1 - O cão, a gata e o hámster
Que mania! O cão do meu vizinho gosta de ladrar às pessoas bem comportadas. Elas, com razão, indignam-se. O cão do meu vizinho também gosta de gatos. Lambe-os e sorri sem pudor ou sentido canino comportável com a tradição. Ao que isto chegou, meu deus. Será que fizemos o 25 de Abril para agora nos invadir tamanha incoerência filosófica? Tanta educação, tanta inspiração, tantos direitos, tanta indignação, e agora isto! Já não há “agoras” como antes. Atualmente anda tudo de cara escarnecedora e espírito derrotista. Tanto mar (tanto mar?), tanto marinheiro, tanto sal, tanta poesia, tanto sol, tanta sardinha assada, tanto caracol, tanto pimento, e, também, bacalhau cozido, para nada? Eu até podia culpar o cão do meu vizinho, mas não consigo. É que não sei se gosto dele. A minha mulher inclina-se mais para a gata da sua tia. Mas o hámster cá de casa é que goza da simpatia geral. Dizem que os ratos são sempre os primeiros a abandonar o barco. Mas a tradição já não é o que era. Hoje já não temos barcos. Nem tradição. Nem… Que mania! A gata da tia da minha mulher gosta de miar ao pássaro que canta com erudição. Parece-me que não suporta a qualidade nos outros. Ao que isto chegou!
2 - Do destino dos papagaios pornográficos
Junto ao canto estava um papagaio. Junto ao papagaio estava um vaso. Junto ao vaso estava outro. O papagaio estava numa gaiola a rasgar folhas de jornal com o bico. Estava triste o papagaio. Noutro local também lá estava um outro papagaio dentro duma gaiola. Este não rasgava folhas de jornal, limitava-se a olhar para quem passava como quem esbulha sementes com o bico. Estava triste o segundo papagaio. Numa praça estavam vários marroquinos a vender ventoinhas, cintos, perfumes e, também, filmes pornográficos piratas a homens de meia-idade. Estavam tristes os marroquinos e tristes também estavam os homens de meia-idade que compravam filmes pornográficos piratas aos marroquinos. Mais a sul vários emigrantes apanhavam sombra junto ao rio sentados em cadeiras de plástico, comendo tremoços, amendoins e bebendo cerveja fresca. Estavam também tristes os emigrantes, estavam tristes os tremoços, estava triste a cerveja e as cadeiras de plástico e os amendoins. Estava triste a relva e os pássaros e, até, o verde das árvores das margens. Estavam tristes as margens. As duas. No rio pedalavam turistas nas gaivotas, enquanto deslizavam nas águas turvas do T. Estavam tristes os turistas, estavam tristes as gaivotas, estava triste o rio, estava triste a tarde. Na varanda duma rua estreita uma mulher gritou que já não conseguia aguentar mais a monotonia semântica das molas da roupa. Estava triste a mulher. Estava triste a varanda. Estavam tristes as molas e a roupa e a monotonia também estava triste, de uma tristeza redundante, rígida, hiperbólica. Triste também ficou o grito da mulher. Mas de nada lhe valeu. O grito extinguiu-se sem destino. Os gritos não têm destino.
3 – Canitite aguda
Não há necessidade de olhares para mim com esses olhos ternos e interrogadores. Eu não me chateio. Até gosto. Mais a mais, não te tenho medo. Ai ris-te. Pois ri-te à vontade. Eu não me importo. Até gosto. Não. Não olhes para mim dessa maneira. Não me convences. Eu não gosto de cães. Bem, não é que não goste deles. Só que não os aprecio e acho detestável o excessivo afeto que as pessoas lhe dedicam. Lavam-nos, passeiam-nos, dão-lhe boa comida, vacinam-nos e até lhe administram contracetivos. Já reparaste que todos os cães de agora são obesos? Há por esse mundo fora gente que não tem nem sequer um copo de água para beber ou uma mão cheia de arroz com que se alimentar. Os cães não são seres humanos para merecerem tanta atenção. Agora há cachorros por todos os lados. Ladram, defecam, cheiram mal apesar dos sabonetes e urinam em qualquer canto. Eu não gosto de cães. Ou melhor, não gosto de epidemias e o número de cães que há por aí não augura nada de bom. O que está em causa não são os cães. É o seu número excessivo. É a sua sacralização. As pessoas podem não ter filhos, mas têm cães. E depois passeiam-nos pela rua, que é um espaço público que custa tempo e dinheiro a manter limpo, para que eles defequem e urinem nos passeios, nos postes de iluminação pública, nos jardins. Menos nas casas dos seus donos e nos seus jardins. Sujam a casa de todos nós deixando as casas dos seus donos limpas e asseadas. Reparo que começou a chover. Fica-te bem o cabelo assim molhado. Eu gosto de olhar para ti. Se tivesses um cão ao lado distraía-me com coisas acessórias de que não gosto. Bem, não é que não goste. O mais correto será dizer que não aprecio. Gosto de animais que vivem nos seus espaços vitais. No seu meio. Olha, gosto de lobos. Gosto da sua ferocidade, da sua luta pela vida, de cumprirem com a sua função. Por isso é que estão em extinção. Os cães não têm função, são subsidiários, são quase indigentes. Gosto de passear à chuva. O cabelo molhado fica-te bem, dá-te um ar vivificante. Gota a gota enche o rio o leito. Essa é que é essa.