Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
105 - Ao fim de quinze dias o Guarda Ferreira estava de armas e bagagens em Névoa e o Capitão Martins demorou apenas mais duas semanas para rumar à estimada cidade da Guarda. Mesmo pondo de lado o posicionamento social, as receções foram muito distintas. Ao capitão todos lhe dedicaram ternos sorrisos e efusivos abraços. Já ao guarda Ferreira nem o cão revelou qualquer espécie de entusiasmo.
A Dona Rosa, mal o viu entrar portas adentro, começou logo a arengar: “Ai que susto. O que fazes aqui? Já te deram folga? Cansaste-te da revolução?” Ao que ele respondeu: “Vim de vez.” E ela, entre a estupefação e a incredulidade: “Como de vez?” E ele surpreendido por tanta frieza e tanta dúvida: “De vez. Vim de vez. Já não torno. Vim transferido para o posto de Névoa.” A Dona Rosa ainda com uma réstia de esperança difusa na voz: “Promoveram-te?” O guarda Ferreira surpreendido: “Não, não me promoveram. Transferiram-me para aqui. Para junto da minha família. Não era o que tu querias?” E ela agressiva como uma cadela: “O que queria era que te pusessem umas divisas em cima dos ombros.” E ele acabrunhado: “Era uma coisa ou outra. Escolhi esta. A outra era uma incerteza. Além disso podiam matar-me. É que os tempos não estão para brincadeiras.” Depois fez-se silêncio. O guarda Ferreira limitou-se a olhar para a mulher talvez com a esperança de um pequeno carinho. Mas a Dona Rosa limitou-se a continuar concentrada a engomar a roupa enquanto o cão dormia junto a uma perna da tábua de passar.
“Então, já que estás aqui, pega no caldeiro e vai dar de comer aos recos. Que é para o que serves”, disse a Dona Rosa com a delicadeza que todos lhe reconhecemos. Não contente com o dichote, pregou um pontapé no cão e mandou-o dar uma volta. Ambos e dois obedeceram sem manifestar a mais pequena discordância.
“Os porcos já estão acomodados. O que queres que faça a seguir?”, perguntou nervoso o guarda Ferreira. “Olha, acorda o teu filho mais velho que agora só sabe dormir”, disse colérica a Dona Rosa. Depois ficou de novo em silêncio. Após algum tempo de espera, resmungou sem tirar os olhos da roupa que passava: “O mundo às avessas e os meus homens enfiados dentro de casa como mulheres. Não sei que raio de sangue vos corre nas veias. Do meu não é com toda a certeza.”
O José, assomando à porta do quarto, rabujou: “Já não se pode dormir descansado nesta casa. É preferível estar preso, pelo menos lá não nos incomodam com discussões familiares. A família, essa infernal instituição burguesa, é para o que serve, para dar arrelias, preocupações e para nos manietar de pés e mãos às convenções, ao conservadorismo e à hipocrisia.”
“Cala a boca e vai lavar a cara e pentear-te. Pareces um cigano”, ordenou-lhe o pai. E o José tentando ganhar espaço e tempo: “Então o pai está por cá de novo? Foi rápida a estadia no Porto. Os revolucionários depressa desmobilizaram. O que fez de tão importante para o promoverem num ápice?”
Mas em vez de ser o guarda Ferreira a responder, quem o fez foi a sua querida e estimada esposa: “Não foi promovido. Foi transferido de posto. O teu pai não possui a mais pequena réstia de ambição. Contenta-se em ser o borra-botas que sempre foi e há de continuar a ser. Desde que tenha dinheiro para o cigarro e para o copo, já se dá por contente. E eu que me amanhe.”
Enquanto o José fazia que lavava a cara e se penteava, o pai tentou pôr-se teso e contestar os argumentos da mãe: “Todo o dinheiro que entra nesta casa sou eu que o ganho…” “Todo não”, contrapôs a Dona Rosa. “Eu também ganho algum com as camisolas que faço e com os panos de renda e bordados. Se vivêssemos apenas com a miséria que trazes para casa morríamos à fome. E quem é que cria os porcos, as galinhas e os coelhos? Quem? E quem é que vai à lenha? E quem é que sacha as batatas e rega a horta? Quem? E quem é que…”
“Cala-te mulher. És uma ingrata. Quem te ouvir até pode pensar que é verdade aquilo que dizes. Se não fosse o meu ordenado é que morríamos à fome. És uma ingrata. Para ti nunca nada está bem. Aos teus olhos sou para aqui um verbo-de-encher”, indignou-se o guarda Ferreira.
“Lá verbo podes ser, agora de encher é que não. Para encher estou cá eu”, disse a Dona Rosa. E o guarda Ferreira: “Não te faças de engraçada comigo.” E o José: “A mãe, quando quer, até é engraçada. Mas gosta, sobretudo, de fazer o papel de desgraçada. Está-lhe no sangue. Se abraçasse o teatro dava, com toda a certeza, uma excelente atora dramática.”
A Dona Rosa levada do diabo: “Cala lá o focinho, mas é. Quem é que te julgas para fazeres de engraçadinho comigo. Pensas que estás a falar com alguma tua amiga galdéria? Tu sais ao teu pai. És também para aí um bardamerdas. Podias vir a ser alguém, um grande homem da Igreja, um bispo bem arreado e bem cevado, e respeitado, mas não passas de um putanheiro sem eira nem beira. Um pobre como tu não se pode dar ao luxo da boémia. Isso é para os filhos dos ricos. Os filhos dos pobres, para singrarem na vida, ou estudam ou fodem-se.
“Mãe!”, exclamou o José. “Mulher!”, exclamou o guarda Ferreira. “Ão, aõ, ão! exclamou o cão que se tinha vindo colocar junto aos pés da dona.
E a Dona Rosa começando a chorar baba e ranho: “Deixai-me em paz. Sou para aqui uma desgraçada. Ninguém me compreende, ninguém me ajuda. Ninguém segue os meus conselhos. Só me apetece ir para o monte e gritar, gritar até não poder mais. Gritar até rebentar. Se não fosse por causa dos mais pequenos matava-me com o veneno dos escaravelhos.”
“Mulher!”, exclamou de novo o guarda Ferreira. “Mãe!”, exclamou segunda vez o José. “Ão, aõ, ão!” exclamou abanando a cauda o cão. Como não podia fazer mais nada que não pudesse acabar em tragédia, novamente deu um pontapé no cão e enxotou-o para a rua.
Passado apenas o curto tempo de o guarda Ferreira fumar um dos seus cigarros sem filtro, deram entrada na casa os Ferreiras mais pequenos vindos da escola, seguidos pelo cão que não se cansava de ladrar e abanar o rabo. “Olha, é o pai”, disse um deles como se tivesse visto um fantasma. E o pai: “Então meus queridos filhos, estais bons?” E os filhos: “Estamos cheios de fome. Queremos comer.” E a mãe, fazendo-se chocada: “Então não dais um beijo ao vosso pai?” E o José, fazendo-se surpreendido: “Então não dais um beijo ao pai?” E os filhos indiferentes: “Dê-lhos a mãe. Temos fome. Queremos comer.” E a mãe pondo a mesa: “O vosso pai vem para cá de vez.” “Ó que chatice!”, disse o mais velho dos pequenos. “Ó que chatice!”, disse o do meio. “Ó que chatice!”, disse o mais novo, que também era o mais atrevido. E desabafou: “Ele é tão chato. E cheira mal da boca.” E o que ainda não tinha dito nada disse alguma coisa: “Com ele cá a casa ainda vai ficar mais pequena. Quando ele se deita com a mãe, o João e o Luís vão dormir no nosso quarto e ficamos todos tão apertados que até suamos.” Pausa: “Ó mãe, o pai não pode ir embora outra vez?”
Ao guarda Ferreira nem a comida se lhe engoliu. Tamanha receção deixou-o prostrado. Ele sabia que os anos passados longe de casa tinham cavado um fosso enorme entre si e os filhos, especialmente em relação aos mais novos, que não o viam como um pai, mas sim como um intruso, que por vezes ficava lá em casa dois ou três dias mas que se ia embora antes de começar a aborrecer. Mas não podia imaginar que o apontassem como um empecilho, como um estorvo, como um estranho que não fazia parte das suas vidas.
Não se sentido querido perseverou ainda mais no vinho e no cigarro. Só ia para casa já noite dentro, levantava-se com as galinhas e ia para o posto. Nos dias de folga, com o pretexto de ir amanhar as terras que tinha na Torre, rumava para a aldeia fazer que fazia.
Também o José principiou a sentir-se mal com a situação. A vadiagem não podia ser eterna.
Os homens teimam em impor aos outros homens a abundância fria da caridade mostrando-lhes as prateleiras e as bancas calandradas dos supermercados repletas de peixe de aquacultura e de limões duplos de acidez querendo dessa forma fazer dos poemas frigoríficos de palavras leves e acéticas onde o duplo silêncio da economia e do mercado capitalista enche os catálogos com a elegância gelada da miséria em repouso dos novos pobres e as donas de casa atrevem-se a conservar os nervos no mais íntimo das suas bocas retraídas de gritos mudos e secos enquanto os anúncios dos produtos íntimos femininos vomitados pelas televisões generalistas chegam e sobram para fazer agonizar o prazer e o desejo dos corpos lisos e brancos de leite e tudo isto se passa enquanto os gordos se sentam à mesa colados ao seu apetite e à sua emoção feita de carne e de estômagos barrocos enquanto pensam no pranto em que se funda a glorificação ocidental da verdura vegetal da solidão enquanto os magros levitam no seu riso frio e enquanto as crianças correm empanturradas de açúcar e brinquedos que são quase sempre máquinas estúpidas de violência e sordidez e as avós rezam orações baças que mais não são que frases fofas e melancólicas e assim se sentem os livros pesados nas prateleiras da sua virgindade e da sua função de preencher espaços nas estantes e de dar um ar culto ao escritório dos néscios que não os leem e nem para eles olham e as suas camadas de inutilidade enchem este mundo de ignorância e espanto deixando todo o espaço vital aos frívolos que temem o mundo da cultura e por isso a glorificam com palavras doiradas de falsidade e o tempo da desgraça distribui vingança e nervos por isso todos funcionamos a antidepressivos que já se tomam em forma de pastilha elástica que nos metamorfoseiam em corpos mastigados pela fadiga sofrida dos sorrisos de circunstância e a todos nos dói a cabeça por causa dos perfumes que todos usamos para cheirarmos o silêncio da nossa vacuidade e da nossa indecifrável vontade de indiferenciação e entretemo-nos a olhar para pinturas parvas e a anoitecer manhãs e a disfarçar os corpos obesos e enrugados dentro de roupas apertadas e falsamente aprazíveis e bendizemos a hipocrisia e glorificamos a inutilidade e enaltecemos a mediocridade e exaltamos os deuses que são catatuas falantes e dizemos que gostamos de ler aquilo que não lemos e de amar aquilo que não amamos e de respeitar aquilo que não respeitamos e de defender aquilo em que não acreditamos e embarcamos sempre no mesmo fado da saudade e lá vamos cantando e rindo levados sempre levados e levados sim pelos outros que nos repartem como animais domésticos pelos retábulos patéticos desta sociedade que nos dizem civilizada por isso procuramos sentar-nos à mesa como crianças que são crianças porque têm lábios de crianças ao mesmo tempo obesas e famintas que anseiam sentar-se à mesa para comer rapidamente enquanto engolem com os olhos a publicidade à guerra entre civilizações como se tudo não passasse de um videojogo oferecido pelo papá e pela mamã e pela vovó e pelo vovô enquanto o nosso querido líder nos diz que ganhámos mais um troféu por termos conseguido vencer o concurso de rolhas de garrafas de plástico…
Cinco palavras revelam definitivamente a “década de progresso” de João Batista, António Cabeleira e do PSD à frente da câmara de Chaves, e por esta ordem: expetativa, ilusão, desilusão, imobilismo e abandono.
Chegado aqui paro para meditar um pouco. É que a política autárquica aflige-me na sua quase vacuidade e conformismo, mas a situação no país começa a meter-me medo. E como sei que ambas as lideranças estão pintadas da mesma cor partidária, tal facto deixa-me extremamente apreensivo.
A verdade é que o atual primeiro-ministro – e perdoe-se-me a minha expressão – parece a galinha antes de pôr o ovo: faz força, força, força, mas o ovo sai-lhe sem casca. E isso, dizem os antigos, é muito mau presságio.
Independentemente de Pedro Passos Coelho sorrir quando é apupado, o seu perplexo esgar tem a mesma intrepidez ideológica da senhora Merkel e o mesmo ar afetado do cavalheiro Sarkozy quando são cumprimentados pelo seu servo bajulador luso com o sorriso de cópia de uma outra cópia de ainda uma outra fotografia que andamos todos a tentar descortinar onde se nos tornou familiar.
Mas, Deus meu, o que é que nos está a acontecer? O que é que nós fizemos de mal para nos calhar tamanha desgraça?
O poeta Manuel António Pina confessou a um jornal: “A vontade que eu tenho era pôr um cinturão de bombas e rebentar com essa malta toda”. Digamos que é um desabafo quase terrorista. Mas para vilão, vilão e meio. A ser assim, das suas palavras prefiro ficar com a citação dos versos do poeta brasileiro João Cabral Neto, na “Morte e Vida de Severina”: “Muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para a frente.”
Depois dou uma vista de olhos à capa da “Tabu” e arrepio-me com o sorriso sibilino do primeiro-ministro e com a sua afirmação de que o poder nunca lhe subiu à cabeça. No entanto teima em fazer empobrecer o povo português, o que provocou do lado de Bagão Félix (CDS) uma entrevista onde afirma textualmente que o Governo “Está a proletarizar a classe média”. Mas, por outro lado, “não há retração ao nível da classe rica”.
Finalmente a capa da “Revista” do Expresso começa a fazer sentido. O lava-loiças (leia-se governo de direita neo-neo-liberal) tem mais bactérias do que uma sanita depois de puxar o autoclismo. Esse é o facto político (científico?) mais surpreendente dos últimos meses.
E daqui fui transportado a uma citação de António Capucho (PSD): “Alguns deputados são uns verbos de encher.” Ele sabe do que fala. E nós também sabemos muito bem daquilo que ele fala. E nós por cá (salvo um ou dois honrados exemplos) já fornecemos ao país muitos desses degradantes exemplos. Mas como não aprendemos com as más experiências, teimamos em teimar e em enviar para Lisboa uns verbos de encher que envergonham a alma e a dignidade transmontanas.
Por falar em capas de jornais, andava eu a tentar dar umas voltas na Eira Joanina (antigo Jardim das Freiras), que nestes dias de inverno mais rigoroso tem estado em salmoura, quando reparei que nos escaparates do quiosque o meu semanário regional de referência destacava a “novidade” de que o executivo camarário tinha realizado a iniciativa “Dar Voz ao Munícipe”.
Depois de ler a notícia confirmo que o evento mais não foi do que outra encenação para conferir visibilidade a uma ficção abandonada à cerca de cinco anos. Parece que o vice camarário de João Batista, à falta de melhor, resolveu tirar mais um dos velhos brinquedos do baú que estava no sótão, para dizer que tem ideias e que possui iniciativa. Mas estas coisas só servem para provar à exaustão que o senhor vice é o grau zero da criatividade e um embrulho absolutamente desprovido de ideias.
João Batista, a muito custo, lá se vai deixando levar para encenações que só lhe ficam mal. Mas pôr o ovo chamado António Cabeleira só o pode levar para estas cenas caricaturais. Todos sabemos que a dificuldade é grande, mas, ó senhor presidente, olhe que ele não lhe vale o esforço.
O senhor presidente lembra que nos tempos que correm “é importante que as pessoas participem, de forma a transmitirem as suas opiniões, para que todos tenhamos uma vida melhor”.
O que nos intrigou foi porque interrompeu esta tão “inédita iniciativa” durante cinco anos e a ressuscitou precisamente agora quando, à semelhança de uma galinha, faz força para colocar cá fora um ovo de classe B que se põe às bicadas nas pessoas para sair de dentro da casca.
Essas, e outras iniciativas, pertencem ao seu tempo da ilusão. Os cinco anos de interregno, estão já na zona da desilusão e no início da estagnação. Atualmente – e perdoe-me que lho diga desassombradamente – o senhor presidente já está na fase do abandono.
Mas olhe que o esforço que anda a fazer é inglório. O frango não lhe vale o empenho. Pode até vir tentar iludir-nos com cantatas intelectuais de última hora, que o não consegue. Citar Tony Judt fica-lhe bem, mas já vem tarde. Essa do que “temos de aprender com quem discorda, rejeita, reage e com quem diverge, por muito irritante que possa ser para quem está no poder”, é como recordar a um casal separado a marcha nupcial.
O senhor declarou para uma plateia de trinta pessoas que, segundo nos afirmaram, era quase apenas constituída por gente da câmara, ou do seu partido, quando não ambas as coisas, que “o desenvolvimento constrói-se em bases sólidas tendo como pilares fundamentais as pessoas, o território, a criação de condições para o desenvolvimento de atividades económicas e a cooperação”. Convenhamos que quando o senhor presidente não quer dizer nada não diz mesmo nada. A retórica aprendida sempre lhe vai servindo para alguma coisa.
Afirmar o que atrás afirmou é o mesmo que assegurar que o tempo para a semana vai estar soalheiro… se não chover. Ou, como diz o povo, é paleio furado. São apenas palavras que nada querem dizer. É o vazio. É o abandono.
E o tal ovo lá continua, impacientemente à espera, que o senhor presidente lhe dê a bicada para quebrar a casca que lhe permita colocar a cabecita de fora.
Mas, voltamos a avisá-lo, olhe que o franganito não lhe vale o esforço. E o senhor sabe-o muito bem. Sabe-o até melhor do que nós. Na sua frente pode ser muto sorriso e abraços, mas nos bastidores a conversa é outra. E isto aconteceu durante muito tempo. Basta que o senhor presidente se informe.
Mais à frente lemos que o “atual executivo mantém o mesmo rumo desde que assumiu o poder, pois sabemos o que queremos e para onde vamos de forma a caminhar para um desenvolvimento sustentável e sustentado”.
Temos que convir que nas suas palavras existe algum fundo de verdade. O seu executivo mantém o mesmo rumo, o de não ter rumo nenhum, pois andou sempre a navegar à vista, apesar de não ter ventos contrários (leia-se oposição consistente, categórica e combativa), nunca se afirmou, nunca liderou, nunca se empenhou num único projeto de valia que possa reconhecer como uma bandeira sua. Foi tudo muito comezinho, muito caldo sem sal. Por isso é que não temos futuro à vista. Por isso é que o nosso “desenvolvimento sustentável” é, a cada dia que passa, mais insustentável.
O meu semanário regional de referência também conta que as tais trinta pessoas estiveram cerca de duas horas e meia a ouvi-lo – e perdoe-me de novo a analogia – a cacarejar. Diz que as pessoas puderam colocar as questões que entenderam. Mas nenhuma delas foi digna de registo. Nem elas nem as suas respostas. O que nos chegou foi apenas o eco do seu solilóquio. Ou seja, dali não saiu nada. Foi apenas uma conversa em família. A retórica assimilada sempre lhe vai servindo para alguma coisa.
O êxito foi tanto que a próxima iniciativa, se é que vai ser realizada, ficou agendada para o mês de abril. Ou seja, a primeira correu tão mal que a segunda talvez não se efetue. Convenhamos que daí não vem mal à cidade. O senhor habituou-nos a esperar sentados pelo futuro. Não sei se por acreditar que os cidadãos podem muito bem votar e depois ficar em casa à espera que Lázaro volte a ressuscitar. Essa foi sempre a estratégia do PSD enquanto poder.
Sabe, senhor presidente, porque é que a sua iniciativa foi um malogro? Pois porque o povo sabe que falar com o seu executivo camarário é pura perda de tempo. O senhor lá ouvir ouve, mas nada decide. E senhor lá prometer promete, mas não cumpre. Ou nunca cumpre a tempo e horas. E olhe que apesar do seu sorriso, as coisas não se resolvem apenas com simpatia e afabilidade. Eu digo isto porque estive em alguns processos. O senhor sabe muito bem daquilo que falo.
Lembro-me de, logo no início do seu primeiro mandato, ter sido convocado para uma reunião na câmara por causa da alteração do projeto da avenida D. João I, aprovado no tempo de Altamiro Claro. A reunião destinava-se a ouvir os residentes que utilizavam a rodovia para saber da sua opinião. Tudo muito democrático. Deram voz aos munícipes. E os munícipes manifestaram-na alto e bom som. A esmagadora maioria pronunciou-se contra o novo projeto e a favor do que já existia. Pois, apesar disso, a câmara foi para a frente com a afronta dos políticos e com a teimosia de alguns técnicos. E os munícipes, pobres iludidos, só disso souberam quando as obras já estavam no terreno.
Este, por muito que lhe custe, senhor presidente, é o exemplo acabado da importância que o seu executivo atribui à “voz” dos munícipes. Os flavienses estão cansados de encenações. Das suas encenações. Os munícipes estão fartos de serem utilizados como verbos de encher.
Por isso, como já o tiveram como galinha durante três mandatos, agora recusam o frango depenado que lhes quer deixar, depois de lhes ter prometido um galarispo com penas. Pois, como muito bem diz o nosso povo, que lhe faça bom proveito à barriguinha e ao peito.
Então, até para a semana.
104 – Pressionado pela mulher, e indiferenciado pelo seu filho primogénito, que teimava em não tomar partido por qualquer das partes em conflito, o guarda Ferreira abalou para a capital do Norte na carreira das cinco com o entusiasmo de um condenado às galés.
Esteve durante quinze dias a ver onde paravam as modas. Dentro do posto reinava uma paz inquieta e nas ruas o povo manifestava-se todos os dias e a todas as horas pelas mais variadas razões. Tudo servia de pretexto para fazer uma manifestação, anunciar uma greve, sanear os fascistas, apedrejar as sedes de partidos rivais e apupar quem naquele dia não tinha saído à rua em defesa das mais amplas liberdades.
E nesta brincadeira entre revolucionários revisionistas, social-fascistas, trotsquistas, leninistas, estalinistas, maoístas e indiferenciados e destes com os contrarrevolucionários socialistas (que encobriam no seu seio, qual serpente venenosa, os social-democratas, os democratas-cristãos e alguns, poucos, liberais), a cada dia que passava a cidade ia ficando mais e mais explosiva. Então à noite só se podia sair em grupo e devidamente armado. Tumultos e confrontos havia-os em cada canto e esquina, entre os mais diversos protagonistas e pelas mais variadas razões. E até sem razão nenhuma.
A intervenção da GNR era solicitada nos mais variados locais por gente à rasca, por vezes mesmo à rasquinha, que era vítima de furtos ou via o seu direito ao descanso ser ameaçado por bandos de rufias que faziam mais vasqueiro do que uma vara de porcos famintos. Mas as novas regras ditavam que a ação da força policial, que agora estava sob rigorosa vigilância revolucionária, unicamente podia ser feita por voluntários e apenas quando estavam em causa ofensas graves à coesão social e à independência nacional, o que não era manifestamente o caso.
A esquerda considerava a GNR o último baluarte do Estado Fascista. E o povo não necessitava de que aqueles homens fardados, que sempre defenderam a ditadura e oprimiram o povo, viessem meter o bedelho onde não eram chamados. Apenas as forças armadas, especialmente as tropas do MFA, eram bem-vindas, pois era certo e sabido que em vez de atuarem se punham a confraternizar com os agitadores, pois a revolução, era certo e sabido, seguia dentro de momentos.
Postas as coisas nestes termos, o guarda Ferreira, que era o impedido do Capitão Martins, só pôs os pés de fora do quartel no momento de se vir embora definitivamente. O seu superior, que lhe devia muito jantarinho a desoras, muita inconfidência protegida e muito pecado venial encoberto, disse-lhe que era homem para propor uma promoção do guarda Ferreira a primeiro-cabo se ele se atrevesse a fazer algumas rondas pelas sedes dos vários, e distintos, partidos comunistas, partidos fascistas e partidos democratas, na tentativa de impedir que fossem invadidas por crápulas que não se cansavam de brincar com coisas sérias: a política, a segurança das pessoas e dos bens e o respeitinho que a todos era devido.
A princípio ponderou a oferta, pois sabia que era agora ou nunca que podia satisfazer a ânsia de prestígio da Dona Rosa. Como primeiro-cabo podia mesmo vir a ser chefe de posto em alguma terreola próxima de Névoa. E depois logo se veria como correria a ascensão ao ambicionado cargo de sargento, que era a categoria mais alta a que podia aspirar dentro da corporação. Ofereceu-se como voluntário, escolheu o roteiro das patrulhas e definiu prioridades. Tudo muito certinho e direitinho.
Só que na noite em que estava para sair em serviço, assistiu, estupefacto, à chegada de uma patrulha, salva por outras duas ou três das mais prestigiadas e das mais calejadas no ofício de dar cacetada, que viu o jipe em que seguia ser incendiado por jovens encapuzados, que assistiu incrédula ao roubo das suas armas de fogo e que se viu obrigada a aguentar uma carga de porrada, muito ao jeito popular, o que deixou os garbosos e destemidos agentes da autoridade à beira da morte.
Nestas circunstâncias, o guarda Ferreira pensou que uma coisa era querer ser promovido para agradar à mulher e, quem sabe, ao Capitão Martins. Outra, bem diferente, era armar-se em herói e ganhar, com a brincadeira, um baú de pau, mesmo que gratuito a heróis efémeros, uma medalha de coragem e bons serviços prestados à pátria e à democracia, fosse lá isso o que fosse, e uma pensão de miséria vitalícia para a sua mulher e para os seus filhos.
Mal entrou no gabinete do seu superior, o guarda Ferreira deu-lhe conta do que tinha visto há poucos momentos e pediu-lhe encarecidamente que o tirasse da patrulha que estava para sair dentro de minutos. O Capitão Martins, com um sorriso nos lábios, perguntou-lhe se não queria progredir na carreira, pois ou era agora que o tinha ali como amigo que as coisas se compunham, ou então bem podia tirar o cavalinho da chuva que nunca mais teria uma oportunidade como aquela. Situações revolucionárias vivem-se uma vez na vida. Ou nem isso.
O guarda Ferreira desabafou: “Foda-se, com sua licença meu capitão, mas ainda não estou pronto para morrer. Suspeito que o Jorge, aquele grandalhão de Freixo, vai desta para melhor. Ele que era homem para pegar num porco dos taludos e sozinho pô-lo no banco, está para ali a miar como um gato, sangrando das fuças como um coelho a quem lhe deram a cutilada final. E eu não estou para heroísmos destes. Eu quero andar por cá durante ainda mais algum tempo para ver crescer os meus filhos. Eu não tenho vocação para herói.”
O capitão Martins, ainda com o sorriso irónico nos lábios, olhou para o seu impedido e disse: “Tu juraste defender a ordem. E, deixa que to lembre, o nosso lema é: Pela lei e pela grei.” E o guarda Ferreira: “Isso foi noutros tempos. Agora o povo está demente. Não trabalha, berra a toda a hora, faz greve por tudo e por nada. E as pessoas dos partidos comportam-se como garotos. Colam os seus cartazes, rasgam os cartazes dos adversários, pintam paredes com os seus símbolos e com as suas palavras de ordem e apagam os símbolos e as palavras dos outros. Cada um diz que é mais revolucionário do que o outro ou que é mais democrata do que o outro. Mas, bem vistas as coisas, são todos iguais. Cada um quer que o seu partido chegue ao poder para mandar no povo e arranjar uns tachos para si e para os que melhor o serviram e servem. São todos fanáticos. Apenas se querem matar uns aos outros. E, à falta de outro inimigo mais à mão, agora juntam-se para bombar nos guardas.”
“Então desistes?”, perguntou o capitão. Ao que o guarda respondeu: “Desisto, mas desisto mesmo.” “Pronto, está desistido. Pretendes mais alguma coisa de mim?” “Sim, meu capitão, pretendo.” “Isso é que é falar. E o que pretendes tu?” “Ir-me embora. Aqui já não faço nada. Hoje perdi as esperanças em ser promovido. Por isso quero ir para a minha terrinha, que é bem mais calma do que este ninho de cucos. Lá os comunistas são meia dúzia de gatos-pingados que não fazem mal a uma mosca. Posso não ser promovido, mas também não corro o risco de ser morto à porrada ou à facada ao virar da esquina por um bando de energúmenos.” “Ao que sei por lá também são meio malucos.” “Diz bem meu capitão, são meio malucos. Mas aqui são malucos por inteiro.” “Então vejo que queres pôr-me a comer na messe dos oficiais.” “Ó meu capitão, sei que também já fez o pedido para ir chefiar o posto da sua terra. E para lhe cozinhar os pitéus peça à sua criada, pois fá-los tão bons ou melhores do que os meus. A rapariga é muito prendada.” “Ai Ferreira, Ferreira, desconfio que andaste lá por casa a sarandar nos dias em que eu e a minha esposa andávamos por fora.” E riram-se ambos e dois a bom rir. No final da conversa cumprimentaram-se como dois velhos amigos e cada um foi à sua vida.
33 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.