111- “Atenção. Camaradas atenção. Atenção camaradas e amigos. Camaradas, atenção, sentem-se porque vamos dar início à sessão de esclarecimento. Camaradas, nas cadeiras estão uns livrinhos que o Partido faz questão em vos oferecer. São o programa e os estatutos do Partido. Camaradas levem-nos e leiam-nos com muita atenção. Neles, camaradas e amigos, está resumido tudo aquilo que somos e tudo aquilo porque lutamos.”
A foice, o martelo e a estrela amarelas lá estavam cosidas no pano como uma bem-aventurança. O vermelho das bandeiras até doía. Tal e qual a capa dos livrinhos distribuídos. A primeira coisa que o José pensou foi que não gostava do amarelo e abominava o vermelho. E a palavra “camaradas” soava-lhe estranha. Tanta intimidade entre desconhecidos cheirava-lhe a promiscuidade. Mas tentou disfarçar. Só que aquilo que começa mal, tarde ou nunca endireita. Apenas mais tarde – tarde de mais, como veremos – é que se deu conta que nunca se pode estimar aquilo de que não gostamos. O cérebro é uma máquina infernal e o coração uma caixinha de enganos.
O camarada esclarecedor, um funcionário do Partido da era clandestina, ladeado por uns camaradas nevoenses mais ou menos conhecidos (ou mais ou menos desconhecidos, que é uma forma de dizer o mesmo mas por outras palavras), na cidade e nos arredores, esclareceu aquilo que pôde e soube, que era pouco e extraordinariamente monótono, mas em terra de calados quem decora os textos, e faz que acredita neles, chega sempre a chefe, ou a algo pelo estilo.
Os camaradas “ladeadores” do camarada esclarecedor postaram no rosto o ar mais sério deste mundo e assim compuseram um arranjo de mesa convincente. Bastava uma expressão circunspecta para fornecer aos camaradas elementos decoradores da mesa um ar suficientemente apelativo e ligeiramente revolucionário. Os camaleões, como todos sabemos, são animais de ambiência.
Dessa forma, todos os militantes camaradas que se esforçaram por corresponder à iconografia comunista, que foram exercitados a venerar no sombrio das suas casas, e no sigilo das reuniões exíguas e “conspiradoramente” clandestinas, compunham um ar beato e conformista com o revolucionário propósito de conferir algum conforto espiritual, e sentido social, a quem vivia rodeado de miséria e ignorância.
Mas estes últimos, como é fácil de deduzir, estavam nas tabernas a beber vinho até ficarem parvos, ou nos barracos a dormir a sesta ou entretidos a “caralhar”, foder e “filhadaputar” todas as frases que articulavam e a jogar ao chincalhão ou à sueca.
O povo é mesmo estúpido. Enquanto vivia a sua vida de alienação, outros, os tais camaradas, esforçavam-se, labutando sentados nas cadeiras dos Pintassilgos, por lhe traçar o destino, para lhe dar uma vida melhor, agitando as sentenças, gritando palavras de ordem, cantando hinos apologéticos, entusiasmando pequeno-burgueses que se sentiam divididos entre o proletariado e a burguesia.
Para ali estavam eles, pobres coitados, como o tolo no meio da ponte sem conseguirem definir o lado a escolher. Tanto os operários, como os burgueses, desconfiavam dos desgraçados pequeno-burgueses. E os camponeses mantinham-se na sua letargia de lagartos na toca.
Por cima de isto tudo encontrava-se o camarada esclarecedor que iniciou, como já sabemos, a sessão cumprimentando os camaradas e amigos que por ali estavam, todos eles com cara de caso e com o coração a modos que apertadinho.
Mesmo em liberdade, os camaradas comunistas continuavam desconfiados e os seus amigos que buscavam esclarecimento sentiam que ali não se respirava um ar de festa, mas antes se vivia um ambiente de serena ambiguidade. Uns sem saber bem o que dizer e outros sem atinar bem com o que pensar. Mas nada que assustasse um bolchevique português, nada que intimidasse seriamente a vontade e a determinação proletárias.
“Camaradas e amigos”, disse o camarada funcionário esclarecedor, e continuou a palrar daquilo que desconhecia, mas pensava conhecer e saber, porque lho contaram com redondas palavras de apreço e admiração os camaradas mais responsáveis, os camaradas mais esclarecidos, os camaradas mais viajados, os camaradas mais sofredores, os camaradas mais lutadores, os camaradas mais brilhantes. Enfim: os camaradas mais camaradas dos camaradas, que, por incrível que possa parecer, acamaradavam pouco com os outros camaradas.
O camarada esclarecedor esclareceu – para isso é que ali estava –, que o mundo se encontrava dividido entre exploradores e explorados, entre ricos e pobres… entre bons e maus. Entre os camaradas verdadeiramente camaradas e os outros. Porque camaradas havia muitos, até os socialistas do Mário Soares assim se tratavam. Mas camaradas camaradas só existiam uns, os comunistas e mais nenhuns. Mas, cuidado, nem todos os comunistas são verdadeiros, nem todos os camaradas são autênticos. Apenas os do “nosso” Partido o são.
Os grupelhos autointitulados de comunistas, que apenas constituem um disfarce da burguesia, não o são, nunca o foram e nunca o serão. Esses fedelhos são apenas pequeno-burgueses de fachada socialista, arregimentados pela burguesia para iludir o povo.
Por isso todos os que ali estavam tinham de fazer uma opção clara. Porque ou se estava com a revolução ou com a reação. Ou se estava com as forças do progresso e do futuro ou com as forças do imobilismo e do passado. Ou se estava a favor da História ou contra ela.
O caminho do futuro ou era o socialismo ou não existia. Mas, atenção, o socialismo que os camaradas comunistas defendiam não era esse socialismo da treta, esse socialismo burguês, esse socialismo subserviente que os socialistas de Mário Soares diziam defender. Nem o socialismo radical, palavroso e esquerdista apregoado pelos grupelhos autointitulados de comunistas, que apenas são um disfarce da burguesia e agentes da CIA. Não, esse socialismo não era socialismo nenhum. Era um embuste. Era uma traição. Era um engano. Era a cara e a coroa da mesma falsa moeda.
O verdadeiro socialismo era o socialismo de transição, um socialismo científico defendido pelos verdadeiros socialistas, os comunistas do Partido Comunista, e apenas por eles, pois um socialismo que se ficava apenas pelo socialismo e pela utilização da palavra socialismo, não era socialismo. Não era nada.
O verdadeiro socialismo era o que possibilitava, e apontava, claramente, a última etapa: o comunismo. Mas o comunismo verdadeiro, não o apregoado pelos esquerdistas, esses grupelhos provocadores autointitulados de comunistas, que apenas são um disfarce da burguesia. Esses fedelhos da CIA.
O socialismo que se limita a sê-lo, e se esgota nas palavras e na forma, é apenas uma mistificação burguesa, organizada com a única e exclusiva determinação de trair os proletários e a verdadeira revolução mundial.
Por isso existia o Partido, para organizar as massas populares e com elas lutar tendo em vista implementar em Portugal o verdadeiro socialismo, o socialismo científico, o socialismo a caminho do comunismo. Não o socialismo do punho. Mas sim o socialismo da foice e do martelo. O socialismo da estrela amarela. Não o socialismo radical, palavroso e esquerdista apregoado pelos grupelhos autointitulados de comunistas, que apenas são um disfarce da burguesia. Cuidado com eles. Muito cuidado, pois esses fedelhos, mesmo não parecendo, são agentes da CIA.
O socialismo do punho existia para travar a revolução, para desmobilizar os camaradas proletários, os camaradas operários, os camaradas soldados, os camaradas camponeses, as camaradas mulheres e os camaradas jovens estudantes. O socialismo apregoado pelos seguidores de Mário Soares era uma traição ao verdadeiro socialismo. O mesmo se podia afirmar acerca do socialismo radical, palavroso e esquerdista apregoado pelos grupelhos autointitulados de comunistas, que apenas eram um disfarce da burguesia. Esses ganapos, com toda a certeza, eram agentes da CIA.
Não, esse socialismo não era socialismo nenhum. Era um embuste. Era uma traição. Era um engano. O socialismo defendido pelos comunistas preconizava a abolição da sociedade dividida em classes, defendia a extinção da burguesia, do estado burguês, do capitalismo e da exploração do homem pelo homem.
“Amigos e camaradas”, continuou a monologar o camarada esclarecedor, “nós não defendemos uma democracia burguesa de tipo parlamentar.” E, perante o silêncio absoluto dos camaradas e amigos que estavam na sala, continuou a malhar nos falsos camaradas socialistas como em centeio verde.
Para ele, e para os seus, o parlamento servia apenas para iludir os portugueses. Esse tipo de democracia formal não tinha espaço para ser desenvolvida em Portugal.
A democracia a implementar em Portugal tinha de ser de tipo popular, uma democracia ditatorial. Uma ditadura democrática, apelidada pelos comunistas de ditadura do proletariado, que era a forma democrática mais avançada do planeta. Porque a democracia formal era uma ditadura da burguesia, enquanto a ditadura do proletariado era uma democracia de operários e camponeses tão avançada que não havia igual e por isso não admitia contestação e, aparentemente, apenas aparentemente, até contradizia e confundia as palavras e os conceitos. A revolução tem destas coisas: subverte tudo. Revoluciona tudo. Põe tudo de pernas para o ar. Por isso é que é revolução.
O José ainda pensou em interromper o solilóquio para questionar o camarada esclarecedor sobre a aparente incoerência das suas palavras que levava a uma contradição dos conceitos e que poderia conduzir a uma interpretação errónea da quantidade e qualidade revolucionária do socialismo científico. Mas o Graça, já há algum tempo militante do Partido, e portanto camarada do camarada, e apenas amigo do José, disse-lhe ao ouvido que era melhor estar calado, pois questões desse tipo podiam ferir a sensibilidade do camarada esclarecedor e comprometer a sua futura adesão ao comunismo.
“Os princípios básicos do comunismo não se discutem. Aceitam-se porque são científicos”, afirmou o camarada Graça para o amigo José, sem admitir contraditório. “Ainda agora aqui chegaste e já estas a contestar, já estás a questionar, já estás a criticar. Deixa-te de merdas e escuta a voz da razão.”
Nesse momento pensou que afinal o comunismo era também uma espécie de religião com os seus tabus, os seus dogmas e com os seus camaradas sacerdotes, camaradas bispos, camaradas cardeais e camaradas papas. E, o que era ainda mais preocupante, com os seus assassinatos em série. Na Igreja não se discutiam os dogmas, no Partido não se discutiam os princípios, nem os meios. Apenas os fins interessavam. Na religião o homem serve a Deus, no comunismo o homem serve o Partido. Agora, por favor, caros leitores procurem as diferenças objetivas.
O camarada Graça, tornou a olhar para o ainda amigo José, observando-lhe o rosto de perplexidade, e voltou a dizer-lhe que na revolução ou se está com o povo ou se está com a burguesia. Na revolução ou se está ao lado dos camaradas explorados ou ao lado dos infames exploradores. E quem se mete ao meio apanha com o fogo cruzado da artilharia revolucionária.
“Mas…”, tentou argumentar o José rezando baixinho algumas queixas e outras tantas perplexidades. Ao que o camarada Graça respondeu com a sua recente autoridade de comunista camarada marxista-leninista, estalinista e punhalista rigoroso: “No processo revolucionário em curso não há mas nem meio mas. Ou estás connosco ou estás contra nós. E desde já te aviso que quem está contra nós fode-se.”
E o José: “Se pões a questão nesses termos, deixa lá o camarada esclarecedor dizer o que diz que eu sou todo ouvidos. Já aqui não está quem falou. No comunismo é tudo muito direto ao objetivo. Eu agora já sou dos teus, vê se te acalmas camarada. Posso ainda não estar convencido, mas sinto que fui vencido. Avante camarada.” E baixinho: “Aiô Silver, avante!... camarada avante, junta a…” E todos na sala continuaram a cantar o hino do Partido como se estivessem no mês de Maria.