121 – “E de novo tentei. Tentei e tornei a tentar. Agarrei-me ao «Manifesto» como um náufrago a uma tábua. Mas, pelos vistos, a tábua era de ferro. E fui ao fundo. Fui ao fundo e voltei. Ou melhor, ia ao fundo e voltava à tona de vez em quando.
Tentei ler o prefácio à segunda edição russa de 1882. Começava assim: “A primeira edição russa do MPC, na tradução de Bakúnine, foi publicada no princípio dos anos sessenta na tipografia Kolokol (1).”
Pois, lá estavam de novo as notas. E esta dizia: “(1) Em Genebra, em 1869. A tradução de Bakúnine distorcia certos passos; esses erros foram corrigidos na 2ª edição russa, agora da responsabilidade de Plekhánov.” Mas eu não sabia quem era Plekhánov, nem tinha nada ali à mão que me pudesse deslindar o mistério. Mas, mesmo assim, porfiei na leitura: “O Ocidente nessa altura podia ver nela” (na edição russa do “Manifesto”) “uma curiosidade literária (VIII).”
E lá estava inteirinha mais outra nota. Esta, em numeração romana, a avisar-me que era das que se encontravam no fim do livro. E para lá me dirigi com o entusiasmo de, qual Jean Valjean, um condenado às galés. E li com os olhos já pisqueiros: “Também Lenine, durante os anos passados em Samara (1889-1893), escreveu uma tradução russa do «Manifesto» para o círculo marxista local. Passava de mão em mão num caderno manus…”
Fui-me abaixo. Foi de novo tiro e queda. Que tranquilidade. Sono, ressonadelas, ressonadelas, mais sono, mais ressonadelas… Que satisfação. Sono, ressonadelas, mais ressonadelas, mais sono, mais algumas ressonadelas… E lá acordei sarapantado com o choro do meu irmão mais novo que estava com uma amigdalite formidável. Ele a chamar pela mãe e eu a evocar a santa paciência.
Como estava frio no quarto, liguei o aquecedor elétrico de barras, coloquei-o em cima da cama, virado na direção das mãos e do rosto, e lá voltei a tentar mais uma vez ler o “Manifesto”. Passei então ao prefácio da edição alemã de 1883.
Mal comecei a ler fiquei imediatamente desconsolado. É que o preâmbulo, da autoria de Engels, que eu tinha abandonado ainda há pouco foi o último escrito e assinado por Marx. Eu transcrevo: “O prefácio à presente edição tem de vir, infelizmente, assinado só por mim. Marx, o homem a quem a classe operária da Europa e da América na sua totalidade deve mais do que qualquer outro – Marx repousa no cemitério de Highgate, e sobre o seu túmulo já cresce a primeira relva. Desde a sua morte (1)”, [nova nota, mas esta era pequenina], e dizia: “Em Março de 1883 deixou de ser possível pensar sequer em refundir ou completar o «Manifesto». Pelo que se torna tanto mais necessário afirmar aqui, expressamente, de novo o seguinte: O pensamento basilar que percorre o «Manifesto» (X)”… E lá estava outra nota.
De novo fui até ao fim do livro e pus-me a ler: “(X) É graças à interpretação materialista da história que”… Pus-me a contar as linhas: 25.
Voltei ao prefácio. Página 37, linha 11… a saber: “que a produção económi”… Olhei para as linhas que restavam até ao fim da página e vi que cinco linhas abaixo estava à minha espera a nota (XI) e quatro linhas depois estava quietinha a nota (XII). Por causa das coisas, fui novamente ao sítio das notas, página 120, e reparei, para mal dos meus pecados, que a nota (XI) preenchia duas páginas de denso texto, e começava assim: “Luta de classes: não pode ser ignorado o facto que nem Marx nem Engels nunca se atribuírem o mérito de haverem sido os”…
Fui à procura da nota (XII). Por norma devia estar depois da (XI). Mas não se encontrava lá. Em seu lugar estava a nota (XIII) que não se achava neste prefácio. Intrigado fui até ao prefácio seguinte, ver se lá se encontrava a nota (XIII). Mas dela nem vestígios. No prefácio seguinte as notas começavam na nota (XIV). Afinal os comunistas também se enganam, sejam eles editores, “prefacistas”, escritores, “notistas”, etc. O problema é que poucos, ou nenhuns, leitores se apercebem destes lapsos. Nem os autores. Ora adivinhem lá por que razão? Ai não adivinham? Então voltemos às notas.
Página 37, linha 11… a saber: “que a produção económi… tem sido… sem ao mesmo tempo… da opressão… e das lutas de… pensamento basilar… a Marx (*).”
E outra nota. Esta de asterisco. “(*) (Nota à edição alemã de 1890) «Já… na minha opinião… a provocar na história o que a teoria de Darwin provocou na biologia. Até que ponto eu tinha progredido por mim próprio em direção a ela… já ele tinha formulado e… quase… a expus.”
E fui-me novamente abaixo. Desabei em cima da almofada. Que tranquilidade. Soninho, ressonadelas, ressonadelas, mais soninho, mais ressonadelas… Que satisfação. Soninho, ressonadelas, mais ressonadelas, mais soninho, mais algumas ressonadelas, mais algum soninho… E lá acordei outra vez sarapantado com o som inquietante do aquecedor que tinha caído ao chão. A minha mãe entrou no quarto inquieta e voltou a sair depois de ver que eu já estava de novo desperto. Disse-me: “Dorme.” Eu respondi-lhe que não podia. Que tinha de ler o livro. Ela respondeu-me que o livro ainda me ia levar à perdição.
Nunca me tinha visto nesta consumição de adormecer sucessivamente ao ler um livro. Eu disse-lhe que este não era um livro qualquer. Ela disse: “Esse é um livro do Demónio. Com esses dois barbudos vermelhos na capa só pode ser comunista. Não sei como te deu para te colares a esses defensores da foice e do martelo. Que coisa feia. Além disso tu sempre detestaste trabalhar. Nunca te vi agarrar numa ferramenta.” “Ó mãe”, disse eu quase a dar-lhe razão, “o trabalho não se resume à prática das tarefas braçais. Ler e escrever também é trabalho. E talvez bem mais importante do que cavar uma terra ou fazer um banco. Ela respondeu-me: “Lérias. Já algum dia viste alguém comer um livro? Ou vestir uma folha de um jornal?” “Ó mãe!”, disse eu. “Ó filho”, disse ela! “Vai-te deitar”, aconselhei-a. “Ó mãe”, chamou no outro quarto o meu irmão mais novo. E lá foi ela. Coloquei de novo o aquecedor na posição inicial e voltei ao «Manifesto». A minha mãe avisou: “Cuidado com o aquecedor.” “Sim, mãe.”
“Prefácio à edição inglesa de 1888. O «Manifesto» foi publicado como plataforma da Liga dos Comu… num congresso… prático e teórico completo do partido (XIV). Nota (XIV), página 123: Diferentemente da informação equivocada de Engels no seu esquisso histórico da Liga dos Comu… Tão pouco é tida por literalmente exata, segundo Engels lia-se no artigo I dos Estatutos… da velha sociedade burguesa assente nos antagonismos de classe… a liga propõe-se libertar… estes e muitos outros materiais… foram editados pelo investigador Bert Andréas: Grundungsdokumente des Kommunisten… Mas ver: Der Bund Kommunisten. Documente und Materialen”… Bum, catrapum. E lá foi o aquecedor de novo para o chão. “José”, chamou a minha mãe. “Sim”, respondi. “Dorme”, ordenou ela. “Senão dás em maluco.” “Só quero terminar este prefácio.” “O quê?” “O prefácio, mãe.” “Dorme.”
Olhei para o livro e lá estava mais uma nota. A (XV). E depois a frase: “Tinham também sido publicadas uma edição dinamarquesa e uma polaca.” E no fim da linha outra nota, a (1), relativa a este prefácio que dizia textualmente: “(1) Ver notas (6) e (8) referentes aos prefácios.” Página 106. “Nota (6): Foi iniciada… Nota (7): A primeira edição russa do «Manifesto» apareceu em Genebra em 1869, numa brochura sem página de rosto (sem indicação dos autores, do tradutor, do lugar e data de publicação).” Voltar à página 39. “A derrota da insurreição parisiense de”… Fui-me abaixo. A queda foi ainda maior. Que tranquilidade. Sono, ressonadelas, ressonadelas, mais sono, mais ressonadelas… Que satisfação. Sono, ressonadelas, mais ressonadelas, mais sono, mais algumas ressonadelas…
Desta vez acordei envolto em fumo, a tossir como o meu pai quando tinha um ataque de catarro de fumador. O aquecedor tinha caído sobre os cobertores e incendiado a cama. Valeu a minha mãe que foi buscar um balde de água e começou a apagar o fogo.
Estava visto, as minhas leituras do «Manifesto» ainda iam acabar mal. Por isso, no dia seguinte dei-lhe uma vista geral e tirei mais uns quantos apontamentos de que vos darei conta a seguir.