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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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20
Jul12

O Homem Sem Memória - 124

João Madureira

 

124 – A partir deste dia, o José deixou temporariamente de escrever. Mas não deixou de viver. Valha-nos ao menos isso, senão a nossa história tinha de acabar antes mesmo do seu fim previsto. Por isso vamos continuar a contar as suas venturas, aventuras e desventuras.


À noite fez questão de ir ao Centro de Trabalho preencher a sua ficha de adesão ao Partido e de comunicar aos camaradas da Brigada de Agitação e Propaganda que já se encontrava em condições ideológicas de começar a colar cartazes, fazer pichagens, projetar, desenhar e pintar murais. Tornou-se no melhor cola cartazes da concelhia. Ou quase. Porque o Partido sabe que há sempre um que é o melhor de todos, mas nem sempre o distingue. Prefere distinguir um outro. E esse “outro” é que é o cabo dos trabalhos. A competição aguça o engenho e mantém a amizade sempre no nível da desconfiança. E os comunistas são peritos em isolar cada militante na sua competição máxima e na sua relação mínima. O Partido está acima de tudo.


O José deu a boa notícia aos seus novos camaradas com um sorriso nos lábios. Agora sim, estava preparado para a sua militância revolucionária. E muito bem preparado. Podia discutir o marxismo-leninismo a um nível mínimo, mas aceitável para o seu nível de militância, podia praticar a crítica e a autocrítica nas reuniões da sua organização, podia ler e discutir o editorial d’ A Verdade, podia propor as melhores estratégias para angariar novos militantes, para lhes cobrar as cotas, para vender a voz da classe operária, para se inscrever e angariar sócios tendo em vista controlar as diversas organizações recreativas e culturais, as distintas associações desportivas de juventude, os diversos sindicatos, associações de estudantes e grupos de influência juvenil.


Mas, sobretudo, podia inundar a cidade e os arredores com as palavras de ordem comunistas. A palavra do Partido tinha de chegar às massas. As palavras de ordem tinham de pôr as cabeças dos proletários, dos camponeses, das mulheres e da juventude, a funcionar. Essa era agora a grande batalha revolucionária: convencer o povo da justeza das propostas comunistas, despertar as massas e trazê-las para a luta. E para isso era necessária a urgentíssima tarefa revolucionária de colar cartazes e pintar paredes.


Como a primeira campanha eleitoral pós 25 de Abril se avizinhava, mesmo contra a vontade expressa do Partido que considerava as eleições legislativas inoportunas, ou mesmo reacionárias, a Brigada de Agitprop inundou Névoa de cartazes do Partido. Bem, do Partido não, mas antes da coligação que liderava, identificada com argolinhas como as dos jogos olímpicos, pois o povo ainda não estava preparado para votar no partido da foice e do martelo sem se arrepiar. Foram anos e anos de anticomunismo e isso paga-se caro. Além disso, partidos ditos comunistas criados pelos esquerdistas provocadores, que se identificavam e ostentavam a foice e o martelo, havia uma mão cheia deles. Daí o Partido não poder ser mais um no meio de tantos. Tinha de ser “o outro”, o verdadeiro, o que concorria numa coligação aberta e fraterna com mais dois partidos progressistas, porque o Partido sempre apostou na unidade com as forças genuinamente democráticas, patrióticas e de esquerda. O Partido nunca esteve só, o Partido sempre procurou a unidade na ação. Nunca com a reação. Daí a necessidade de uma coligação. Rima e era verdade.


Aprendeu técnicas de agitprop. Por exemplo, que nunca se deve colar um cartaz isolado. Nesses ninguém repara. As pessoas são atraídas pelas manchas, que são muitos cartazes colados uns ao lado dos outros. Mas não colados ao deus dará, mas antes fixados juntos com muito rigor e disciplina. Todos milimetricamente alinhados. Outra técnica é colá-los em sítios onde as pessoas não lhe cheguem com facilidade, evitando assim que os reacionários e provocadores os arranquem ou os rasguem. Daí a necessidade de uma escada ou um escadote. Cartazes à mão de semear são um desafio a que os arranquem. E cartazes rasgados são inestéticos além de significar que o povo não gosta da mensagem, do mensageiro ou de ambos. E lá vai a propaganda e a agitação para o caraças.


O Graça bem lhe comunicou o que o camarada funcionário lhe transmitiu – e que lhe tinham transmitido a ele através do controleiro distrital e que ele tinha ouvido da boca do camarada da comissão executiva da Direção Regional do Norte e este do Comité Central –, que os cartazes custam dinheiro e que esse dinheiro é do povo, bem assim como a cola, os pincéis e tudo o resto.


Nessa noite, na sua primeira noite como militante comunista, o José encheu-se de subir e descer a escada e o escadote, de estender cartazes, de espalhar cola, de afixar os cartazes nas paredes em lindas e alinhadas manchas coloridas que espantaram os poucos militantes e simpatizantes comunistas que havia na cidade e atrapalharam os muitos militantes e simpatizantes dos outros partidos. Mas quando uns ficam orgulhosos com o trabalho por si realizado há sempre outros que se roem de inveja.


Na noite seguinte as brigadas de cola cartazes dos outros partidos, num impulso revanchista e provocatório, arrancaram os cartazes da coligação das argolinhas e colaram os seus no mesmo lugar. Uns tortos, outros desalinhados, outros mesmo de pernas para o ar, numa autêntica batalha de mau gosto, vingança e, sobretudo, numa atitude antidemocrática própria das forças da reação e obscurantistas.


Na manhã seguinte, o José chorou de raiva e o Graça tratou logo de reunir a célula da agitprop para discutir o assunto. O camarada funcionário fez questão em estar presente, pois sabia da fúria que grassava na militância de base. Um a um, todos tomaram a palavra para dizer que se tinha de fazer alguma coisa. A reação não se podia ficar a rir. Os camaradas mais recentes, liderados pelo José, propuseram que se utilizasse a lei de Talião: olho por olho e dente por dente. Mas o camarada funcionário disse que não se devia entrar no jogo dos reacionários. Isso era o que eles queriam. Tinham de evitar responder na mesma moeda. Se agora fossem arrancar os cartazes deles, estavam a proceder da mesma forma, ou seja, estavam a ser reacionários. E os comunistas podem ser tudo, menos reacionários.


O Mário, de alcunha o “Camões”, por ser cego de um olho, apesar de ser dos camaradas mais jovens, era também um dos mais velhos da organização, levantou o dedo para falar, o que nele era muito raro, pois concordava sempre ou com o camarada funcionário ou com o Graça, e disse: “Eu apoio esse tal camarada Talião. Acho que devemos arrancar os olhos à reação. Ou pelo menos um a cada reacionário.”


Foi o cabo dos trabalhos para lhe explicar que o Talião não era comunista e que não devíamos interpretar a frase à letra, pois o que com ela o camarada funcionário quis dizer é que não lhes devíamos arrancar os cartazes pelo facto deles, os terríveis reacionários, nos terem arrancado os nossos.” “Só isso?”, perguntou espantado o Mário “Camões”. “Que merda de comunistas somos nós se depois de arrancarem os nossos cartazes não respondermos à provocação com a devida violência revolucionária. Já Lenine disse que só a violência é revolucionária…”


Aqui foi interrompido pelo camarada funcionário que lhe perguntou quem lhe tinha dito tal coisa. Ao que o Mário “Camões” respondeu que tinha sido ele, não ele, o próprio, mas sim ele, ele, o camarada funcionário.


Então o camarada funcionário, um pouco exaltado, respondeu-lhe com a verdade, que também é revolucionária, como muito bem disse Lenine, que nunca tinha dito aquilo que ele disse que ele disse. Mas que sim tinha dito que a ditadura revolucionária do proletariado consiste em destruir por meio da violência a máquina burguesa do Estado. Ao que o Mário “Camões” respondeu que era isso que tinha acabado de dizer. Aí o Graça, que era muito amigo do “Camões”, Mário, e também seu controleiro, interrompeu a discussão chamando a devida atenção dos presentes para a necessidade de se prosseguir com os pontos em discussão que estavam em cima da mesa e que eram de cariz eminentemente prático e não apenas ideológico. Ao que o camarada controleiro ripostou dizendo que no Partido Comunista todas, mas mesmo todas as questões são ideológicas ou de caráter iminentemente ideológico.


“Até cagar?”, perguntou o Carlos Chouriço, que gostava tanto de comer como de dizer piadolas de mau gosto. Todos se riram menos o camarada funcionário, pois com coisas sérias não se brinca. Por isso respondeu novamente que no Partido, com o Partido e sobre o Partido, todas as questões são iminentemente ideológicas. Ao que o Graça, por seu lado, replicou que o que queria dizer com “questão ideológica” é que o ponto da ordem de trabalhos não era um assunto de marxismo-leninismo, mas sim de ordem mais prática, pois apenas tinha a ver com o tema de lhes terem arrancado os cartazes e de por isso terem de estudar uma resposta adequada.


O funcionário voltou à baila para afirmar que tudo o que um comunista faz é ideológico. “Até mijar?”, perguntou de novo o Carlos Chouriço. Todos se voltaram a rir, menos o camarada funcionário, que ficou de repente com cara de Alberto Punhal quando alguém lhe chamava estalinista.


Por proposta do Graça, a reunião foi interrompida para almoço. 

18
Jul12

O Poema Infinito (109): As palavras

João Madureira

 

Vejo-te vítima de um excesso de transparência, dentro da expectativa inútil de um impulso neutro. De súbito, um tremor lúcido de palavras surge dentro de uma história misteriosa. São palavras imaturas, evidências misteriosas, silêncios espontâneos. Estou esgotado dentro da minha aridez semântica. De repente, os teus olhos acendem a paisagem. Palavras vagarosas fabricam árvores felizes dentro do seu verde necessário. Uma luz passageira demonstra a sua breve alegria. Onde há palavras sempre corre uma brisa de alegria e uma outra de tristeza. Agora apenas procuro um pouco de espaço para respirar. E o som ténue das frases repercute-se na passagem breve dos sentimentos. As palavras perfilam-se para escreverem as cores da manhã, para outorgarem a doçura ao poema, para perfumarem as roseiras bravas, para fazerem coincidir o pecado e a salvação. As palavras ardem dentro da sua nudez enigmática enquanto os caminhos se abrem para serem percorridos. As palavras propagam-se nuas pelo calor adentro e contemplam o teu corpo adormecido e estendem-se voluptuosamente dentro do silêncio aéreo. Em volta o mundo converte-se num campo imenso de branquidão. Tudo fica imóvel. Fixo. As superfícies remanescem lisas, sem reflexos nem sombras. Tudo é ao mesmo tempo presença e ausência. E o vento traz de volta os velhos vocábulos que deixaram de se usar. O texto circula e agita a árvore das palavras e as palavras, agora feridas de sentido, dão golpes de movimentos claros. E o meu corpo enrola-se no teu corpo e cintila e desenha novas palavras e novos sentidos para elas, como se nascessem de novo. As frases respiram. As frases constroem novas frases e perdem-se para de novo se voltarem a encontrar, como num jogo infantil. E desenham contornos nítidos ao desejo, ao contentamento, à volúpia. E as palavras, serenamente alinhadas na sua moradia, continuam o seu trabalho de abelhas límpidas. E escrevem a leveza e a transparência da água e a sombra no verão e a fotossíntese das folhas e a necessidade dos jardins suspensos e a ordem do caos e a partícula de deus e o pó das estrelas que te desenharam o corpo e te verdejaram os olhos. E a loucura da torre de babel. E essas mesmas palavras definem ainda a densidade dos sentimentos e a luz exata da origem do universo e a essência de deus e da sua partícula original. E deus fica dentro das palavras como se não tivesse substância. E chora. E chora palavras frias. E delas germinam árvores que sorriem do nada e se deixam abanar pela nudez do vento e pelo seu ritmo. E as palavras são agora o vinho que nos embriaga e que nos permite o excesso. Depois as palavras ficam feridas e dispersas. E choram. E choram porque tudo explicam mas não se conseguem explicar. Por isso agora são folhas que repousam à espera de se transformarem em cinza que o vento da tarde espalhará pelo mundo. 

16
Jul12

Rufadores e Tocadores (2): Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa…

João Madureira

 

Para mim já é suficiente saber aquilo que sei acerca de mim próprio e dos outros, pois saber coisas de mais acaba sempre por prejudicar a noção que delas temos.

 

É um pouco como a amizade, que, ao contrário da ideia que dela fazem os interesseiros, não se alimenta de favores e contra favores, mas das alegrias que os amigos dão uns aos outros apenas pelo prazer da companhia, ou mesmo pela simples certeza de um e outro existirem.

 

Amiúde assaltam-nos ideias que tentamos espanar como por vezes o fazemos às moscas teimosas que, mesmo enxotando-as repetidamente, voltam a pousar no mesmo lugar.

 

E esta ideia que por momentos me assalta decorre de observar, e pensar, que nestes tempos de pós-modernidade que dizem vivermos, com acesso à educação e ao conhecimento, cada vez impera mais a estupidez e a fraqueza moral transformou-se numa teoria universal.

 

Desde que o mundo é mundo, uma das ocupações a que os seres humanos se dedicam é a deitar o olho ao que é dos outros e, quando chega a ocasião, deitar também a mão.

 

O mais engraçado é que o larápio acha sempre que toda a gente apenas pensa em roubar e, do mesmo modo que ele pretende rapinar aquilo que é nosso, nós pretendemos surripiar o que é dele.

 

Está escrito nas estrelas, e inscrito nas mentes iluminadas dos que nos governam, ou governaram, que os cidadãos, que têm a ousadia de contestarem o seu mau governo, devem explicar aquilo que eles não conseguem: convencer os céticos de que toda a crítica é desnecessária, demonstrar que o mundo não se pode modificar fora da sua lógica e da sua forma de pensar e de agir.

 

Muitas das vezes exigem mesmo às pessoas que ousam enfrentá-los a tarefa imensa de provar a razão da sua existência: quem somos nós, de onde viemos e para onde vamos.

 

Valha-nos Deus, eles é que vestiram a pele de piedosos, os atavios de líderes espirituais, de gestores da coisa pública, de mentores do desenvolvimento, de administradores políticos, sociais, de animadores de comícios, de fazedores de cidades imaginárias.

 

Eles é que têm o direito, e o dever, de explicarem o que fazem e porque o fazem. Eles e mais ninguém.

 

Mas como não explicam, e muito menos demonstram o que quer que seja, as nossas palavras valem tanto como as deles.

 

Acusam-nos de descrentes por não acreditarmos nas suas falácias. Deixem-nos ser. As nossas palavras, volto a repetir, valem tanto como as deles. E de entre elas, cada cidadão deve eleger as que, por razão confessa ou não, mais lhe convêm, pois todos sabemos que os homens e as mulheres livres escolhem aquilo em que acreditam.

 

Eu entendo-os. Entendo tudo aquilo que dizem e mesmo aquilo que sussurram.

 

Estes senhores desejam que expliquemos o inexplicável: as suas atitudes, o seu mau governo, a sua inábil gestão, a sua fuga sistemática à verdade, o seu despesismo, a sua inoperância.

 

Eu não pago para escrever, a mim ninguém me paga para escrever, a mim ninguém me diz o que devo escrever. Eu não alugo espaço nos jornais ou nas rádios, não escrevo recados anónimos para destabilizar. Eu não devo, nem pago, favores políticos ou jornalísticos a ninguém. A mim ninguém me deve favores políticos.

 

Eu escrevo o que escrevo pensando sempre em construir uma ideia. Eu não lanço as pedras e escondo a mão. Não. Eu dou a cara. Muitos não gostam do que veem ou leem, paciência. Cristo que é Cristo também não agradou a todos. E os judeus, que eram o seu povo, até o crucificaram.

 

Eu não tenho a obrigação de dizer que a realidade é boa ou daninha conforme a orientação política do momento. A realidade é o que eu vejo, não o que me querem fazer ver. Eu não tenho o que é certo como pré definido. O certo é aquilo que está de acordo com a realidade. E quem vê a realidade apenas com um olho é cego.

 

Afinal o que é que nós ganhámos com esta gente? Esta é que é a pergunta que os cidadãos fazem a toda a hora. E a verdade é que não encontram resposta satisfatória ou mesmo nenhuma resposta para ela. Este é que é o drama. Este é que é o pântano em que nos enfiaram.  Difícil, extremamente difícil, vai ser sair dele.

 

Eu sei que de graça ninguém faz nada, até mesmo os santos querem como paga ir para o céu. Todos temos um preço. E o meu ainda é o reconhecimento que muitos dos leitores expressam em relação àquilo que eu escrevo em busca da verdade. Veem, eu até me contento com pouco.

 

Estou mais que habituado a que me aliciem com o conselho de que chegou o tempo de cuidar de mim. Não, ainda não chegou. O imperativo moral é seguir em frente. É de novo necessário desmascarar os filisteus e ajudar a expulsar os vendilhões do templo. Pois Deus só nos pode perdoar.

 

Não, eu não desisto. Para desmascarar o embuste basta lembrar a todos aqueles que nos leem que apesar de os senhores que nos governaram, ou governam, disfarçarem, e até negarem, a sua má gestão, é só prestar um pouco de atenção àquilo que fazem, e não àquilo que dizem, para nos apercebermos da embrulhada em que nos meteram pela calada dos gabinetes. O logro nesta gente não é a exceção, é, infelizmente, a regra. Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa.

 

Basta prestar um pouco de atenção à realidade porque ela ajuda-nos na resposta. Eles metem no meio da realidade a ilusão, a sua ilusão. Mas a realidade é justamente o contrário do que eles dizem, ou do que pretendem dizer.

 

Eles estão habituados ao espetáculo mediático. Esta gente persegue a ideia de que é melhor ser herói do que previdente. Gostam mais de pegar fogo e depois vir apagar o incêndio, salvando gente. Eles que não conseguiram prevenir o incêndio, querem depois apagá-lo e serem ressarcidos por isso. Eles sabem que as pessoas se lembram sempre do herói e não do homem previdente. O herói recolhe todas as recompensas. O previdente pode ter sorte em receber um abraço.

 

Os homens e as mulheres que conhecem a arte da vida devem sempre virar ao contrário o que lhes dizem para se inteirarem se o certo não é esse contrário, se essa não é a verdadeira realidade.

 

E de sábios de pacotilha, que pensam que são importantes porque vestem de acordo com a moda para aparecerem em público, mal conseguindo disfarçar o seu incómodo sobre as verdades que se escrevem nos jornais, começamos todos a estar fartos.

 

Mas deixem que vos diga que essa gente que se diz sábia não é tão sábia assim, pois não é tão sábio aquele que sábio demais se mostra. O esperto não é sábio. É apenas sabido. Só que um sabido está sujeito a encontrar sempre algum mais sabido ainda. Por isso é que vive sempre em guarda e nunca tem paz. 

13
Jul12

O Homem Sem Memória - 123

João Madureira

 

123 – Diário de bordo: Encontrei o Graça no Centro de Trabalho a catalogar os baldes, os pincéis, as brochas, a contar os pacotes de cola de papel, as latas de tinta, os paus de giz, as réguas de madeira, o fio do norte, as tachas e os pregos. Então fui-me caras a ele e perguntei-lhe: “Achas que para se ser comunista é preciso ler o Programa e os Estatutos do Partido ou o Manifesto Comunista?” Ao que ele respondeu: “Não. Para ser sincero, eu não conheço ninguém que em boa verdade o tenha feito.” Então confessei-lhe: “É que eu tenho tentado. Ó como tenho tentado! Mas adormeço sempre. De uma vez, se não fosse a minha mãe, tinha mesmo morrido queimado na cama.”


Posto perante o meu drama e a minha desventura, o Graça contemporizou: “Achas que os católicos leem a Bíblia ou os muçulmanos o Alcorão? Não, não leem. Ouvem os padres nas missas papaguearem as citações dos respetivos livros sagrados, obedecendo aos ensinamentos e às ordens que lhes dão os superiores, que são sempre as mesmas e proferidas nas mesmas alturas. Além disso, a grande maioria do povo é analfabeta, ou iliterata. Se fosse necessário ler o Livro para se ser comunista, ou cristão ou muçulmano, a imensa maioria só o poderia ser quando já fosse velho ou mesmo nunca. Ora isso não pode acontecer. É na juventude que se ganha o entusiasmo para se ser alguma coisa. Depois de velho já ninguém se preocupa com a redenção. Já está tudo redimido, as esperanças fodidas e a morte ao virar da esquina do tempo. Nessa altura apenas se espera que a realidade não seja tão autêntica como é. Um católico sabe ajoelhar-se, utilizar o terço, rezar, benzer-se, recitar passagens do Livro, confessar-se, repetir orações e acreditar na sua nesga de paraíso à sua espera no Céu. Um muçulmano sabe utilizar o terço, ajoelhar-se, repetir orações, rezar, recitar passagens do Livro, confessar-se, benzer-se e acreditar num lugarzinho reservado lá no paraíso celestial. E os comunistas sabem sentar-se a uma mesa e discutir, recitar passagens do Livro, confessar-se, só que o fazem em grupo e chamam-lhe crítica e autocrítica, repetir frases que são o mesmo que as orações dos crentes, e prometerem, ou acreditarem, no paraíso na Terra, nos seus quinze minutos de fama e quinze segundos de proveito. Podemos dizer que o Comunismo é o Catolicismo, ou o Islamismo, na sua forma mais prática. Pretende redimir, fazer-nos acreditar numa vida melhor, afastar da nossa mente a dimensão animal, a barbárie e dar algum sentido à vida.”


Depois de lhe ouvir tais palavras, olhei para o Graça e cheguei à conclusão que o rapaz não estava bem. Não podia estar. Algum mal lhe deviam ter feito. Mas ele continuou a arrumar os utensílios como se não acabasse de contradizer tudo em que acreditava, ou dizia acreditar. Perguntei-lhe: “Tu estás bem?” Ele respondeu-me que sim. Apenas não dormia vai para três dias pois tinha de encher Névoa de cartazes, pichagens e murais revolucionários. Perguntei-lhe como aguentava. Ele disse-me que o camarada médico lhe servia uns comprimidos milagrosos que tiravam o sono, o apetite e até o tesão. “Milagrosos?”, perguntei eu. E ele: “Milagrosos, é o que te digo. Afastam-nos do pecado da gula, da luxúria e fazem-nos ver estrelinhas.” “Ó homem, tu enganaste-te na casa, devias ter ido para o seminário. E olha que eu sei daquilo que estou a falar. Tu és um crente. Um crente desassombrado. A religião para ti pode ser um bálsamo. O comunismo, pelo que te ouvi, só pode vir a tornar-se uma maldição”, disse-lhe como quem se confessa a um amigo. Depois peguei nele pelos ombros, tirei-o dali e fomos comer qualquer coisa.


“Sabes qual é a primeira frase do «Manifesto do Partido Comunista»?”, perguntei-lhe enquanto ambos e dois fumávamos um cigarro virados para o rio. Ele respondeu-me com um sorriso nos lábios: “Sei.” E eu pronto a estender-lhe uma ratoeira: “Então di-la em voz alta para eu a ouvir.” E ele: “A história de toda a sociedade até aqui é a história da luta de classes.” E eu: “Errado”. E ele: “Como errado?” Eu de novo: “Errado.” Ele já visivelmente apreensivo e olhando para mim da mesma maneira que Alberto Punhal olhava para Mário Soares: “Não pode estar nada errado. Eu sei-a de cor. Todo o bom comunista a sabe. Pode não saber o resto, mas a primeira frase do «Manifesto» é sagrada. E eu tenho a certeza de que a pronunciei corretamente.” E voltou a repeti-la. Então eu disse-lhe: “Escreve-a.” E ele escreveu-a e eu tornei a dizer-lhe que estava errada. E acrescentei: “Disseste que todo o bom comunista a sabe, por isso é que tu és dos maus. Eu vou dizê-la corretamente: «A história de toda a sociedade até agora existente é a história de lutas de classes».” E ele fumando mais depressa: “Mas foi isso que eu disse.” “Parece-te”, disse-lhe com cara de mestre. “Não é «luta de classes», mas sim «lutas de classes»”. E ele outra vez com cara de Alberto Punhal contrariado: “Não gozes comigo. Foi isso precisamente o que eu disse: «Luta de classes».” Então eu repeti-lhe calmamente o que tinha lido no «Manifesto»: “«Lutas de classes»: Marx efetivamente escreveu «Klassenkämpfen», marcando assim claramente o duplo plural. Nem «lutas de classe», nem tão pouco «luta de classes». Aqui, é bem de «lutas de classes» que se trata.”


O Graça, quando me ouviu “rezar” tão bem a prédica, deu uma passa profunda no SG filtro e, por entre o engasgo, as lágrimas e a satisfação, disse-me que para ser comunista já só me faltava mesmo acreditar no comunismo. Eu respondi-lhe sinceramente: “Acredito nele tanto como tu. Mas, nos tempos que correm, temos de acreditar nalguma coisa. Terra onde fores ter, faz como vês fazer.”


Depois contei-lhe tudo, os prefácios, as notas, o incêndio, as cabeçadas, as semanas e semanas de tentativas de leitura do «Manifesto». Recitei-lhe uma frase de que gostei particularmente, se é que gostei de alguma coisa: «Um movimento semelhante desenrola-se diante dos nossos olhos. As condições burguesas de produção e de circulação, as condições burguesas de propriedade, a sociedade burguesa moderna que desencantou meios tão poderosos de produção e de circulação assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue dominar as forças ocultas que invocou.»


“É José, tu estás um comunista feito. És um comunista às direitas.” E riu-se muito. Eu também me ri com o trocadilho. E dei-lhe conta dos vários tipos de socialismos, segundo a nossa Bíblia. E ele: “Segundo o nosso Catecismo.” E eu: “Tens toda a razão.”


E enumerei-lhas: “Segundo Marx (cujos ossos repousam no cemitério de Highgate, onde a erva continua a crescer) e Engels (cujas cinzas repousam no mar de Eastbourne, Reino Unido, o seu lugar preferido para descansar), existiram, ou existem ainda, três tipos de socialismo que temos de rejeitar e combater para construirmos o nosso. A saber: 1 – Socialismo Reacionário, que se divide em a) Socialismo Feudal, b) Socialismo pequeno-burguês, c) Socialismo alemão, ou Socialismo «verdadeiro» (atenção às aspas); 2 – Socialismo conservador, ou burguês; 3 – Socialismo e comunismo crítico-utópico.


Depois rimo-nos, sem saber bem porquê. E rimo-nos mais uma vez e outra e outra. E citei-lhe mais uma parte do «Manifesto»: “…a navegação e os caminhos-de-ferro expandiam-se e assim se desenvolvia também a burguesia…” E continuámos a rir-nos.


A burguesia a expandir-se como um vírus através dos caminhos-de-ferro transformou-se para nós num episódio hilariante. Eu a ver o meu pai a abandonar o arado e ir para Lisboa trabalhar na GNR, ganhar algum dinheiro e conquistar, à custa de patrulhas e multas, a sua condição de pequeno-burguês que iria dar origem a mais alguns pequeno-burguesitos ranhosos e complexados, encheu-me de pena e de riso. Ria-me para não chorar. E o Graça seguia pelo mesmo caminho. O comboio a ser o motor da contrarrevolução era uma representação decadente como a puta que a pariu. E continuamos a rir até que não conseguimos mais e nos fomos embora a dizer primeiro em surdina o penúltimo parágrafo do «Manifesto»: “Os comunistas recusam-se a esconder os seus pontos de vista e os seus propósitos. (Agora um pouco mais alto.) Declaram abertamente que os seus objetivos só serão alcançados pela liquidação violenta de toda a ordem social até aqui. (Ainda um pouco mais alto.) Que as classes dominantes tremam face a uma revolução comunista. (Já muito mais alto.) Os proletários nada têm a perder com ela a não ser as suas cadeias. E têm um mundo a ganhar. (Finalmente num grito enorme.) Proletários de todos os países, uni-vos.” Ao que uma voz respondeu na escuridão: “Ide-vos foder. Comunistas para a Sibéria já.” Ao que respondemos: “Vai tu, que lá faz muito frio.

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