100 – Então vamos lá avançar. O José passou ainda algumas semanas nos calabouços do posto da GNR de Névoa sem que a História registe nada de significativo. Nem a História, nem nós, temos que reconhecer. Mas também não é por isso que a narrativa não vai avançar. Está visto que existiu aqui um pequeno hiato. No entanto não é um hiato, por muito incomodativo que seja, que nos vai demover do firme propósito de chegar ao fim com esta história.
Queremos prevenir, desde já, os estimados leitores de que nós somos muito persistentes. Em persistência quase ninguém nos ganha. Avancemos de novo.
O José saiu da prisão pela calada da noite, apesar de já ser dia. Pode até parecer caricato, e mesmo paradoxal, mas até os acontecimentos mais caricatos e paradoxais têm sempre uma explicação científica. E quando dizemos científica queremos com isso afirmar que, apesar das aparências, foi verosímil, testada, e atestada, pelos factos e pela razão.
O tenente Sampaio, numa reunião onde apareceu impecavelmente Embuçado, e embeiçado, como era seu timbre e feitio, soube, por linhas travessas, da boca de um companheiro de borga, que algo estava para acontecer e que esse algo ia alterar profundamente a orientação política e social do país. Quando, ainda o desbocado não sabia, mas era ponto assente, entre as hostes do reviralho e os mini grupos dos iluminados agitadores clandestinos, que tal momento estava para breve.
Ora tamanha reviravolta ia provocar uma razia nas estruturas dirigentes do Estado Novo, especialmente nas forças da ordem, que, como todos sabiam, eram a espinha dorsal do regime e o seu principal sustentáculo.
Avisaram-no com bons modos, algum carinho e muita pedagogia, que era chegada a hora de eliminar todos os ficheiros comprometedores, desfazer-se de todos os livros apologéticos em favor de Salazar e Caetano, guardar em local acautelado os religiosos, e, sobretudo, libertar os prisioneiros, especialmente os de aparência antifascista, pois um homem desses podia enviar um agente da autoridade graduado para o mesmo sítio onde ele tinha penado os seus pecados e a maldita ação subversiva.
Podemos afirmar, com o rigor que nos carateriza, e do qual são os estimados leitores testemunhas privilegiadas, que ao Embuçado nem o repasto se lhe engoliu nem o resto se lhe compôs de modo a não lançar suspeitas na sua amásia.
A amante, desconfiada, pôs logo a putaria em estado de alerta: algo estava para acontecer de muito grave na cidade e no país, pois os militares graduados do exército, da GNR, da Polícia e os vários agentes da PIDE/DGS tinham deixado comida no prato, vinho nas canecas e em incómodo descanso as suas companheiras de folguedo. Nem conseguiram, ó tragédia!, ó ignomínia!, acompanhar em coro, e com a devida nostalgia, a fadista de serviço nos curiosos, e originais, versos: Ai quem me dera… ter outra vez vinte anos…
Por causa de um desbocado antifascista dos fraquinhos (e dos fracos também esta história não reza), em vez de uma festa, a folia transformou-se em velório.
Podemos afirmar, com a independência que nos distingue, e da qual são os prezados leitores mais uma vez testemunhas únicas e irrepetíveis, que o primeiro grupo socioprofissional a saber do golpe militar do 25 de Abril em Névoa, e nos arredores, foi o das meretrizes. E tudo porque nem o Embuçado, nem os seus companheiros de profissão, conseguiram, como lhes era exigido pela tradição e pelo cargo, desempenhar, com sangue frio e o devido caráter, as habituais funções a que dedicavam a sua energia, a sua preparação e a sua pertinácia.
De facto, todos estes ilustres agentes da ordem tinham por senha a expressão: Viva a carreira de tiro, nós acertamos sempre no alvo. E os mais graduados dos graduados eram até especialmente autorizados a usarem uma bem mais elaborada: No tiro ao alvo, nós acertamos sempre na mouche.
Como a sorte protege sempre os audazes, e a lei da sorte não admite exceções, o tenente Sampaio, depois de sair apressado da residência das putas, nem sequer se atreveu a ir a casa dormir duas horas ao lado da sua querida esposa, e depois tomar o costumeiro banho, fazer a barba, aparar o bigode, polir as botas, escovar a farda, beijar as filhas, fazer festas ao gato, alimentar o cão e presidir à cerimónia do servir do pequeno-almoço, onde o distinto militar de GNR administrava a respetiva bênção, dando sempre graças a Deus pela comida que lhe punha na mesa, ao leite que as vacas, abençoadas pelo Criador, produziam e que as leiteiras de Outeiro Seco transportavam até à sua porta. Agraciava ainda, com as mãozinhas postas e os olhinhos fechados, o mester do anjo, que Deus quis que viesse a transformar-se na sua digníssima esposa, que tão saborosas compotas preparava, que tão bons bolinhos confecionava, que tão apetitosos scones amanhava. E, porque gostava muito de scones, particularmente dos feitos pela sua consorte, nunca se esquecia de, nas bênçãos, dizer uma oração muito própria e original.
E orava do seguinte modo e feitio: Deus, abençoa a tigela e as mãos que misturam a farinha, o sal, o fermento e o açúcar. E não Te esqueças de abençoar também o açúcar, o fermento, o sal e a farinha. E de abençoar a memória de quem nunca se esquece de derreter a margarina juntamente com o leite e de misturar a farinha, o sal, o fermento e o açúcar. E de abençoar a própria farinha e a saborosa margarina e os ovos e o leite e o sal. E de abençoar a dedicada galinha que põe os ovos. E de abençoar, com igual bondade, a inteligência de quem sabe fazer o buraco no meio da farinha e de nele deitar a margarina derretida com o leite e o ovo. E se não Te custar muito, podes ainda abençoar o trabalho da criada que mexe tudo até os ingredientes estarem ligados e que deles faz montinhos de massa, moldados com as mãos, ou com a ajuda de uma colher, e que os coloca no tabuleiro do forno polvilhado com farinha. Ámen. Pai Nosso, Ave-maria, etc.
Apesar de a sua ausência poder levantar suspeitas lá em casa, por não proceder da forma costumeira, mesmo dormindo pouco, como militar atarefado e preocupado, pois geralmente passava as noites em vigília permanente no quartel, que era o seu posto de vigia, o tenente Sampaio dirigiu-se de imediato ao seu gabinete, para espanto do plantão, e tratou logo de se pôr em contacto com alguns dos seus amigos mais chegados que pertenciam às forças vivas da cidade. Só que esses amigos, àquela hora, estavam a dormir. Pelos menos foi essa a resposta que obteve, ou das esposas madrugadoras ou das sonolentas criadas lá de casa que atendiam os telefones muito mal dispostas.
Quase entrou em pânico. Mas conteve-se a tempo. Depois de pensar um pouco, chamou o plantão e disse-lhe para ir acordar o prisioneiro e trazê-lo à sua presença.
O plantão perguntou ensonado: “O preso político, meu tenente?” “Não,” respondeu o tenente para espanto do seu subordinado. “Mas nós só cá temos um prisioneiro”, disse o soldado da GNR. “Sim, é esse”, respondeu o tenente. “Mas o meu tenente ainda agora disse que não”, retorquiu o plantão. E o GNR graduado: “Eu disse apenas que não era preso político. Nós não temos aqui detido nenhum político. O preso que aqui temos é culpado de desacatos, não de…” “Mas o meu tenente, ainda ontem se referiu a ele como preso político quando um advogado lhe perguntou porque mantinha enclausurado um rapaz sem culpa formada e sem julgamento”, argumentou o plantão. “Foda-se Arménio, agora deu-lhe para se armar em advogado de defesa do delinquente? Traga-me mas é o preso e deixe-se de perifrásticas.” “De quê, meu tenente?” “De lérias, Arménio, de lérias.” “Sim, meu tenente. É para já.”
Passados dez minutos, um José verdadeiramente alucinado deu entrada no gabinete do tenente Sampaio. “Aqui está o preso político, meu tenente, e devidamente algemado, como a lei manda”, disse o teimoso soldado da GNR. “Tire-lhe as algemas”, ordenou o tenente Sampaio. “Não posso, meu tenente. A lei não o autoriza”, lembrou o plantão do posto da GNR de Névoa. “Tire-lhas imediatamente, pois a lei aqui sou eu”, berrou congestionado o graduado do soldado da GNR. “Sim, meu tenente. É para já”, disponibilizou-se o plantão.
Agora mais calmo, o tenente da GNR de Névoa ordenou ao seu subordinado: “Arménio, pode sair.” “Como disse?”, disse o incrédulo Arménio. “Pode sair. E feche a porta,” ordenou o intrépido tenente Sampaio. “Mas…”, balbuciou o guarda. “Aqui não há mas nem meio mas. Saia de imediato, pois eu tenho de desfazer um equívoco aqui com este nosso amigo”, sentenciou o GNR graduado com os nervos à flor da pele.