador e começo a aplaudir. A minha mulher olha para mim como que eu esteja à beira da loucura e o cão do vizinho começa a ladrar de forma compulsiva. À Luzia, porque ao cão não consigo, explico-lhe a razão do aparente desatino. Ela sorri e junta-se a mim nesta íntima, mas sincera, festa laranja de aniversário autárquico. Talvez peque um pouco por tardia, mas não deixa de ser feita com boa vontade e algum carinho.

 

Pois é, o barrosão João Batista está à frente dos destinos da nossa urbe há dez anos. Uma década é muito tempo. Talvez até tempo a mais. E se os quatro anos do primeiro mandato foram razoavelmente promissores, os do segundo revelaram-se desinteressantes e os últimos dois são pródigos em imobilismo, o que nos obriga a levar a avaliação da gestão de João Batista para uma espécie de classificação muito próxima da redundância. E, disso tenho quase a certeza absoluta, muito por culpa dos seus vereadores. Especialmente do seu vice que, como é explicado por quem segue a política autárquica com regularidade, é uma força de bloqueio. Muitas das vezes força de bloqueio até do bom senso e da razoabilidade.

 

Convenhamos, na competência e na gestão política dos dossiês, João Batista está uns furos acima do seu entorno, desde logo porque o atual presidente é um homem de trato fácil, culto, generoso e protagonizador de consensos. No que contrasta com todos os seus vereadores, com a honrosa exceção de um que aqui não refiro para não criar ainda mais problemas a uma equipa que se desmorona a olhos vistos. E tudo por culpa do vice camarário, que, na sua sofreguidão pelo poder, atropela tudo e todos, na tentativa de colocar nos lugares de chefia o seus apaniguados, mexendo nas estruturas do partido com mãos de pedreiro e na chefias da Câmara com ares de capataz que tudo quer refazer e tudo desfaz.

 

E é com um misto de incredulidade e espanto que observo a desistência e o lavar de mãos, como Pilatos, por parte do presidente em quem os flavienses votaram para levar o seu mandato até ao fim com honestidade, transparência e empenho. Sabendo ele, e nós, que até ao lavar dos cestos é vindima, esta postura não deixa de ser estranha e, quase me atrevo a dizer, profundamente desonesta.

 

Chegou-me aos ouvidos (e noutra altura voltarei ao assunto) que o vice camarário se comportou na reorganização das chefias de divisão da autarquia, com a falta de jeito que o carateriza, num misto de uma raposa no galinheiro com o desempenho de um elefante numa loja de porcelana, virando tudo de pernas para o ar, premiando os lambe botas e os amigalhaços, despromovendo os técnicos superiores, arredando os competentes, colocando na prateleira os independentes, importunando os insubmissos.

 

Na fotografia do jornal que ilustra a notícia que tenho na minha frente, apenas João Batista sorri. E penso que o sinal é indicativo de algo. Apenas ele sabe que está fora da luta fratricida que se instalou no PSD local, tendo em vista constituir uma equipa para concorrer às próximas eleições autárquicas. Todos os outros andam a ver quem salta fora, quem é abalroado ou quem vai ser forçado a desistir. Na dança das cadeiras, a música é de um filme de suspense, animosidade e aleivosia.

 

Olhando para a foto, e procurando na minha memória alguns factos significativos, reparo que entre os que aparentam cara de caso, há pelo menos um que foi utilizado como moeda de troca para encaixar um terceiro elemento num lugar da vereação. Ei-lo, agora, que regressa, atropelando alguém que já se queixa de forma veemente de que foi ultrapassado e, até, vilipendiado na sua dignidade e na sua dedicação à gestão de João Batista.

 

Na foto citada, todos, menos o presidente, contemplam o vazio. João Batista observa as mãos e sorri. E eu olho para uma jovem e interrogo-me sobre quem seja. Eu que sou da terra, que vivo na terra, que conheço muita gente cá da terra, a ela não conheço. Apesar disso, sei pela foto que a jovem também tem a sua cota parte de responsabilidade na gestão municipal do PSD.

 

Confirmo, embora isso me custe, que na política basta aparecer lá no partido, agitar umas bandeiras, colar uns cartazes, ser amigo do líder, para aparecer nas listas e até chegar a exercer o cargo de vereador. Isto apesar de se ser desconhecido da maior parte da população da cidade e do concelho, não possuir qualquer tipo de experiência política relevante nem se lhe conhecer, ou reconhecer, atributo intelectual, político ou social de valia.

 

Está claro que não é o ilustre desconhecido que tem a culpa. O verdadeiro culpado é quem faz uma equipa a pensar nos equilíbrios partidários em vez de pensar na capacidade política e cultural dos integrantes da lista para servir os cidadãos com competência e seriedade. Em política não pode valer tudo. E muito menos a vacuidade e a inoperância.

 

O senhor presidente afirma que “o espírito de equipa prevalece sempre, facilitando a transformação das ideias em projetos e os projetos em obras. Os resultados estão aí. Na ação política, mais do que as intenções, contam os resultados.”

 

Estou de acordo com as suas palavras, senhor presidente. E com a intenção do que afirma. Mas, para nosso pesar, todos sabemos que as desavenças, os conflitos, as pequenas invejas e as pequenas traições, começam a prejudicar, de forma irreversível, o trabalho da sua equipa. Se, neste momento, se pode falar de uma equipa, o que duvido. Pois, é certo e sabido, que o senhor cada vez mais desaparece de cena para dar visibilidade ao seu vice. E isso raia, deixe que lho repita, quase a fronteira da indecência e da desonestidade intelectual e política.

 

E, também por muito que me custe, reparando nas obras que resultaram da transformação das ideias da “sua” equipa, e do seu “espírito”, fácil é concluir que as ideias eram fracas, pois as obras são pífias e, muitas delas, redundantes ou incongruentes. E, se como muito bem diz, na política, mais do que as intenções, devem contar os resultados, a avaliação dos seus mandatos, especialmente dos últimos anos da sua gestão, são de um cinzentismo preocupante.

 

Daí o senhor presidente ter dificuldade em destacar a obra mais marcante. E, deixe que lhe diga, que as obras mais emblemáticas que resultam do seu mandato, são um ataque inqualificável à memória, à vida e à tradição de todos os flavienses que amam verdadeiramente a sua terra e as suas gentes.

 

Ao acabar de forma tão radical com os principais espaços de memória da nossa urbe, o senhor matou o coração da nossa cidade, deu um golpe fatal na nossa identidade, destruiu quase irremediavelmente os espaços do nosso contentamento. Por isso a nossa cidade é hoje uma terra descaracterizada, fria, abúlica, imóvel.

 

E por hoje, fico-me por aqui. Pois a conversa já vai longa. E as suas outras afirmações, que terei todo o prazer em comentar da próxima vez, exigem da minha parte novo fôlego e alguma paz de espírito que, confesso, perdi no momento em que me lembrei da destruição do Jardim das Freiras por parte da autarquia da minha terra.

 

Digo-lhe isto com toda a tristeza e, também, com toda a certeza, do mundo: se verdadeiramente amasse esta terra, era incapaz de pensar sequer na possibilidade de destruir o Jardim das Freiras. Acha capaz de alguém de Lisboa pensar em acabar com o Cais das Colunas ou o Jardim do Tabaco, ou alguém do Porto destruir as Fontainhas, ou alguém de Montalegre arrasar a Mijareta? No entanto o senhor foi capaz de destruir o Jardim das Freiras e de lá assentar um chão tão raso que mais parece uma campa (apesar daquele ser campo santo para mim e para toda a gente da minha geração, que também é a sua e a do seu vice, por isso a afronta ainda dói mais), sem que isso lhe tivesse tirado uma hora de sono.

 

O senhor afirmou, sobre o assunto, que “na política uma má decisão é sempre melhor que uma não decisão”. Antes de tomar uma decisão daquelas, o melhor era ter pensado em reconstruir, com qualidade, o Jardim das Freiras. Pois o culpado pelo genocídio da nossa reminiscência foi, a seu tempo, castigado por causa dos atentados perpetrados contra a nossa memória coletiva.

 

E o senhor tinha esse dever, tinha essa obrigação. Mas, infelizmente, o novo-riquismo e o mau gosto prevaleceram. E isso é culpa sua. Talvez tenha querido dar um sinal de diferença em relação à gestão anterior. Mas o que em política torto nasce tarde ou nunca endireita.

 

E por hoje é tudo, e olhe que já não é pouco. Um abraço. 

03
Fev12

O Homem Sem Memória - 100

João Madureira

 

100 – Então vamos lá avançar. O José passou ainda algumas semanas nos calabouços do posto da GNR de Névoa sem que a História registe nada de significativo. Nem a História, nem nós, temos que reconhecer. Mas também não é por isso que a narrativa não vai avançar. Está visto que existiu aqui um pequeno hiato. No entanto não é um hiato, por muito incomodativo que seja, que nos vai demover do firme propósito de chegar ao fim com esta história.


Queremos prevenir, desde já, os estimados leitores de que nós somos muito persistentes. Em persistência quase ninguém nos ganha. Avancemos de novo.


O José saiu da prisão pela calada da noite, apesar de já ser dia. Pode até parecer caricato, e mesmo paradoxal, mas até os acontecimentos mais caricatos e paradoxais têm sempre uma explicação científica. E quando dizemos científica queremos com isso afirmar que, apesar das aparências, foi verosímil, testada, e atestada, pelos factos e pela razão.


O tenente Sampaio, numa reunião onde apareceu impecavelmente Embuçado, e embeiçado, como era seu timbre e feitio, soube, por linhas travessas, da boca de um companheiro de borga, que algo estava para acontecer e que esse algo ia alterar profundamente a orientação política e social do país. Quando, ainda o desbocado não sabia, mas era ponto assente, entre as hostes do reviralho e os mini grupos dos iluminados agitadores clandestinos, que tal momento estava para breve.


Ora tamanha reviravolta ia provocar uma razia nas estruturas dirigentes do Estado Novo, especialmente nas forças da ordem, que, como todos sabiam, eram a espinha dorsal do regime e o seu principal sustentáculo.


Avisaram-no com bons modos, algum carinho e muita pedagogia, que era chegada a hora de eliminar todos os ficheiros comprometedores, desfazer-se de todos os livros apologéticos em favor de Salazar e Caetano, guardar em local acautelado os religiosos, e, sobretudo, libertar os prisioneiros, especialmente os de aparência antifascista, pois um homem desses podia enviar um agente da autoridade graduado para o mesmo sítio onde ele tinha penado os seus pecados e a maldita ação subversiva. 


Podemos afirmar, com o rigor que nos carateriza, e do qual são os estimados leitores testemunhas privilegiadas, que ao Embuçado nem o repasto se lhe engoliu nem o resto se lhe compôs de modo a não lançar suspeitas na sua amásia.


A amante, desconfiada, pôs logo a putaria em estado de alerta: algo estava para acontecer de muito grave na cidade e no país, pois os militares graduados do exército, da GNR, da Polícia e os vários agentes da PIDE/DGS tinham deixado comida no prato, vinho nas canecas e em incómodo descanso as suas companheiras de folguedo. Nem conseguiram, ó tragédia!, ó ignomínia!, acompanhar em coro, e com a devida nostalgia, a fadista de serviço nos curiosos, e originais, versos: Ai quem me dera… ter outra vez vinte anos…


Por causa de um desbocado antifascista dos fraquinhos (e dos fracos também esta história não reza), em vez de uma festa, a folia transformou-se em velório.


Podemos afirmar, com a independência que nos distingue, e da qual são os prezados leitores mais uma vez testemunhas únicas e irrepetíveis, que o primeiro grupo socioprofissional a saber do golpe militar do 25 de Abril em Névoa, e nos arredores, foi o das meretrizes. E tudo porque nem o Embuçado, nem os seus companheiros de profissão, conseguiram, como lhes era exigido pela tradição e pelo cargo, desempenhar, com sangue frio e o devido caráter, as habituais funções a que dedicavam a sua energia, a sua preparação e a sua pertinácia.


De facto, todos estes ilustres agentes da ordem tinham por senha a expressão: Viva a carreira de tiro, nós acertamos sempre no alvo. E os mais graduados dos graduados eram até especialmente autorizados a usarem uma bem mais elaborada: No tiro ao alvo, nós acertamos sempre na mouche.


Como a sorte protege sempre os audazes, e a lei da sorte não admite exceções, o tenente Sampaio, depois de sair apressado da residência das putas, nem sequer se atreveu a ir a casa dormir duas horas ao lado da sua querida esposa, e depois tomar o costumeiro banho, fazer a barba, aparar o bigode, polir as botas, escovar a farda, beijar as filhas, fazer festas ao gato, alimentar o cão e presidir à cerimónia do servir do pequeno-almoço, onde o distinto militar de GNR administrava a respetiva bênção, dando sempre graças a Deus pela comida que lhe punha na mesa, ao leite que as vacas, abençoadas pelo Criador, produziam e que as leiteiras de Outeiro Seco transportavam até à sua porta. Agraciava ainda, com as mãozinhas postas e os olhinhos fechados, o mester do anjo, que Deus quis que viesse a transformar-se na sua digníssima esposa, que tão saborosas compotas preparava, que tão bons bolinhos confecionava, que tão apetitosos scones amanhava. E, porque gostava muito de scones, particularmente dos feitos pela sua consorte, nunca se esquecia de, nas bênçãos, dizer uma oração muito própria e original.


E orava do seguinte modo e feitio: Deus, abençoa a tigela e as mãos que misturam a farinha, o sal, o fermento e o açúcar. E não Te esqueças de abençoar também o açúcar, o fermento, o sal e a farinha. E de abençoar a memória de quem nunca se esquece de derreter a margarina juntamente com o leite e de misturar a farinha, o sal, o fermento e o açúcar. E de abençoar a própria farinha e a saborosa margarina e os ovos e o leite e o sal. E de abençoar a dedicada galinha que põe os ovos. E de abençoar, com igual bondade, a inteligência de quem sabe fazer o buraco no meio da farinha e de nele deitar a margarina derretida com o leite e o ovo. E se não Te custar muito, podes ainda abençoar o trabalho da criada que mexe tudo até os ingredientes estarem ligados e que deles faz montinhos de massa, moldados com as mãos, ou com a ajuda de uma colher, e que os coloca no tabuleiro do forno polvilhado com farinha. Ámen. Pai Nosso, Ave-maria, etc.


Apesar de a sua ausência poder levantar suspeitas lá em casa, por não proceder da forma costumeira, mesmo dormindo pouco, como militar atarefado e preocupado, pois geralmente passava as noites em vigília permanente no quartel, que era o seu posto de vigia, o tenente Sampaio dirigiu-se de imediato ao seu gabinete, para espanto do plantão, e tratou logo de se pôr em contacto com alguns dos seus amigos mais chegados que pertenciam às forças vivas da cidade. Só que esses amigos, àquela hora, estavam a dormir. Pelos menos foi essa a resposta que obteve, ou das esposas madrugadoras ou das sonolentas criadas lá de casa que atendiam os telefones muito mal dispostas.


Quase entrou em pânico. Mas conteve-se a tempo. Depois de pensar um pouco, chamou o plantão e disse-lhe para ir acordar o prisioneiro e trazê-lo à sua presença.


O plantão perguntou ensonado: “O preso político, meu tenente?” “Não,” respondeu o tenente para espanto do seu subordinado. “Mas nós só cá temos um prisioneiro”, disse o soldado da GNR. “Sim, é esse”, respondeu o tenente. “Mas o meu tenente ainda agora disse que não”, retorquiu o plantão. E o GNR graduado: “Eu disse apenas que não era preso político. Nós não temos aqui detido nenhum político. O preso que aqui temos é culpado de desacatos, não de…” “Mas o meu tenente, ainda ontem se referiu a ele como preso político quando um advogado lhe perguntou porque mantinha enclausurado um rapaz sem culpa formada e sem julgamento”, argumentou o plantão. “Foda-se Arménio, agora deu-lhe para se armar em advogado de defesa do delinquente? Traga-me mas é o preso e deixe-se de perifrásticas.” “De quê, meu tenente?” “De lérias, Arménio, de lérias.” “Sim, meu tenente. É para já.”


Passados dez minutos, um José verdadeiramente alucinado deu entrada no gabinete do tenente Sampaio. “Aqui está o preso político, meu tenente, e devidamente algemado, como a lei manda”, disse o teimoso soldado da GNR. “Tire-lhe as algemas”, ordenou o tenente Sampaio. “Não posso, meu tenente. A lei não o autoriza”, lembrou o plantão do posto da GNR de Névoa. “Tire-lhas imediatamente, pois a lei aqui sou eu”, berrou congestionado o graduado do soldado da GNR. “Sim, meu tenente. É para já”, disponibilizou-se o plantão.


Agora mais calmo, o tenente da GNR de Névoa ordenou ao seu subordinado: “Arménio, pode sair.” “Como disse?”, disse o incrédulo Arménio. “Pode sair. E feche a porta,” ordenou o intrépido tenente Sampaio. “Mas…”, balbuciou o guarda. “Aqui não há mas nem meio mas. Saia de imediato, pois eu tenho de desfazer um equívoco aqui com este nosso amigo”, sentenciou o GNR graduado com os nervos à flor da pele.

01
Fev12

O Poema Infinito (85): insónia ativa

João Madureira

 

Recuamos no tempo e lá estão eles, os primos que são quase toda a minha infância. O Eugénio e os seus olhos azuis e o João e as suas orelhas de rato e a Rosa e as suas enormes tranças e o Vasco e a sua bola de trapos e a minha mãe e os seus ralhetes e a tia Conceição mexendo o leite e a avó Fonseca amassando os folares para a Páscoa e a casa com a chaminé fumegante da madrinha Augusta na “croa do pobo” e o Cristo pintado pregado numa cruz de granito no seu heterónimo de Senhor da Ajuda e os meninos saindo da escola a correr levantando o pó dos caminhos e as suas mães esperando-os com a sopa a ferver servida nos pratos de esmalte e o pão escuro e grosso migado para dentro da água fumegante misturada com unto e couves ripadas e o avô que bebia o vinho pela caneca de barro enquanto a avó comia os chícharros salteados com couves e molhados com azeite acompanhados com uma isca de bacalhau cru e salgado desfiado de tempos a tempos para servir de petisco e o sol a bater na água do ribeiro que se avistava da varanda e a tia Rosalina mirando-me com os seus olhos cinzentos e estrábicos e a prima Belmira meneando a sua femealidade galopante e o tio Artur e também tio Esgaça e a sua bebedeira permanente agarrado à arreata do seu cavalo preto que puxava uma carroça ou um arado em cima de um carrinho com rodas e que bebia a água limpa do poço do chafariz enquanto o tio Esgaça lhe assobiava uma canção tão líquida e tranquila e transparente como a água fresca que refletia um céu claro e azul e os pães entrando no forno quente no seu vestido branco e os pães saindo do forno já não tão quente crestados e apetitosos e as arcas de carvalho cheias de centeio onde se guardavam as notas de cem escudos metidas em sacos plásticos e se acautelava também o fumeiro para o alto e as tranças loiras da Julinha saltitando enquanto ela saltitava e cantava e sorria e jogava à macaca e mostrava as cuecas brancas quando se inclinava para apanhar a malha e os velhos sentados ao sol ao meio dia recuando na sua memória e a infância caída aos seus pés chorando de saudade e as vacas indo para o lameiro tocando as suas sinetas e ruminando o feno e o avô seguindo as moscas enquanto reverberava pensamentos e a minha solidão de nuvem seca e as sinuosas marcas do sol e o mastigar os legumes como quem agora mastiga chicletes e o desconforto dos colchões de palha e o peso dos liteiros e a baba permanente do louco da aldeia e a paciência do dia anterior e os homens jogando ao fim da tarde a sueca na taberna do Veras com cartas galegas batendo com os mãos na mesa quando cortavam de bisca uma jogada que lhes dava para ganhar a partida e os copos de tinto bebidos de um trago ou a modinho dependendo da sede e da mania de cada um e as moscas mordendo o focinho dos burros e os cães ladrando e os pássaros abanando as caudas irrequietas e as mulheres segando as couves e os potes fervendo ao lume e os recos roncando de fome na corte e a abundância de frio nas noites de geada e abastança de calor nas tardes de estio e a carne gorda grelhada num espeto de madeira ao lume e comida com a ajuda da navalha afiada do tio João Lorde e o tio João Lorde dizendo asneiras e a avó Fonseca admoestando o seu filho por ensinar porcarias aos sobrinhos e a gata ronronando aos meus pés e o meu pai acariciando-me com o seu olhar e eu acariciando o meu pai com o meu olhar e Deus sozinho a um lado esperando pela eternidade das almas daqueles corpos e os corpos mexendo-se na sua alegria passageira e as mãos da minha mãe acariciando-me o rosto e as lágrimas e os sorrisos e os gestos que se seguiram e as palavras que fui aprendendo e que neste momento me ajudam a dizer aquilo que é cada vez mais difícil de dizer e o diálogo com o cansaço da desilusão… É nestas pequenas coisas que a gramática dos deuses assenta. Foi nessa infantilidade dos dias antigos que me criei. Hoje são a minha insónia ativa. 

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