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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Mai12

O Poema Infinito (102): nunca mais

João Madureira

 

Transporto no meu peito a madre tradição, bem junto ao coração e nela caem cálidas lágrimas de paciência. Plantas frágeis nascem-me dos dedos enquanto as ideias mais fortes se moldam na forja das conotações. Musas enormes, como seios amamentadores, parem sonhos de linguagem e sonetos escritos com fios de fogo. A alma absorve a seiva da terra através dos poros e os deuses obscenos continuam a fazer contas de morte e salvação. Tenho saudades do sol dos piqueniques, da comida dos piqueniques, das conversas dos piqueniques e dos piqueniques e também dos sons deliciosos dos amantes que se afastavam dos piqueniques para fornicarem dentro da sua doce e carinhosa lascívia. E nós fazíamos de conta que nada se passava, que a arte da vida estava em chupar os ossos do frango e em lamber os dedos cheios da gordura. As mulheres trinchavam o cordeiro e afastavam as más memórias. E riam. E contornavam delicadamente a infância. E impregnavam o ar do seu cheiro a lugares macios. E apalpavam o pão para saber da sua evidência. E todos salivávamos quando víamos o polvo e o bacalhau fritos e sibilávamos banalidades doces e bebíamos copos de sumol ou de vinho tinto ou branco. Depois íamos chapinhar na água. E o tempo parava. E as coisas tornavam-se transparentes e os nossos sonhos colidiam no meio de palavras que pousavam suavemente nos nossos ouvidos. Depois invadia-nos um sono de aves e o vento dispersava os insetos e a erva e o pranto de nos sentirmos vivos e felizes como se isso fosse quase impossível em gente da nossa condição. E as lágrimas refaziam-se repletas de tempo. Lá mais para a tarde saboreávamos a fruta e colhíamos um a um os bagos dos cachos de uvas. E as nossas avós soluçavam memórias e faziam-nos festas antigas e riam sentadas em cima das suas esperanças já desfeitas. E perguntavam-nos coisas simples e dobravam os seus velhos fios de ouro com os dedos calejados. E mastigavam mais uma maçã ressuscitando temporariamente os seus mortos. Os nossos mortos. E piscavam os olhos lacrimejantes limpos pela tristeza do choro. E ficavam em paz dentro da sua melancolia densa. Nelas sentia-se romper mais uma raiz em busca de terra e água. E cada vez mais as suas lembranças subiam para os nossos ombros e entravam a medo no nosso coração. E os homens eram agora invadidos por uma solidão imensa e por isso bebiam o resto do vinho até só quase conseguirem dizer asneiras. E riam-se da sua própria estupidez. E a noite chegava e prendia-nos a todos à eterna saudade desse dia que nunca mais voltaria. Nunca mais. 

28
Mai12

Da expetativa ao imobilismo (XVII): António, o desistente

João Madureira

 

Quando alguém me comentou a forma como António Cabeleira agiu, e reagiu, na recente reestruturação dos serviços da nossa autarquia veio-me logo à ideia uma frase do brilhante livro de Caudio Magris, Às Cegas, que aqui deixo aos estimados leitores para reflexão: “Quem dá ordens ilude-se e pensa que comanda.”

 

É verdade que o vereador António quando dá ordens pensa que comanda, mas isso é apenas aparência. Tal e qual como quando fala aos jornais para nada dizer, ou então para confirmar que está num processo acelerado de abandono das principais promessas eleitorais que fez para estes últimos quatro anos de gestão autárquica laranja. João Batista faz de cego e mudo e o seu vice desempenha o papel de surdo. A peça encenada sugere muita, mas mesmo muita, confusão.

 

Pois é, António Cabeleira foi recentemente enxertado no pelouro do desporto da autarquia flaviense. E fê-lo porquê? Está claro que não foi por causa da sua competência técnica e política em relação ao desporto. Nem sequer pelo seu amor ou dedicação ao desporto. E muito menos porque se sinta inclinado a abraçar esta pasta numa putativa vitória (o diabo seja cego, surdo e mudo, pois para atraso de vida já nos chegam, e sobram, os dez anos em que ele e João Batista, ou o João Batista e ele, geriram de forma infeliz e irrefletida os destinos da nossa cidade e do nosso concelho) para presidente da Câmara de Chaves.

 

A razão não é técnica nem de mera gestão administrativa, como ele tenta fazer querer durante a entrevista que concedeu a um jornal local. Não, a lógica é estritamente partidária. Pois este era um dos pelouros atribuídos ao seu rival Carlos Penas.

 

Desde que venceu as eleições internas do PSD, António Cabeleira não tem feito outra coisa que não seja afastar os seus rivais dos lugares dirigentes no partido e dos locais de direção efetiva na Câmara. E o homem não descansou enquanto não arredou para os lugares cinzentos e destituídos de poder efetivo, o seu grande rival.

 

E aqui para nós que ninguém nos ouve, a verdade é que João Batista tinha dado como adquirida a candidatura de Carlos Penas quando viu que António Cabeleira se tinha decidido pelo lugar de deputado por Vila Real. Mas o seu vice não se deu bem com os ares de Lisboa, pois lá não mandava em nada nem em ninguém. Ninguém o ouvia, ninguém lhe prestava atenção, ninguém lhe ligava nenhuma. No seu grupo parlamentar era o último da cadeia hierárquica.

 

Vendo-se triste e desamparado, pegou nas malinhas e retornou ao seu lugar de origem. E, a partir daí, tudo fez para derrotar o seu rival Carlos Penas. Tudo fez, e convenhamos, conseguiu. Até porque João Batista, qual Pilatos, deixou cair o seu delfim e a seguir lavou as mãos, desinteressando-se definitivamente pela qualidade, ou falta dela, da sua sucessão.

 

António Cabeleira, quando confrontado com a questão acerca da sua investidura como responsável pelo desporto, argumentou de forma técnica, com palavras pouco adequadas, acabando por admitir o pior. E passamos a citar: “Não houve qualquer análise de valia na área do desporto, pelo antigo vereador Carlos Penas, antes pelo contrário, pois é uma pessoa bem mais informada do que eu e com grande mérito no trabalho realizado.”

 

Mas como é “uma pessoa bem mais informada” do que António Cabeleira e “com grande mérito no trabalho realizado”, dá-se-lhe um pontapé no traseiro e põe-se a andar porque o vice de João Batista, que é bem menos informado e sem méritos reconhecidos nesta área, resolveu abocanhá-la com ciúmes do crescente protagonismo do seu rival.

 

Mas o que mais nos incomodou na entrevista do senhor vice, além de uma grande carga de hipocrisia política, foi a sua confissão de desistência relativamente a todos os projetos estruturantes que a Câmara tinha agendado relativamente a estruturas desportivas.

 

O homem congelou tudo. Desistiu do Pavilhão Multiusos, abandonou da ideia de um parque desportivo e abdicou da ideia da implementação dos sintéticos.

 

Ou seja, por causa de terem gasto o dinheiro que ainda possuíam em obras de mais que duvidosa qualidade, oportunidade ou necessidade, como o sejam os dois jardins destruídos, o parque industrial novo e abandonado, as vias intervencionadas e cestas e bancos espalhados a esmo nas ruas da cidade para atrapalharem ainda mais a mobilidade dos flavienses e dessa forma recompensar gentilezas e fazer de nós parvos, agora vêm para os jornais comunicar que desistem de tudo, ou quase tudo, relativamente a infra-estruturas desportivas que tanta falta fazem a Chaves. Isto para não falar no buraco que substitui o prometido parque de estacionamento no quarteirão do Faustino e a eterna promessa, sempre adiada, de reabilitação do antigo Cine-Teatro no centro da cidade.

 

A verdade salta à vista, a Câmara de Chaves está como o país, em pré-falência.

 

Quando o jornalista lhe colocou a questão sobre os desafios que assume enquanto gestor da pasta, António Cabeleira, respondeu de uma forma inenarrável: Se não “diminuir a atividade já é bom”. Ou seja, vai diminuir a atividade desportiva e satisfaz-se com isso. Promete-nos um regresso ao passado e quer que todos concordemos com a sua desistência.

 

A verdade salta à vista, com o António Cabeleira à frente dos destinos da Câmara de Chaves espera-nos a estagnação, o abandono e a desistência.

 

Em tempo de vacas gordas gastaram dinheiro à tripa forra em obras sem vulto, deixando as estruturantes para o período pré-eleitoral. Mas a porca sai-lhes mal capada. Por isso agora só lhes resta desistir. Então e a esperança? Então e o futuro?

 

Se um putativo candidato a presidente (o diabo seja cego, surdo e mudo, pois para atraso de vida já nos chegam, e sobram, os dez anos em que ele e João Batista, ou o João Batista e ele, geriram de forma desastrosa e leviana os destinos da nossa cidade e do nosso concelho) da nossa autarquia diz ainda antes das eleições que só nos resta o caminho da abdicação e da desistência, o melhor que tem a fazer é ir para casa calçar o chinelos, pôr-se a ler o jornal, aquecer-se à lareira, pois já não serve para mais nada.

 

Se quer ser eleito para desistir depois, então o melhor que tem a fazer é desistir já e deixar o caminho livre a quem tem projetos para o futuro, a quem não desiste de lutar por um futuro melhor para os flavienses.

 

 A verdade salta à vista, António Cabeleira não aprecia a nossa terra nem defende as nossas gentes. Não ama a nossa cidade, por isso não consegue projetá-la para ter futuro. Quando as coisas se complicam, o homem desiste.

 

A pensar em alguma coisa, o vereador António apenas pensa no seu partido e na manutenção do poder para satisfazer clientelas e promover amigos.

 

Sobre os projetos, diz que deixou cair o Pavilhão Multiusos porque apenas dará prejuízo. Afirma que é um sorvedor de dinheiro. Mas desde quando é que uma estrutura desportiva pública é feita para dar lucro?

 

Por essa lógica, estamos em crer que o senhor vereador e os seus colegas, e restantes prosélitos, porque dão um grande prejuízo à autarquia, também devem ser dispensados de funções, antes que arruínem de vez a Câmara.

 

Sobre vários projectos de parques desportivos afirmou que comprou os terrenos mas que devido à conjuntura económica os planos ficaram adiados. Desistiu também de vários campos de ténis, desistiu das piscinas municipais, dos relvados sintéticos. Desistiu de tudo. Só ainda não desistiu de querer manter-se à frente da Câmara. Mas essa era a sua melhor saída. 

 

A construir, diz que apenas se vê a fazer campos pelados. É caso para dizer que, nesse caso, o melhor será ele e os seus irem para lá jogar para verem como elas doem.

 

“Neste período de crise que estamos a viver pretendemos que o número de clubes mantenha a sua atividade.” Ó senhor vice, ser vereador para prometer desistência, abandono e conformismo, o melhor é agarrar na pasta e ir para casa e informar alguns dos seus apaniguados que rumem aos seus postos de trabalho originais e deixem a política para quem sabe, deixem a cidade para quem a ama e deixem o desporto aos desportistas.

 

Nunca se esqueça que a crise que estamos a viver se deve a políticos idênticos, que gastaram aquilo que tinham e que não tinham e agora quem vai pagar as favas são os portugueses, neste caso concreto os flavienses, que nesse processo não foram tidos nem achados.

 

Pois é, o senhor vice tem o direito de desistir, tem mesmo o direito de vir para os jornais afirmar que tomou conta dos destinos de uma pasta camarária para desistir. Só não tem é o direito de nos querer convencer que todos temos de desistir porque o nosso estimado amigo desiste. 

 

Desista se quiser, como o fez enquanto deputado traindo a confiança que os flavienses, que em si votaram, depuseram no momento da sua eleição. Desista, porque é isso que sabe fazer enquanto político. Desista, mas deixe que aos flavienses continuem a ter uma réstia de esperança e por isso acreditem que os políticos não são todos iguais e que o nosso caminho é rumo ao futuro.

 

Pois é senhor vereador António, a nossa diferença está em que o meu amigo tem saudades do passado e por isso desiste. Nós, pelo contrário, não desistimos porque somos homens e mulheres de fé. De fé no futuro. Nós, ao contrário de si, temos é cada vez mais saudades do futuro, de um futuro liberto de políticos desistentes, dos quais o senhor vereador é um dos mais paradigmáticos representantes.

 

PS 1 – Lembram-se de eu dizer aqui que o vereador António Cabeleira tinha usurpado o lugar a Carlos Penas por causa do protagonismo. Se calhar alguns dos estimados leitores pensaram que era exagero. Manias minhas. Pois a prova provada, como diz o nosso povo, veio estampada na primeira página dos jornais, designadamente na apresentação dos “Chaves Beach Games 2012”.

 

Na fotografia da capa aparece o senhor vice camarário de mãos entrelaçadas e a sorrir para o fotógrafo, rodeado por diversas pessoas, nomeadamente por um seu colega de partido, que é para estas coisas que eles existem e fazem política à boleia do desporto.

 

Na notícia que acompanha a foto não encontrámos nem uma única palavra do senhor vereador. O que nos leva a concluir que apenas lá foi para aparecer na fotografia e, em consequência, nas capas dos semanários regionais.

 

A ambição política tem destas coisas, transforma homens simples em personagens fotográficas. Isto independentemente da qualidade, da verticalidade, da coerência, da competência, da seriedade e das ideias. Raio de política que transfigura as figuras públicas em “emplastros”.

 

PS 2 – Não é por nada, mas não ficaria de bem com a minha consciência se não dissesse aos organizadores que talvez não fosse má ideia que o evento desportivo que organizam se chamasse pura e simplesmente “Torneio de Futebol de Praia de Chaves”. Depois queixamo-nos que cada vez mais a nossa língua é desprezada, esquecida e rejeitada. Se somos nós próprios a renegá-la o que pensarão os outros povos de nós. Lembrem-se de Fernando Pessoa: a minha Pátria é a língua portuguesa. Sejamos, pois, patriotas. Podem estar seguros de que o torneio não perde qualidade por isso.

25
Mai12

O Homem Sem Memória - 116

João Madureira

 

116 – E presumivelmente melancólico avançou para o Novo Testamento. Mas passemos, com a vossa permissão, a mais algumas anotações. Estas feitas em papel branco e escritas à máquina.


Logo a abrir, o Evangelho de S. Mateus fala da genealogia de Jesus Cristo. É o romance mais pequeno e mais impetuoso de sempre, cheio de personagens que se sucedem a um ritmo frenético.


E lá está Abraão que gerou Isaac que gerou Jacob que gerou Judas que gerou Farés que gerou Esrom e assim sucessivamente até a Jessé que gerou o rei David que gerou Salomão e por aí fora numa sucessão arrebatadora de sequências ininterruptas, sempre no masculino, como se fossem os homens que parissem, até chegarmos a Jacob que gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.


Na parte relativa ao nascimento de Jesus é contada a famosa e enigmática história de que Maria engravidou sem se ter antes ajuntado com José, o seu legítimo e carnal esposo.


Passo a citar: “ Então José, seu marido, como era justo e não queria infamar, intentou deixá-la secretamente. E projetando ele isto, eis que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de David, não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo. E dará à luz um filho, e chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.


Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor, pelo Profeta, que diz: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é: Deus connosco. E José despertando do sonho, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher; e não a conheceu até que deu à luz o seu filho, o primogénito; e pôs-lhe por nome Jesus.”


Bem, esta segunda parte da história é, no mínimo, rocambolesca. Maria já estava grávida no momento do casamento. E isto é uma maldade divina. Ou seja, o Espírito Santo, que é uma figura estranha, soturna e enigmática, gerou Jesus sem dizer nada a Maria nem a José. Não disse nada a ninguém. Escolheu, decidiu e fez. Posteriormente confrontou-os com o putativo pai com o facto consumado. Podia ter discutido com José e tentar convencê-lo, pois não estou a ver José com tomates suficientes para contrariar Deus, mesmo que o pensasse. Tarefa mais árdua seria persuadir um ateu.


José, porque descendia de reis tementes a Deus, porque era obediente, porque tinha postura de estadista e uma mulher grávida pelo seu Deus, aceitou a fatalidade e soube-a aguentar em silêncio. Não sabemos se era humilde ou simplesmente parvo.


Em nome do seu povo, e da salvação do mundo, José não devia de ter dúvidas. Além disso, José era um homem que acreditava nos sonhos e que sonhava com coisas esquisitas. Não se percebe muito bem por que é o anjo quem aparece nos sonhos de José e não o próprio Espírito Santo, que não sabemos se é mesmo Deus, um seu disfarce ou um heterónimo.


Do que não há dúvida nenhuma é que José era mesmo um cavalheiro, pois mesmo antes de fazer juízos de valor, já tinha decidido deixar Maria sem dizer nada a ninguém.


No entanto registo uma incongruência textual que é a passagem onde se afirma que José é filho de David, quando um pouco antes Mateus, ou alguém por ele, escreveu que o pai de José era Jacob. José era descendente de David, não seu filho. Outra evidência é que o nome profetizado para Jesus era Emanuel, que traduzido, não sabemos de que língua, nem por que razão, queria dizer que Deus estava connosco.


Desfeito o imbróglio, ou confessado o pecado original da gestação de Jesus, por parte de Deus, sob o disfarce de Espírito Santo, José despertou e recebeu Maria, mas não se atreveu a tocar-lhe até ela dar à luz o seu filho. Curioso é o facto de a partir de José, a sucessão passar dos homens para as mulheres, sem razão aparente. Qual terá sido a razão para a mudança radical de paradigma? São insondáveis as escrituras do Senhor. Ou seja, Jesus veio interromper a cadeia genealógica de Abraão para se dedicar a fazer milagres e a iludir a humanidade com a mais que duvidosa promessa de eternidade. Manias.


Está visto que Mateus, tal como José, era o rei dos crédulos, ou, então, um excelente contador de histórias para o lar e para as crianças. É que logo a seguir fala dos magos do oriente, da fuga para o Egito e da matança dos inocentes, da volta do Egito, de João Batista, do batismo de Jesus, da sua tentação pelo Diabo e outras histórias pelo estilo.


O Evangelho de Mateus assemelha-se muito com a tradição árabe do conto de histórias mágicas e terroríficas. De certa maneira Jesus é descrito por Mateus como um mágico e um curandeiro que pelo meio das suas andanças vai dando conselhos, filtrando moral, quase como um lunático cuja missão é curar pessoas e protagonizar feitos que mais parecem guiões de banda desenhada.


Mateus chega mesmo a pôr Jesus a caminhar por cima das águas do mar como um vulgar herói de uma história para jovens.


Vê-se que Mateus fez de Cristo um homem de parábolas, muitas delas interessantes, mas muitas outras disparatadas. Também se torna evidente que Jesus era perito em dar sermões por dá cá aquela palha. Quando alguém o arreliava lá vinha o ungido com mais uma prédica.


Estava escrito nas estrelas que um homem deste género só podia acabar crucificado e morto. Morto pelos homens que dizia defender e ressuscitado pelos escribas que andavam à procura de uma história redentora.


Já o Evangelho de Marcos passa por cima de quem gera quem, para se fixar no essencial. Marcos era um pragmático, ou um censor (é há tantos censores espalhados por esse mundo fora), o que vem a dar no mesmo. Por isso inicia o seu evangelho a dar lições de moral, passando logo para o batismo de Jesus por João Batista.


Da família nada diz e sobre o resto nada acrescenta, limitando-se a seguir o roteiro normal de milagres, parábolas e sermões. É possível que o Evangelho de Marcos seja uma edição revista do Evangelho de Mateus. Ou seja Marcos, porque lhe custou a engolir a história de José, do Espírito Santo e da gravidez de Maria, suprime o início e fica só com a vida adulta de Jesus.


O Evangelho de Lucas tem um prefácio e uma pequena história introdutória. Dá nome ao anjo que anuncia diretamente, e de viva voz, a Maria que vai conceber. Ela, pobre coitada, postada diante de tal imagem resplandecente e perplexa com tão insólita notícia, pergunta ao anjo Gabriel na sua inocência de mulher: “Como se fará isto, visto que não conheço varão?” O anjo, que destas coisas pouco sabia, pois por definição os anjos não têm sexo, respondeu-lhe: “Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.”


Neste evangelho José aparece ao lado de Maria sem se saber bem de onde, nem como, ou porquê. Ou seja, também Lucas evitou a história de um José enganado e aturdido que se desculpa com um sonho para aceitar a gravidez da sua jovem esposa.


Lucas é mais enigmático, pois coloca o Espírito Santo a descer sobre Maria e a virtude do altíssimo a cobrir a eleita do Senhor para a seguir gerar e parir o seu filho. Estranha forma de conceção, convenhamos. E suficientemente enigmática para deixar a gesta em aberto e o enigma por desvendar.


Posteriormente tudo se desenvolve com curas milagrosas, sermões e mais sermões. E na morte e ressurreição de Jesus. Está visto que para os evangelistas o importante era a morte e a ressurreição. O nascimento de Jesus apenas veio atrapalhar. Por isso é que os criadores do Super-Homem trouxeram o bebé de Crípton. Sempre é mais credível.


O Evangelho de João é o do Verbo, onde ele descreve o início da criação do Antigo Testamento de forma lacónica. A novidade é que logo no início do aparecimento da luz resplandecente aparece um enviado de Deus que dá pelo nome de João. Digamos que João não era nada modesto.


E depois volta a aparecer outro João, o Batista, que testemunha e declara coisas de forma imperial, como hoje se diz, “com o rei na barriga”, o que naquele tempo talvez se pudesse exprimir “com Deus na barriga”. Também foge como o Diabo da cruz da história bizarra do engano de José relatada por Mateus.


Talvez seja o Evangelho de João o que melhor resume Deus e o seu filho Jesus: O Verbo se fez carne. O Jesus de João é um homem humilde, bom pastor. Depois também volta ao mesmo: milagres, sermões e histórias incríveis de voos, mortes e ressurreições. 

23
Mai12

O Poema Infinito (101): investigação variável

João Madureira

 

Hoje deitei-me num tufo verde de letras sequiosas numa área delimitada por uma circunferência fixa mediante um sistema regular de campos literais onde se monologava como quem semeia cortesãs redondas em textos epistolares. Toda a erosão se expande enquanto o sol de inverno cobre os livros penteados pelo sono das prateleiras. Dentro dos livros crianças choram a sua maturação fixa de frases perpétuas como se fossem celas eternas. Os céus outrora límpidos tornaram-se opacos. Amantes cegos copulam dentro da sua dimensão escura do amor. Os dias tornam-se carnívoros. Os rios descem as encostas pelos desfiladeiros rasos de teologia. As figuras dos calendários murcham e sufocam na sua raiva fixa. As palavras frias tornam-se incandescentes quando saem dos teus lábios e as frases quebram-se com um antigo sentimento de cortesia. As linhas do poema deslizam agarradas às mãos que são sonhos pequenos que desdobram paisagens e que bendizem os berços dos bebés que brincam com a luminosidade das palavras das suas mães. E as planícies dissipam-se em busca das estações translúcidas que amamentam as árvores que falam. A fantasia é agora um deserto. Os homens atravessam as paredes e sofrem a sua ilusão mortal. Deus aparece-lhes vestido de camponês e divide-os em intervalos mecânicos de chuva. Um tórrido silêncio rodeia-os de suor e memória. Os seus corpos são agora mastros e lanças e punhais vagarosos como olhos frios de medo. Corcéis digerem o seu desalento. Árvores de luto e resignação adoecem padecendo da doença dos gritos. Os cereais coligem frases de fome. Os textos adormecem prolongando o sono dos feiticeiros alquimistas. As crianças bocejam vocábulos descalços. O tempo faz a sua sondagem variável no corpo das crianças. E as crianças voltam a bocejar os seus vocábulos exíguos. Dedos de luz mutilam a noite. Devagarinho chega o realismo apalpando as palavras lisas que falam de pobres, lírica, emoção, democracia e de trabalho e da caligrafia rude dos velhos alfabetizados. E o poeta para na fronteira dos textos apócrifos. Ao poeta fecha-se-lhe a boca. E as frases juntam-se-lhe na cabeça aos molhos. E a sua língua arde. E a sua cabeça arde. E as canções antigas vêm-lhe morrer aos pés. E a sua memória acende-se. E o seu corpo enche-se de borbulhas que são palavras doentes. E os verbos pesam-lhe e os adjetivos doem-lhe. A ternura invade-o de fragmentos agressivos. Qualquer diálogo é agora um novo cansaço. 

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