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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Jun12

O Homem Sem Memória - 121

João Madureira

 

121 – “E de novo tentei. Tentei e tornei a tentar. Agarrei-me ao «Manifesto» como um náufrago a uma tábua. Mas, pelos vistos, a tábua era de ferro. E fui ao fundo. Fui ao fundo e voltei. Ou melhor, ia ao fundo e voltava à tona de vez em quando.


Tentei ler o prefácio à segunda edição russa de 1882. Começava assim: “A primeira edição russa do MPC, na tradução de Bakúnine, foi publicada no princípio dos anos sessenta na tipografia Kolokol (1).”

 

 

Pois, lá estavam de novo as notas. E esta dizia: “(1) Em Genebra, em 1869. A tradução de Bakúnine distorcia certos passos; esses erros foram corrigidos na 2ª edição russa, agora da responsabilidade de Plekhánov.” Mas eu não sabia quem era Plekhánov, nem tinha nada ali à mão que me pudesse deslindar o mistério. Mas, mesmo assim, porfiei na leitura: “O Ocidente nessa altura podia ver nela” (na edição russa do “Manifesto”) “uma curiosidade literária (VIII).”


E lá estava inteirinha mais outra nota. Esta, em numeração romana, a avisar-me que era das que se encontravam no fim do livro. E para lá me dirigi com o entusiasmo de, qual Jean Valjean, um condenado às galés. E li com os olhos já pisqueiros: “Também Lenine, durante os anos passados em Samara (1889-1893), escreveu uma tradução russa do «Manifesto» para o círculo marxista local. Passava de mão em mão num caderno manus…”


Fui-me abaixo. Foi de novo tiro e queda. Que tranquilidade. Sono, ressonadelas, ressonadelas, mais sono, mais ressonadelas… Que satisfação. Sono, ressonadelas, mais ressonadelas, mais sono, mais algumas ressonadelas… E lá acordei sarapantado com o choro do meu irmão mais novo que estava com uma amigdalite formidável. Ele a chamar pela mãe e eu a evocar a santa paciência.


Como estava frio no quarto, liguei o aquecedor elétrico de barras, coloquei-o em cima da cama, virado na direção das mãos e do rosto, e lá voltei a tentar mais uma vez ler o “Manifesto”. Passei então ao prefácio da edição alemã de 1883.


Mal comecei a ler fiquei imediatamente desconsolado. É que o preâmbulo, da autoria de Engels, que eu tinha abandonado ainda há pouco foi o último escrito e assinado por Marx. Eu transcrevo: “O prefácio à presente edição tem de vir, infelizmente, assinado só por mim. Marx, o homem a quem a classe operária da Europa e da América na sua totalidade deve mais do que qualquer outro – Marx repousa no cemitério de Highgate, e sobre o seu túmulo já cresce a primeira relva. Desde a sua morte (1)”, [nova nota, mas esta era pequenina], e dizia: “Em Março de 1883 deixou de ser possível pensar sequer em refundir ou completar o «Manifesto». Pelo que se torna tanto mais necessário afirmar aqui, expressamente, de novo o seguinte: O pensamento basilar que percorre o «Manifesto» (X)”… E lá estava outra nota.


De novo fui até ao fim do livro e pus-me a ler: “(X) É graças à interpretação materialista da história que”… Pus-me a contar as linhas: 25.


Voltei ao prefácio. Página 37, linha 11… a saber: “que a produção económi”… Olhei para as linhas que restavam até ao fim da página e vi que cinco linhas abaixo estava à minha espera a nota (XI) e quatro linhas depois estava quietinha a nota (XII). Por causa das coisas, fui novamente ao sítio das notas, página 120, e reparei, para mal dos meus pecados, que a nota (XI) preenchia duas páginas de denso texto, e começava assim: “Luta de classes: não pode ser ignorado o facto que nem Marx nem Engels nunca se atribuírem o mérito de haverem sido os”…


Fui à procura da nota (XII). Por norma devia estar depois da (XI). Mas não se encontrava lá. Em seu lugar estava a nota (XIII) que não se achava neste prefácio. Intrigado fui até ao prefácio seguinte, ver se lá se encontrava a nota (XIII). Mas dela nem vestígios. No prefácio seguinte as notas começavam na nota (XIV). Afinal os comunistas também se enganam, sejam eles editores, “prefacistas”, escritores, “notistas”, etc. O problema é que poucos, ou nenhuns, leitores se apercebem destes lapsos. Nem os autores. Ora adivinhem lá por que razão? Ai não adivinham? Então voltemos às notas.


Página 37, linha 11… a saber: “que a produção económi… tem sido… sem ao mesmo tempo… da opressão… e das lutas de… pensamento basilar… a Marx (*).”


E outra nota. Esta de asterisco. “(*) (Nota à edição alemã de 1890) «Já… na minha opinião… a provocar na história o que a teoria de Darwin provocou na biologia. Até que ponto eu tinha progredido por mim próprio em direção a ela… já ele tinha formulado e… quase… a expus.”


E fui-me novamente abaixo. Desabei em cima da almofada. Que tranquilidade. Soninho, ressonadelas, ressonadelas, mais soninho, mais ressonadelas… Que satisfação. Soninho, ressonadelas, mais ressonadelas, mais soninho, mais algumas ressonadelas, mais algum soninho… E lá acordei outra vez sarapantado com o som inquietante do aquecedor que tinha caído ao chão. A minha mãe entrou no quarto inquieta e voltou a sair depois de ver que eu já estava de novo desperto. Disse-me: “Dorme.” Eu respondi-lhe que não podia. Que tinha de ler o livro. Ela respondeu-me que o livro ainda me ia levar à perdição.


Nunca me tinha visto nesta consumição de adormecer sucessivamente ao ler um livro. Eu disse-lhe que este não era um livro qualquer. Ela disse: “Esse é um livro do Demónio. Com esses dois barbudos vermelhos na capa só pode ser comunista. Não sei como te deu para te colares a esses defensores da foice e do martelo. Que coisa feia. Além disso tu sempre detestaste trabalhar. Nunca te vi agarrar numa ferramenta.” “Ó mãe”, disse eu quase a dar-lhe razão, “o trabalho não se resume à prática das tarefas braçais. Ler e escrever também é trabalho. E talvez bem mais importante do que cavar uma terra ou fazer um banco. Ela respondeu-me: “Lérias. Já algum dia viste alguém comer um livro? Ou vestir uma folha de um jornal?” “Ó mãe!”, disse eu. “Ó filho”, disse ela! “Vai-te deitar”, aconselhei-a. “Ó mãe”, chamou no outro quarto o meu irmão mais novo. E lá foi ela. Coloquei de novo o aquecedor na posição inicial e voltei ao «Manifesto». A minha mãe avisou: “Cuidado com o aquecedor.” “Sim, mãe.”


“Prefácio à edição inglesa de 1888. O «Manifesto» foi publicado como plataforma da Liga dos Comu… num congresso… prático e teórico completo do partido (XIV). Nota (XIV), página 123: Diferentemente da informação equivocada de Engels no seu esquisso histórico da Liga dos Comu… Tão pouco é tida por literalmente exata, segundo Engels lia-se no artigo I dos Estatutos… da velha sociedade burguesa assente nos antagonismos de classe… a liga propõe-se libertar… estes e muitos outros materiais… foram editados pelo investigador Bert Andréas: Grundungsdokumente des Kommunisten… Mas ver: Der Bund Kommunisten. Documente und Materialen”… Bum, catrapum. E lá foi o aquecedor de novo para o chão. “José”, chamou a minha mãe. “Sim”, respondi. “Dorme”, ordenou ela. “Senão dás em maluco.” “Só quero terminar este prefácio.” “O quê?” “O prefácio, mãe.” “Dorme.”


Olhei para o livro e lá estava mais uma nota. A (XV). E depois a frase: “Tinham também sido publicadas uma edição dinamarquesa e uma polaca.” E no fim da linha outra nota, a (1), relativa a este prefácio que dizia textualmente: “(1) Ver notas (6) e (8) referentes aos prefácios.” Página 106. “Nota (6): Foi iniciada… Nota (7): A primeira edição russa do «Manifesto» apareceu em Genebra em 1869, numa brochura sem página de rosto (sem indicação dos autores, do tradutor, do lugar e data de publicação).” Voltar à página 39. “A derrota da insurreição parisiense de”… Fui-me abaixo. A queda foi ainda maior. Que tranquilidade. Sono, ressonadelas, ressonadelas, mais sono, mais ressonadelas… Que satisfação. Sono, ressonadelas, mais ressonadelas, mais sono, mais algumas ressonadelas…


Desta vez acordei envolto em fumo, a tossir como o meu pai quando tinha um ataque de catarro de fumador. O aquecedor tinha caído sobre os cobertores e incendiado a cama. Valeu a minha mãe que foi buscar um balde de água e começou a apagar o fogo.


Estava visto, as minhas leituras do «Manifesto» ainda iam acabar mal. Por isso, no dia seguinte dei-lhe uma vista geral e tirei mais uns quantos apontamentos de que vos darei conta a seguir. 

27
Jun12

O Poema Infinito (106): o eco

João Madureira

 

 

As habitações cintilam, as raízes traçam misteriosos desenhos na terra e as plantas incendeiam-se por dentro no sentido dos seus filamentos. Sinto a luz pousar nas pedras e na água cristalina enquanto sustenho a respiração. O velho mobiliário continua a evocar a infância antes do tempo ter destino. A solidão escorre pelas paredes. Conheço milímetro a milímetro o silêncio que tomou conta de mim. É o mesmo de sempre, apesar de ser outro. Guardo o sofrimento dentro dos meus olhos molhados. As noites continuam tristes. O perfume das flores torna-se enjoativo. Os cães ladram ao longe. Os sorrisos cada vez mais tardam a regressar ao meu rosto. Vivo agora uma alegria cansada. Parece que tudo é inútil: a escrita, a memória, a recomposição. O vazio toma forma. O vazio torna-se esmagador. Quando falo apenas oiço o eco das palavras, não as palavras, apenas o seu eco. O seu ecoooooo. Oiço também o ruído quase impercetível do voo dos pássaros. A tarde quente agarra-se às paredes da casa e geme. Está na hora de arrumar os objetos e partir. O vento roça as paredes de mansinho. Gostava de ter vontade de ficar. Gostava de querer vaguear pelas ruas, de imaginar cavaleiros fantásticos conquistando a imaginação dos simples. Aproxima-se uma velhice silenciosa e melancólica. Por isso parto na noite incendiada. Ainda de manhã senti a luz estilhaçando-se em feixes e entrando pelas frinchas da janela do quarto. Nada se movia. Nenhum gesto era necessário. Só olhar. Olhar a luz a renascer lutando contra a insónia, contra o silêncio imemorial da noite. E o vazio espalhava-se ordenadamente sobre os objetos que se afastavam cada vez mais da sua utilização antiga. E os sons da manhã atravessavam as paredes e desapareciam na penumbra do aposento. A manhã tremia dentro do meu quarto. E eu via estranhas paisagens e corpos de sombras movendo-se. E as minhas mãos assustadas pousavam no fundo do rio. E o eco das palavras voltava. O eco das palavras. Não as palavras, mas o seu ecoooo. Alguém murmurava ao meu ouvido um fingimento de palavras confusas dentro do seu eco. E também a memória da noite veio ter comigo jorrando silêncio e luz e estrelas e luar que vergava pinheiros. Houve tempo em que a terra era lavrada com toda a religiosidade do mundo. Cheguei a inventar paisagens para estar contigo. Cheguei a caminhar pela imensidão das águas à tua procura. E as imagens de rostos felizes vão-se esfumando como se fossem apagadas da memória por uma borracha elétrica. O tempo faz ainda mais desgaste no meu corpo. A aldeia foi exterminada pelo progresso. Aqui já ninguém regressa. A esta terra já a não definem as palavras, mas apenas o seu eco. O seu ecoooo. Queimei os últimos livros na lareira. E as suas promessas foram apagadas para sempre. Delas só resta o eco. O seu ecoooo. Saí pela porta das traseiras, escavando um túnel por onde a memória se foi escoando. As ruas lá estavam imobilizadas na sua desolação. As pedras sofrem agora a sua derradeira catástrofe de abandono. O esquecimento ficou encostado no escano aquecendo-se ao que resta de calor na lareira. Entrou definitivamente dentro da sua precária eternidade. Sair daqui só é possível com passos circulares. Já falta pouco para o que resta do meu tempo regressar a esta terra com a água das grandes catástrofes. Regressarei então com o fingimento do eco das palavras, porque as palavras estarão definitivamente encerradas dentro da mala onde a minha avó guardava o pão e a carne. 


25
Jun12

Da expetativa ao imobilismo (XXI): O Monólito e/ou o Caminho de Santiago ou o Caminho de Fátima ou/e o Monólito…

João Madureira

 

A Eurocidade tem destas coisas, além de nos permitir (a quem tiver o cartão, claro está) ir para o Rebentão com desconto de alguns cêntimos, de nos possibilitar entrar nos museus cá da terra de graça, e assim poupar um euro de cada vez, além de facultar aos turistas que nos visitam o direito a passeios turísticos gratuitos, possui, desde há um mês a esta parte, um troço de 38,2 km do Caminho de Santiago.

 

Milagre, gritarão os estimados leitores mais crédulos. Mas, lamento desiludi-los, não se trata de um milagre. É, apenas, mais uma iniciativa da Câmara do bairro sul da Eurocidade (agora presidida por António Cabeleira, pois o senhor presidente eleito apenas vai a despacho), e antigamente conhecida como mui nobre e leal cidade de Chaves. 

 

Esse incrível empreendimento de terra, cascalho e poucas ervas verdes e muitas secas, foi inaugurado no passado 4 de maio. Cerimónia presidida pelo ainda então vice-presidente, agora já presidente em exercício, pois o chefe eleito apenas vai a despacho. E, dizem-nos, já não é nada mau, pois qualquer dia, se a pimenta lhe chega ao nariz, AC é muito bem capaz de dar por terminado definitivamente o mandato de JB e proclamar-se presidente, não vá alguém adiantar-se-lhe.

 

Mas, como ia dizendo, para perpetuar a efeméride, António Cabeleira descerrou um monólito e, não contente com isso, resolveu explicar aos presentes que, “além da importância da fé, foi relevante traçar um percurso turístico onde os peregrinos e/ou caminheiros (bem este “e/ou” é que constituiu a pedra de toque do seu douto e sentido discurso) possam desfrutar da natureza e de espaços culturais das localidades (um milagre e uma aparição ou uma alucinação?)

 

Entusiasmado com a chama do Santo, que ficou conhecido na história como o Matamouros, António, não o santo padroeiro de Lisboa, mas o nosso quase pio vice camarário, esclareceu os presentes que “no nosso município, levamos as pessoas a conhecer o nosso território e a passagem por um percurso mais urbano pode ser aproveitada para as pessoas visitarem espaços culturais e descansarem” (novo milagre e/ou outra aparição ou/e alucinação?).

 

Vítima, benigna, é necessário dizer, da trilogia alucinatória e/ou milagre ou/e aparição, quando não tudo junto, o senhor vice AC, encontrou ainda forças para explicar que o tal caminho do Santo Matamouros serve para “reforçar a nossa grande atratividade turística”.

 

Esta “grande atratividade turística” só pode ser vista, e exaltada, por quem enxerga muito para além da realidade. Só está ao alcance dos visionários. Mais um suave milagre do santo galego e/ou alucinação divina ou/e aparição celestial, de que foi vítima, benigna, é necessário voltar a afirmar, da trilogia delirante do vice camarário do bairro sul da Eurocidade, antigamente conhecida como terra dos flavienses. 

 

Além disso, o nosso delirante vereador e/ou vice camarário ou/e presidente em exercício de funções, António Cabeleira, vê neste troço de areão e ervas que percorre o território do bairro sul da Eurocidade, antigamente também conhecido como terras de Aquae Flaviae, além de “um caminho espiritual, um destino turístico”.

 

Para comprovar isso mesmo “ficou definida a dupla marcação do caminho permitindo o fluxo de peregrinos também para Fátima”. Ou seja, é um caminho “dois em um”, tanto permite que uns peregrinos e/ou caminhantes vão para Santiago rezando e/ou assobiando ou/e cantando, enquanto outros se podem dirigir a Fátima sem se enganarem no caminho cantando e/ou assobiando ou/e rezando. É este o terceiro e/ou segredo ou/e milagre (não de Fátima, mas de AC).

 

Para os estimados leitores aquilatarem da estratégia democrática e/ou abrangente do nosso rompedor de caminhos sagrados (ou/e inaugurador de monólitos) e/ou profanos ou/e turísticos, podemos referir que o caminho de ervas e cascalho atravessa 12 freguesias, que daqui a uns meses podem muito bem ser apenas oito e/ou sete ou/e seis, dependendo e/ou da bênção do governo (do cardeal Richelieu que dá pelo nome de Miguel Relvas) português ou/e do milagre da autarquia do bairro sul da Eurocidade, antigamente também conhecida como município flaviense.

 

Então ei-las, as 12 freguesias, que, por intervenção divina de AC e de MR, se verão reduzidas a metade. Sim, nós sabemos que os milagres, por tradição e uso, consistiam na multiplicação, fosse ela do pão, dos peixes ou do vinho. Mas isso era antigamente. Agora os milagres são feitos ao contrário: reduzindo, subtraindo, dividindo. Reduzem-se os salários, cortam-se o 13º e o 14º meses, surripiam-se as pensões de reforma e os abonos de família. E isto sem nenhuma contestação enérgica. Isso sim é milagre. É um grande e suave milagre. Toda a Europa está de boca aberta. Pudera. Somos caso único.

 

Mas as tais doze freguesias que, por milagre do nosso beato António, passarão a ser metade, são: Oura, Vidago, Selhariz, Vilas Boas, Vilela do Tâmega, São Pedro de Agostém, Samaiões, Madalena, Santa Maria Maior, Santa Cruz/Trindade, Outeiro Seco e Vilarelho da Raia.

 

A cada junta de freguesia o senhor vice do bairro sul da Eurocidade, antigamente conhecida como terra dos transmontanos de Chaves, solicitou apoio na “sensibilização da população local para a importância do caminho para a freguesia…” (que por milagre poderá passar a fazer parte de uma outra), “… colaboração na marcação do trajeto e apoio e vigilância e manutenção do mesmo”.

 

Ou seja, agora cada cidadão das terras do bairro sul da Eurocidade ou arredores (antigamente também conhecidos como flavienses), vai ter de estar atento e participar com o seu sacho e as suas mãos na monda das ervas que podem invadir a terra e o cascalho do Caminho de Santigo e/ou Caminho de Fátima ou do Caminho de Fátima ou/e Caminho de Santiago. E podem, e devem, também estar atentos, não vá algum sarraceno desviar o caminho ou então rodar as placas de orientação, levando a que os caminheiros e/ou peregrinos que se querem dirigir a Santiago vão para Fátima e os peregrinos ou/e caminheiros que pretendem dirigir-se a Fátima vão ter a Santiago. Ora isto seria o descalabro. Pois, mesmo sendo os dois caminhos veneráveis, os seus fiéis são distintos. E ninguém anda a pagar promessas a Nossa Senhora de Fátima para elas virem a ser entregues a Santiago e/ou vice-versa, ou/e vice-versa e/ou Fátima. Confesso que estou a ficar um pouco baralhado. Mas vou continuar.

 

Relativamente à rede de albergues no troço que atravessa o bairro sul da Eurocidade, antigamente também conhecido como Chaves cidade, os peregrinos e/ou caminheiros ou os caminheiros ou/e peregrinos, vão poder pernoitar e/ou dormir ou/e descansar nos Bombeiros Voluntários de Vidago e/ou nos Bombeiros Voluntários Flavienses ou/e no Centro Social e Cultural de Vilarelho da Raia. 

 

E por hoje é tudo e/ou quase. Confesso que continuo um pouco baralhado. Mas para a semana prometo já estar um pouco menos confundido e/ou quase ou/e talvez ou/e/ou. Ou será que e…

22
Jun12

O Homem Sem Memória - 120

João Madureira

 

120 – Antes de prosseguirmos com o relato, temos de confessar que mesmo nós, entusiasmados pelas anotações do José relativas às suas leituras do “Manifesto do Partido Comunista”, pegámos na mesma edição e, depois de ler: “Não há exagero em dizer que as dificuldades que se deparam na tradução…”, tombámos igualmente para o lado como pedras. Só despertámos de manhazinha ao ouvir o cantar do galo eletrónico pousado na mesinha de cabeceira. Mas como é do José que esta narrativa fala, avancemos sem mais delongas. No entanto, pedimos desculpa, mas voltamos já. Logo após o cafezinho da manhã.


Levantei-me com uma grande dor de cabeça. Mas mesmo grande. Enorme. O “Manifesto” está a dar cabo de mim. Fui procurar o Graça ao Centro de Trabalho para ver se falava com ele para lhe transmitir as minhas angústias, os meus desesperos, as minhas dúvidas e as minhas limitações. Mas ele não estava, tinha ido comprar mais baldes, cola e pinceis, pois era o responsável pela célula da Agitação e Propaganda.


À saída, uns militantes de base tentaram aliciar-me para ir colar cartazes. Eu, muito educadamente, recusei tão grande distinção. Os meus futuros camaradas olharam para mim um pouco de lado. Eu justifiquei-me dizendo que ainda não estava preparado para tão elevada tarefa revolucionária. Eles voltaram a olhar para mim ainda mais de lado. Eu insisti que para se ser militante comunista é necessário ler, pelo menos, o “Manifesto” e o “Programa e os Estatutos do Partido”. Eles retorquiram-me que não é preciso ser-se militante do Partido para colar cartazes e pintar paredes. Basta ser-se simpatizante. Eu disse-lhes que só colaria cartazes depois de preencher a ficha e pagar as quotas. Antes, nada feito. Insisti: Ainda não estou preparado para tamanha tarefa revolucionária. Eles foram-se embora, não sem antes exprimirem o que lhes ia na sua alma de comunistas sinceros: Provocador.


Durante a tarde pus-me a ler “O Idiota”. Fiquei angustiado, delirante, nervoso, tenso. Li mais de cem páginas sem me deter. Só parei quando a minha mãe me chamou para jantar. Jantei muito e bem. E bebi o que a comida me pediu. À noite fui de novo procurar o Graça à sede do Partido, que foi onde a sua avó me disse que ele se encontrava agora a toda a hora e momento. Mas ele, importante como já era, não me pôde atender porque estava numa reunião da comissão concelhia. Os mesmos camaradas dos cartazes renovaram-me o convite, desta vez para ir com eles fazer umas pichagens ao centro da cidade. Eu, porque sou um coerente leitor de Marx e Engels, e disso lhes dei conta, declinei o convite pelas mesmas razões apontadas anteriormente. Eles responderam-me: Pequeno-burguês. Eu desculpei-me: Não, eu não sou nada disso. Eles insistiram: Esquerdista. Eu desculpei-me de novo: Não, eu não sou nada disso. Ao que acrescentei: E isso o que é? Eles tornaram a insistir: Provocador. Eu respondi: Não, eu não sou nada disso. Sou apenas filho de um GNR que abandonou o seminário e que agora quer encontrar o caminho da revolução. Sim, confesso que quis ser democrata-cristão. Mas isso já me passou. Até quis ser socialista, mas desisti. Também foi vento passageiro. Agora apenas quero ser aquilo que os meus amigos são. E como quase todos eles são comunistas também quero ser comunista marxista-leninista e punhalista. Ao que um deles, respondeu: Não blasfemes. Eu deixei passar em branco a provocação e continuei: Não me resta outro caminho senão ser comunista. Por isso é que quero falar com o Graça por causa de uma coisa a que não consigo dar resposta sozinho. Então eles tornaram a insistir: Para fazer pichagens não é necessário ser militante. Apenas é necessário ser simpatizante. Eu, disse um deles, sou apenas simpatizante e colo cartazes e pinto paredes tão bem como qualquer militante. Respondi-lhe: Eu não me refiro à capacidade, mas antes ao ardor, à fé em praticar um ato não só por estima, mas antes por profunda convicção. Eu sei que sou capaz de colar cartazes numa parede e de escrever letras num muro. Mas esses atos se não forem acompanhados de uma adesão à causa não prestam para nada. Todos os nossos atos têm de refletir fé. E essa fé só a militância é que nos a pode dar. Eu só posso ir colar cartazes, pintar paredes ou vender “A Verdade” depois de me tornar militante. Não sou capaz de brincar com os princípios. É feitio meu. E o marxismo-leninismo é uma ideologia inundada de princípios. E de fins, remedou-me outro dos meus futuros camaradas. E ainda outro: Não foi Marx que disse que não interessam os meios com que se atinge um fim, se esse fim for o comunismo? Eu tornei a tornar: Não me consta. Mas tenho de reconhecer que ainda li muito pouco Marx. E Engels também. E Lenine. Até era por causa disso que queria falar com o Graça. E um deles, dos meus futuros camaradas: Camarada Graça. Camarada dirigente. Eu anui: Sim. E outro deles: Sim, o quê. E eu: Sim, o camarada Graça. E o mesmo meu futuro camarada: Camarada dirigente. Eu tornei a anuir, como convinha: Sim. E o mesmo outro meu futuro camarada: Sim, o quê. Eu, já um pouco farto da conversa de tontos, disse: Sim, o Camarada dirigente. E um dos que parecia distraído: Qual deles? E eu: O Graça. O camarada Graça. O camarada dirigente. E o tal meu futuro camarada distraído: Pois o Graça. Levantei-me de supetão e preparava-me para ir embora quando o camarada simpatizante me agarrou no braço e novamente me convidou para ir com eles colar cartazes e pichar paredes. Eu tornei a insistir com a minha falta de preparação ideológica. Ele fez-me ver que não é preciso ser um competente leitor de Marx e Lenine para colar cartazes com a devida eficácia comunista. Eu concordei. Mas contrapus: Como é possível andarmos a lutar por uma causa se não a percebemos completamente? Todos juntos: Reacionário. Ia eu a dizer que não era nada disso quando, pensando melhor, lhes respondi à letra: Basistas. E dali me fui para casa ao encontro do meu “Manifesto”. Entendamo-nos, não do “meu” manifesto pois eu não sou daqueles que escrevem manifestos. Eu gosto pouco dessas coisas. Eu gosto mais de escrever poesia. Mas fui ao encontro de mais uma tentativa de leitura do “Manifesto do Partido Comunista”. 

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