114 – O José saiu dos Pintassilgos com os olhos a brilhar. Era o que mais tarde denominou como o Efeito Alberto Punhal, que era do tipo Efeito Borboleta, pois aquele bater de asas demagógico e alucinatório iria provocar o tufão que pôs a sua vida num caos.
Entendamo-nos, o camarada de Cristal tinha fama de santo, coisa que não era; tinha fama de filho, mesmo que adotivo, da classe operária, coisa que não era; tinha fama de visionário, coisa que não era mas gostava de ter sido; tinha fama de democrata, coisa que definitivamente não era; tinha fama de tolerante, coisa que não era nem nunca seria; tinha fama de intelectual culto e liberal, coisa que não era mas gostaria de ter sido; tinha fama de comunista, coisa que efetivamente era até às últimas consequências. Mas, bem vistas as coisas, os ditadores atraem sempre as criaturas mais dinâmicas e as mais voluntariosas. E não as atraem por causa da verdade, que eles transformam em ficção, mas sim por causa da ficção, que eles metamorfoseiam em verdade.
Dizem por aí que os ditadores atraem as pessoas por causa do carisma, pelo poder de persuasão, pela chama. Pelo que agora sabemos, isso acontece por causa do sentido de posse, do domínio, da busca do poder. Todos os seres humanos aspiram a mandar uns nos outros, a subjugá-los, de uma forma ou de outra. Então quando se juntam em grupo são piores do que lobos esfomeados. São hienas sôfregas.
Hitler, Estaline, Mussolini, Mao, apenas para falar nos mais famosos, dominaram e subjugaram milhões de pessoas não unicamente devido à repressão. Os seus sonhos loucos de poder só triunfaram porque o povo aderiu em massa. E quantas mais pessoas aderiam mais vontade tinham outras de aderir. Foi assim que nasceram os paraísos socialistas (nacionais ou internacionalistas) no mundo e logo a seguir os gulagues comunistas e os campos de extermínio nazi.
Não pretendemos ser excessivamente provocadores, pois não está na nossa maneira de ser, como os estimados leitores sabem, mas estamos mesmo inclinados a afirmar que todos transportamos dentro de nós um ditadorzinho, ou um ditardozão, em potência. Depois é a ocasião que faz o ladrão. E tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta. E quem não quer ser ditador não lhe veste a cor, não lhe bebe as palavras, não lhes imita a fraseologia e a pose. Mas deixemo-nos de filosofias e vamos mas é ao que verdadeiramente interessa.
Fora do salão juntou-se um grupinho de camaradas, mais ou menos conhecidos uns dos outros, que resolveu aguardar pelo camarada esclarecedor para, à boa maneira transmontana, ir com ele confraternizar.
Lá dentro o camarada esclarecedor e mais dois elementos do secretariado regional do partido iam colocando as fichas de adesão dos novos militantes numa malinha especial, bem junto ao dinheiro angariado na cobrança das quotas aos militantes, da venda de autocolantes e pines, livros e distinto material de propaganda, como emblemas com a foice e o martelo abençoadas pelo camarada Brejnev e pelo camarada Punhal em plena Praça Vermelha no dia do desfile de mais um aniversário da Revolução de Outubro. A bandeira, qual santo sudário, foi dobrada com mil cuidados e enfiada numa caixinha de madeira preciosa, a modos como um sacrário ambulante, religiosamente manufaturada por um camarada marceneiro.
O José tentou meter conversa com os seus já quase camaradas, mas eles, os camaradas, limitaram-se a olhar para ele, o José, como se fosse invisível. Nem ao Graça ligaram muito. Ser camarada é uma coisa, acamaradar é outra bem distinta. Vendo o ambiente frio e separatista que por ali se vivia, o José disse ao Graça que se ia embora para casa. É que no reino dos camaradas há camaradas mais camaradas que os restantes camaradas. Mas o Graça pediu-lhe para ter paciência e aguentar os cavalos. O Graça disse-lhe que a camaradagem é como o óleo de fígado de bacalhau, sabe mal como o caralho mas cura o raquitismo.
Minutos mais tarde encontravam-se num dos carros que rumavam ao bar, situado fora de portas do burgo, propriedade de um outro velho camarada. O camarada esclarecedor foi recebido, por parte do camarada anfitrião, com um enorme e fraterno abraço. Avançaram de imediato para uma pequena sala onde os esperava uma mesa posta com vários detalhes revolucionários. O mais evidente eram os pratos artesanais com fundo vermelho onde era visível a foice e o martelo proletários e a respetiva estrela amarela internacionalista.
Enquanto esperavam pela comida encomendada discutiram vários e interessantes assuntos, pois os comunistas nem por um momento se distraíam da sua tarefa revolucionária. Até quando confraternizavam o faziam militantemente. O comunismo era a sua estrela polar. Aprenderam, os que não sabiam, que tudo na vida é política. Até comer, conviver, ler, estudar, vestir e mesmo ver televisão ou ouvir a rádio. Pretendíamos ser mesmo ainda mais rigorosos, mas não conseguimos, pois não tirámos a limpo se urinar e defecar também são tarefas políticas ou tarefas revolucionárias, ou ambas, ou até nenhuma. Talvez o sejam do ponto de vista que sem elas devidamente executadas, os revolucionários morrem. Mas isso são suposições nossas. Já fornicar, segundo apuramos, é uma tarefa eminentemente revolucionária, quando devidamente enquadrada.
O camarada esclarecedor lembrou aos presentes que, por exemplo, estava aí a chegar o campeonato mundial de futebol e a tarefa de todos os comunistas era aproveitá-lo para esclarecer o povo. “Como?”, Perguntou o Graça. “Porquê?”, perguntou o José. “É que Portugal nem sequer participa”, lembraram ambos ao mesmo tempo. “Nem sequer a União Soviética! Como foi isso possível?” perguntaram juntos, todos os atónitos camaradas militantes comunistas presentes. Como o camarada esclarecedor os mirou com o mesmo olhar com que Estaline examinou Leon Trotsky antes de o enviar para o exílio, os restantes camaradas observaram-se uns aos outros como se fossem desconhecidos.
Foi também dessa forma que o camarada esclarecedor os encarou. E durante breves instantes instalou-se um silêncio arreliador. Por fim, o camarada esclarecedor esclareceu: “Isso foi boicote do imperialismo e manobra da CIA. E mais não digo porque não posso e não devo.” Posto perante esta verdade, o José ainda perguntou com a sua habilidade usual: “Mas então por que razão o imperialismo permitiu a ida de outros países socialistas?”
Nesse momento, como se estivesse combinado, apareceu em cena o camarada dono do bar com as garrafas de vinho tinto a postos e pôs-se a abri-las com algum rigor, lembrando aos presentes que a pinga que iam beber era fruto de muito trabalho seu e de vários camaradas agricultores e que por isso devia ser respeitado e bebido com arte.
O camarada esclarecedor provou-o quase como se fosse um escanção, mas em vez de o deitar fora engoliu-o com prazer evidente. E aproveitou a deixa para contestar ao José: “Para nos dividir.” E de seguida aproveitou a ocasião para responder às restantes questões colocadas pelos dois verdes camaradas.
De facto iam estar presentes no campeonato do mundo várias equipas do campo socialista, nomeadamente a Alemanha Oriental. E também a Jugoslávia, a Polónia e a Bulgária. E como Portugal estava ausente, a nossa tarefa revolucionária era apoiar esses países e aproveitar o evento para enaltecer o desporto praticado nos países socialistas. Tudo devia ser aproveitado para esclarecer o nosso povo da superioridade da organização social e política dos países governados pelos partidos comunistas. “Então no desporto, bem, no desporto, no desporto, é bom nem falar da superioridade do campo socialista em relação ao campo capitalista”, esclareceu o camarada esclarecedor com toda a pertinência revolucionária. E concluiu: “Nós encontramo-nos a anos-luz.”
Novamente o José questionou o camarada esclarecedor: “Visto que Portugal não está presente, mas está o Brasil, que é um país irmão, não é mais sensato apoiar o Brasil? Além disso, o futebol é extraordinariamente aplaudido pelo povo brasileiro e, que eu saiba, também lá existe um partido comunista irmão, forte e combativo que, com toda a certeza, apoia a sua seleção. Além disso, os brasileiros praticam o melhor futebol do mundo. E é crime apoiar uns cepos que mal sabem dar um pontapé na bola sem a magoarem, apenas porque são cidadãos de um país que se afirma socialista. Além disso, os brasileiros falam a nossa língua. E como muito bem diz Fernando Pessoa, “a minha Pátria é a língua portuguesa”. Ora, seguindo esta linha de pensamento, devemos apoiar a seleção do Brasil, porque, bem vistas as coisas, somos povos irmãos. E…”
Bem, se não tivesse entrado o camarada dono do bar, a sua esposa e a sua filha transportando as vitualhadas, tinha-se dado ali algum incidente politico-ideológico que talvez tivesse determinado um outro final para esta história e para o destino do José. Mas são estes pequenos incidentes que da ordem fazem o caos.
Um camarada do secretariado local do Partido aproveitou a vinda da comida para inserir uma lasca de presunto na boca, uma azeitona verde, um pedaço de pão, um golo de vinho e de seguida introduzir na conversa o tema quente do parlamentarismo e, por conseguinte, das eleições.
“É mesmo certo que o Partido vai defender o adiamento das eleições legislativas?” Ao que o camarada esclarecedor respondeu afirmativamente argumentando que o povo ainda não estava preparado para esse ato. “Além disso, o Partido defende que as eleições não resolvem nada, antes pelo contrário, podem dar azo a uma ofensiva dos partidos da burguesia, que ao elegerem os seus deputados tagarelas vão fazer do parlamento português aquilo que sempre foi: um circo de vaidades e uma tribuna de palavras vãs. Os comunistas defendem o povo, defendem a revolução. E a revolução faz-se nas ruas, faz-se com greves, com manifestações, com ocupações de terras, fábricas e casas, faz-se com a nacionalização dos grandes monopólios e dos latifúndios. A revolução não se faz nas cadeiras do parlamento burguês discutindo e votando leis inócuas, que apenas servem para perpetuar o estado capitalista e a exploração do homem pelo homem. As eleições apenas servem para legitimar um regime socialista, não para o construir. Nós somos ainda uma sociedade burguesa. Quando a revolução socialista estiver feita, então sim deve haver eleições. Mas atenção, muita atenção, não eleições onde todos os partidos possam concorrer, mas eleições onde concorrem apenas os legítimos filhos do povo. Senão são apenas uma farsa burguesa. Ao parlamento popular devem apenas poder concorrer os revolucionários com provas dadas e os seus legítimos representantes…”
“Mas”, interrompeu-o o José, “se só os comunistas forem autorizados a concorrer às eleições, apenas eles podem ganhá-las e assim tornam-se desnecessárias, pois estão logo ganhas à partida. E isso é o contrário da democracia.”
“Da democracia burguesa, quer o camarada dizer”, disse com os olhos em forma de foice e martelo o camarada esclarecedor.
“Não, da democracia. Da verdadeira democracia. A democracia é a aceitação da diferença. É a possibilidade de alguém governar o seu povo através do sufrágio universal e direto. E isso só é possível se todos os partidos puderem concorrer às eleições. A democracia não admite tutelas nem exclusões. A democracia é a legitimidade absoluta do voto popular. O contrário é a ditadura.”
Bem, com esta provocação, mesmo que inocente, como todos sabemos, ao camarada esclarecedor até o bocado de moela que meteu à boca lhe entrou para a goela do vento e ficou quase tão vermelho como a bandeira do seu partido. Valeu-lhe o Graça que lhe deu um estaladão nas costas que o fez projetar o cibalho inteiro para o chão.
De novo entrou na sala o camarada dono do bar com mais duas garrafas de tinto e o José aproveitou a ocasião para ir à casa de banho. A partir dali não mais se falou de política nacional, mas apenas das qualidades do povo transmontano, do nosso vinho, da nossa carne e do nosso pão.