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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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20
Ago12

Contos (de) animais [rep]

João Madureira

 

1 - O cão, a gata e o hámster

 

Que mania! O cão do meu vizinho gosta de ladrar às pessoas bem comportadas. Elas, com razão, indignam-se. O cão do meu vizinho também gosta de gatos. Lambe-os e sorri sem pudor ou sentido canino comportável com a tradição. Ao que isto chegou, meu deus. Será que fizemos o 25 de Abril para agora nos invadir tamanha incoerência filosófica? Tanta educação, tanta inspiração, tantos direitos, tanta indignação, e agora isto! Já não há “agoras” como antes. Atualmente anda tudo de cara escarnecedora e espírito derrotista. Tanto mar (tanto mar?), tanto marinheiro, tanto sal, tanta poesia, tanto sol, tanta sardinha assada, tanto caracol, tanto pimento, e, também, bacalhau cozido, para nada? Eu até podia culpar o cão do meu vizinho, mas não consigo. É que não sei se gosto dele. A minha mulher inclina-se mais para a gata da sua tia. Mas o hámster cá de casa é que goza da simpatia geral. Dizem que os ratos são sempre os primeiros a abandonar o barco. Mas a tradição já não é o que era. Hoje já não temos barcos. Nem tradição. Nem… Que mania! A gata da tia da minha mulher gosta de miar ao pássaro que canta com erudição. Parece-me que não suporta a qualidade nos outros. Ao que isto chegou!

 

2 - Do destino dos papagaios pornográficos

 

Junto ao canto estava um papagaio. Junto ao papagaio estava um vaso. Junto ao vaso estava outro. O papagaio estava numa gaiola a rasgar folhas de jornal com o bico. Estava triste o papagaio. Noutro local também lá estava um outro papagaio dentro duma gaiola. Este não rasgava folhas de jornal, limitava-se a olhar para quem passava como quem esbulha sementes com o bico. Estava triste o segundo papagaio. Numa praça estavam vários marroquinos a vender ventoinhas, cintos, perfumes e, também, filmes pornográficos piratas a homens de meia-idade. Estavam tristes os marroquinos e tristes também estavam os homens de meia-idade que compravam filmes pornográficos piratas aos marroquinos. Mais a sul vários emigrantes apanhavam sombra junto ao rio sentados em cadeiras de plástico, comendo tremoços, amendoins e bebendo cerveja fresca. Estavam também tristes os emigrantes, estavam tristes os tremoços, estava triste a cerveja e as cadeiras de plástico e os amendoins. Estava triste a relva e os pássaros e, até, o verde das árvores das margens. Estavam tristes as margens. As duas. No rio pedalavam turistas nas gaivotas, enquanto deslizavam nas águas turvas do T. Estavam tristes os turistas, estavam tristes as gaivotas, estava triste o rio, estava triste a tarde. Na varanda duma rua estreita uma mulher gritou que já não conseguia aguentar mais a monotonia semântica das molas da roupa. Estava triste a mulher. Estava triste a varanda. Estavam tristes as molas e a roupa e a monotonia também estava triste, de uma tristeza redundante, rígida, hiperbólica. Triste também ficou o grito da mulher. Mas de nada lhe valeu. O grito extinguiu-se sem destino. Os gritos não têm destino.

 

3 – Canitite aguda

 

Não há necessidade de olhares para mim com esses olhos ternos e interrogadores. Eu não me chateio. Até gosto. Mais a mais, não te tenho medo. Ai ris-te. Pois ri-te à vontade. Eu não me importo. Até gosto. Não. Não olhes para mim dessa maneira. Não me convences. Eu não gosto de cães. Bem, não é que não goste deles. Só que não os aprecio e acho detestável o excessivo afeto que as pessoas lhe dedicam. Lavam-nos, passeiam-nos, dão-lhe boa comida, vacinam-nos e até lhe administram contracetivos. Já reparaste que todos os cães de agora são obesos? Há por esse mundo fora gente que não tem nem sequer um copo de água para beber ou uma mão cheia de arroz com que se alimentar. Os cães não são seres humanos para merecerem tanta atenção. Agora há cachorros por todos os lados. Ladram, defecam, cheiram mal apesar dos sabonetes e urinam em qualquer canto. Eu não gosto de cães. Ou melhor, não gosto de epidemias e o número de cães que há por aí não augura nada de bom. O que está em causa não são os cães. É o seu número excessivo. É a sua sacralização. As pessoas podem não ter filhos, mas têm cães. E depois passeiam-nos pela rua, que é um espaço público que custa tempo e dinheiro a manter limpo, para que eles defequem e urinem nos passeios, nos postes de iluminação pública, nos jardins. Menos nas casas dos seus donos e nos seus jardins. Sujam a casa de todos nós deixando as casas dos seus donos limpas e asseadas. Reparo que começou a chover. Fica-te bem o cabelo assim molhado. Eu gosto de olhar para ti. Se tivesses um cão ao lado distraía-me com coisas acessórias de que não gosto. Bem, não é que não goste. O mais correto será dizer que não aprecio. Gosto de animais que vivem nos seus espaços vitais. No seu meio. Olha, gosto de lobos. Gosto da sua ferocidade, da sua luta pela vida, de cumprirem com a sua função. Por isso é que estão em extinção. Os cães não têm função, são subsidiários, são quase indigentes. Gosto de passear à chuva. O cabelo molhado fica-te bem, dá-te um ar vivificante. Gota a gota enche o rio o leito. Essa é que é essa. 

17
Ago12

O Homem Sem Memória - 71 [rep]

João Madureira


71 – Emboscada ao capitão escoteiro mirim do monóculo de plástico (continuação I).


Cena 5 (take 3). “Então quem se oferece para vir a ter o privilégio de ser o meu novo burro?”, perguntou, enfunado de brio, o capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. Ao que o Francisco respondeu: “O teu burro já vai lá longe e não me parece que volte.” E o capitão mirim: “Então, meu caro Francisco, não te ofereces como voluntário para o cargo que ainda permanece vago? Tu que sempre me foste fiel. Se bem me lembro, estavas permanentemente disponível para substituir o Joaquim como guarda-redes e agora…” E o Francisco: “Uma coisa é substituir, ou trocar de lugar com o guarda-redes, outra, bem distinta, é substituir um burro.” O capitão mirim: “São uma e a mesma coisa. É tudo em prol da sagrada união do nosso grupo. Tudo em defesa da exaltação do espírito de corpo. Tu tens o dom de substituir seja quem for. És pau para toda a colher.” O Francisco paciente: “Reconheço que tenho algum jeito para defender uma baliza, mas não tenho feitio nenhum para ser burro.” De novo o capitão mirim: “Ai isso é que tens.” O Francisco: “Se teimares no mesmo caminho vais ter nova deserção.” O capitão mirim cauteloso: “Pronto, não te amofines…” O Francisco aliviado: “Assim está bem. Mostras que és um chefe sensato. E é disso que nós precisamos.” Novamente o chefe mirim: “Quem se oferece para ser o meu burro, o lugar continua vago e à espera de ser preenchido?” Ao que o Francisco respondeu: “Acho que te deves habituar à ideia de seres um comandante sem montada. Essa teimosia pode fazer com que te vejas na triste situação de vires a ser um capitão sem tropas.” “Nomeio-te meu conselheiro vitalício”, propôs rápido o chefe mirim, “e não admito uma recusa”. Iriam ser golpes semelhantes que o elevariam, mais tarde, à categoria de secretário de Estado.


Cena 6 (take 3). Ainda empoleirados nas suas árvores, o Graça e o José continuam a observar o avanço das tropas inimigas. Diz o Graça para o José: “Continuam a falar. Nunca mais se decidem a avançar. Eu quando espero, desespero. Ferve-me o sangue e turvasse-me a vista.” Foi esta impaciência o que o levou a emigrar para Espanha e a transformar-se num mecânico de automóveis. Responde o José: “Deixa-os lá. Discutem as chefias, tentam defender as suas ideais, lutam pelos seus direitos, fazem valer os seus pontos de vista. Organizam-se democraticamente. Partilham as decisões. Reivindicam o direito de cidadania.” Foram palavras como estas que pregaram com os costados do José na cadeia e fizeram dele um dos mais notáveis presos políticos do Portugal do socialismo real. O Graça: “Ó José, por vezes não te compreendo. Não sei se brincas e entretanto falas sério. Ou se falas a brincar e eu te levo a sério. Ou se levas tudo tão a sério que parece que estás sempre a brincar, mesmo quando não brincas e não falas a sério.”


Cena 7 (take 10). E de novo as tropas do capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro se puseram a caminho. Os cães pisteiros à frente, o exército em fila indiana e o chefe, agora apeado, marchando sobre o seu lado direito. “Tenho sede”, disse um dos cães. “Eu também”, disse o outro cachorro. “Os cães não falam, mesmo quando têm sede”, lembrou o capitão mirim. “Nós também temos sede”, gritaram em uníssono os soldados escoteiros. “Assim nunca mais chegámos à guerra. Nunca mais enfrentamos o inimigo. Nunca mais conquistamos o seu território. Nunca mais nos enchemos de honra e glória”, avisou o chefe. E os soldados: “Mas nós temos muita sede e um exército cheio de sede não combate bem”, lembraram os escoteiros. “Tendes sede porque só falais. Os soldados não falam, não reivindicam, combatem…” “Mesmo quando têm sede?” “Sim, mesmo quando têm sede.” “Mesmo quando têm fome?” “Sim, mesmo quanto têm fome.” “Mesmo quando têm calor?” “Sim, mesmo quando têm calor.” “Mesmo quando têm dúvidas?” “Sim, mesmo quando têm dúvidas.” “Mesmo quando têm medo?” “Sim, mesmo quando têm medo. Mas os meus bravos escoteiros não têm medo. Ou têm?” “Nós temos é sede.” “Os meus bravos escoteiros não são cobardes, pois não?” “Nós temos é sede.” “Os meus bravos escoteiros não têm medo da luta, pois não? Os bravos guerreiros do meu pelotão não são cobardes, ora não?” “Eu não sei o que é ser cobarde?”, confessou o Felisberto. “Ser cobarde é ter medo de combater…” “Só?” “Sim. Ser cobarde é ter medo de combater.” “Só?” “Sim…” “Não. Para ser cobarde é necessário também fugir. Porque ter medo todos temos. Pelo menos isso é o que diz o meu pai. E ele ficou sem uma mão a combater os turras”, disse o Mário Maneta, assim apelidado, não por ser maneta mas por ser filho do João Maneta. “Pelo caminho que isto leva, nem a puta da discussão acaba, nem o combate começa. Em frente marche”, ordenou o capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. “Eu desisto se não beber um golo de água”, disse o Carlos Ranheta disfarçado de primeiro cão pisteiro. “Eu também desisto da guerra se não beber água”, disse o Manuel Merrinhau deitando-se num tufo de ervas meias secas. “Nós também desertamos se não bebermos água” disseram a uma voz todos os sedentos bravos do pelotão. “Mas aqui não há água”, avisou o chefe mirim já visivelmente desorientado. “Existe uma nascente além ao pé dos carvalhos”, esclareceu o Pinto Manco, assim conhecido por ter um pé boto. “Mas para irmos lá vamo-nos desviar muito do nosso trajeto. O território do nosso inimigo fica quase na direção oposta”, lembrou o capitão mirim. “Isso desvia-nos muito do nosso alvo. Temos de seguir em frente”, concluiu. De seguida ordenou: “Em frente marche!” “Em frente marche o caralho”, avisou o Carlos Ranheta camuflado de primeiro cão pisteiro. E todos se deitaram no chão ao lado do Manuel Merrinhau. “Eu proponho que se vote se devemos ir para a batalha mortinhos de sede, se devemos ir além à nascente dos carvalhos beber água ou se devemos ir para casa porque tenho muita fome”, propôs o primeiro cão pisteiro Carlos Ranheta, também conhecido pelo Esfomeado. “Nem é necessário recorrer a nenhuma votação, eu mesmo ordeno que recuemos até nossas casas para almoçar. Um soldado cheio de sede e de fome não consegue lutar”, ordenou o capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. Mais uma vez lembramos que foram tiradas como esta que o elevaram ao cargo de secretário de estado do Estado.


Cena 8 (take 3). Ainda mais empoleirados nas duas árvores, o Graça e o José observam intrigados o recuo das tropas inimigas. Diz o Graça para o José: “Não entendo nada desta guerra. É muito tática para o meu feitio. Primeiro avançam, depois param, logo discutem, depois deitam-se no chão e, finalmente, recuam. Assim não sei brincar.” O José, apontando para um vulto que se aproximava deles empunhando umas cuecas brancas na ponta de um pau, exclama: “Um mensageiro.” Após uma pausa, disse o Graça para o vulto: “Diz lá o que tens a dizer e rápido, antes que te esganemos.” O mensageiro aflito, pois sabia dos maus fígados do filho do sargento, balbucia: “Na guerra não se esganam os mensageiros.” “Mas isto não é uma guerra a sério. Quando se brinca tudo é permitido, até estrangular mensageiros que empunham cuecas brancas todas sujas. Ciscaste nas cuecas, cagão,” ironizou o Graça gargalhando. “As cuecas não são minhas, são do Manuel Merrinhau. O nosso chefe manda dizer que vamos para casa almoçar e que logo vimos. E que a vitória será nossa.” “Vai-te foder cagão, e diz lá ao teu chefe que cá o esperamos.”

15
Ago12

O Poema Infinito: Uma oração sofridamente fodida… [rep]

João Madureira

 

Foda-se, está tudo incompleto. Está tudo incompleto. Foda-se. A vida está irremediavelmente incompleta. Dizem que a vida se completa na morte. Ora foda-se, a vida é o contrário da morte. E a morte é o contrário da vida. E o contrário do contrário é a origem da vida. Não há dicotomia mais absurda. Para além de tudo, Deus fez da morte a sua vingança. Deixemos a ergonomia de Deus em paz. Deixemos a insolvência da eternidade em paz. Deixemos a economia das almas em paz. Deixemos o desespero da paz em paz. Deixemos todas as desilusões em paz. Deixemos a santíssima trindade em paz. Deixemos a guerra em paz. Deixemos a guerra em paz. Deixemos a guerra em paz. Deixemos em paz a brutalidade inusual de um coito severo. Deixemos em paz a virtude de um orgasmo múltiplo e de uma ejaculação precoce. Deixemos em paz as raras ejaculações tardias e os orgasmos funcionais. Deixemos definitivamente em paz a fertilização em vítreo. Deus, dizem os profetas, quis a vontade dominada pela crença. Deus, dizem os teólogos encartados, quis os homens dominados e santos e responsáveis e obedientes e respeitadores e simples e inteligentemente obsessivos pelos gestos simbólicos da abdicação. Deus quer existir na dissidência humana da vacuidade. Deus é um momento eterno. Deus deixou de ser verdadeiro a partir do momento em que me fez mortal. Deus teve o descaramento de se travestir de serpente. Foda-se, Deus teve de se disfarçar de animal rastejante para nos condenar à condição humana. Deus não desiste da paz em favor da guerra nem da guerra a favor da paz. Deus não desiste da necessidade urgente de ser uma desilusão cada vez mais urgente e insurgente e insolvente e incipiente. Deus fodeu-nos definitivamente a vida eterna afirmando com língua de fogo que era isso que nos oferecia em troca de lhe sermos fiéis. E se há coisa que seja verdadeiramente humana é que os homens são féis a Deus. Muito mais fiéis que Deus o é em relação aos homens e à sua nua humanidade. O Deus de todas as coisas é cada vez mais um Deus de coisa nenhuma. 

13
Ago12

Cinco histórias curtas ou mesmo muito curtas [rep]

João Madureira


Primeira - Higiene oral


Insisti com o Manuel para que fosse nadar para a piscina. Ele assim fez.Mas a meio do exercício sentiu-se cansado e resolveu ir ler um livro para o jardim. Depois foi comprar comida. Comeu e bebeu. Nem muito nem pouco. À noite foi correr.Correu 10 quilómetros e sentiu-se bem. Antes de se ir deitar lavou os dentes. Manuel tem uns dentes brancos e bem definidos. Quando sorri encanta as pessoas. Só lhe custa adormecer.

 

Segunda - Malmequeres


Fiquei contente por ver o Miguel a desfolhar um malmequer. Mal-me-quer, bem-me-quer, murmurava ele debicando pétala a pétala a flor pendurada há pouco na lapela do casaco, enquanto os olhos lhe brilhavam como duas estrelas numa noite muito escura. Penso que está apaixonado pela sua colega da turma B. Ela chama-se Maria João, que é um bonito nome, bem diferente das Vanessas, das Soraias, ou Sabrinas, ou outros que por aí aparecem e nos vão transfigurando em varões solitários com dificuldade em pronunciar nomes esquisitos e infecundos. Pelo meio das pétalas, o Miguel lê poemas de amor e ouve música romântica. Depois sorri novamente e vai à procura de um novo malmequer para desfolhar. Anda azougado o Miguel. Por vezes até entoa música dos velhos Beatles. Anda tonto o rapaz, com aquele brilhozinho nos olhos e os malmequeres no bolso do casaco. Até se penteia à moda antiga, com risca ao lado e brilhantina no cabelo castanho. Anda risonho e azougado o marialva. Fico contente por ele. Fico satisfeito como ele.

 

Terceira - Mudar de passeio


O José não gosta nada de mudar de passeio. Diz que tem medo de atravessar a rua. Que lhe desestabiliza o sistema nervoso e lhe mexe com a libido. Ele tem a libido um pouco estragada. Coisas da juventude. O José foi à guerra e quem vai à guerra dá e leva. E ele levou mais do que deu. Por vezes fica com os olhos turvos e começa a chorar. Nesses dias não sai de casa. Nem do quarto. Nem da cama. Desenha fios de metal e aranhas muito coloridas. Pode passar assim dias e dias alimentando-se apenas de iogurtes naturais e fruta cristalizada. Também lê revistas científicas, mas lê os artigos do fim para o princípio. Depois traduz alguns para o árabe e no fim rasga-os. Sabe tocar piano, andar de bicicleta e assobiar com os dedos. Toca piano só a partir das cinco da manhã e apenas até ao amanhecer. Nunca o faz fora deste intervalo de tempo. Tira muitas fotografias às suas mãos e depois amplia-as muitíssimo para observar os poros e os pelos da epiderme. Nos dias de chuva mia muito. Nos dias de sol muge como os bois do barroso. Na sua quinta da aldeia tem uma zebra manca que comprou a um circo. Escova-a todas as semanas e passeia-a pela aldeia. Também toca muito bem cítara. Mas os amigos não gostam deste tipo de música. Coisa que o irrita muitíssimo e o faz estalar os dedos. Costuma sair nas noites de geada e passear um galo de briga cego que comprou a um mexicano de férias em Espanha. Costuma dar-lhe pipocas picantes e levá-lo ao Miradouro de S. Lourenço para lhe mostrar a cidade de C. Nesses dias o galo canta que se farta e ele acompanha-o à guitarra. O José é muito habilidoso com as mãos. Aprendeu a fazer croché e confeciona lindos carapuços para árabes e judeus. Escreve-me cartas enormes com letras desenhadas a rigor e isto vivendo nós apenas a cem metros um do outro. E envia-mas sempre em correio azul. São cartas que falam do seu amor pelos passeios, pelos candeeiros, pelos bancos de granito, pela poesia chinesa antiga, pelas flores da urze e da carqueja, pelo musgo dos muros e pelos reflexos do céu nas águas do T. Ontem compôs uma música muito bonita para o seu galo cego.Hoje tocou-a para mim. Eu até chorei. Depois fomos os dois, sempre pelo mesmo passeio, até ao rio, descalçámo-nos e molhámos os pés nas suas águas tranquilas. Então ele tirou um grilo do bolso e pediu-lhe que cantasse uma ária de Mozart. O grilo não se fez rogado e deslumbrou todos os presentes. O mundo é, por vezes, um lugar estranho, mas encantador.

 

Quarta - Má disposição


Hoje encontrei o Luís, um rapaz da minha idade que já não via há muitos anos.Está praticamente igual. Parece que o tempo não passou por ele. Claro que está um pouco mais gordo, mais enrugado e mais calvo, mas, fora isso, parece praticamente igual ao que foi. O Luís era muito castiço. Tinha muita piada. Sabia tocar um pente com um papel imitando uma trompete, cantava como o Joe Cocker, imitava a bateria dos Deep Purple com a boca, travava os seus carrinhos de brincar no tempo certo e com um chiar muito caraterístico. Fora isso, queria ir para polícia. Só que emigrou para Espanha. E… já não me apetece escrever mais nada sobre o Luís, nem sobre nada. Estou irritado, apetece-me espatifar o computador e quebrar um disco de fado. Estou muito irritado e mal disposto. Até me doem os dentes. Também me apetece dizer asneiras. Apetece-me dar um pontapé num gato. Ou num cão. Estou muito arreliado. Até me doem os joelhos e os pés. E este tempo ainda me põe mais assanhado. Chove e brilha o sol. Onde já se viu tal estupidez. O barulho dos carros enfurece-me. Tenho uma borbulha no nariz. Estou numa pilha de nervos. Tenho de ir cortar as unhas.

 

Quinta - Será o tempo infinito?

 

Já lá vai o dia. Hoje passeei pela cidade na companhia de um velho amigo.Descemos e subimos ruas, parámos para admirar edifícios antigos e rememorámos velhos tempos que nos estão impressos na memória como se fossem marcados a ferro em brasa. Só por si, passear com um amigo é um prazer. Faz-nos sentir um pouco mais novos, mais solidários, lembra-nos um passado feliz e vivido intensamente.Não importa que parte dessas memórias seja produto da nossa imaginação.O que interessa são as reminiscências doces dos momentos que agora nos parecem felizes e perfeitos. Dizem que a memória é seletiva e é bom que assim seja. O meu amigo também é seletivo. Sabe selecionar bem os vinhos que bebe, sabe selecionar os melões mais doces e maduros, sabe selecionar os pratos mais apetitosos quando vai a um restaurante, sabe selecionar a melhor música e os melhores livros. Sabe selecionar, ainda, os seus amigos. Quando era jovem, este meu amigo era muito rebelde e as garotas derretiam-se por ele. A mim pouco ligavam. Fui sempre um rapaz apagado, sorumbático, pouco falador e insuficientemente imaginativo. Hoje já falo um pouco mais, mas permaneço um homem apagado. O meu amigo continua alegre e sorridente, atrativo para as mulheres e bom garfo. Quando vem a C. gosta de passear pelas ruas antigas na companhia dos amigos. Ainda se lembra dos tintins que líamos a meias nos bancos do jardim do Tabolado. Também se recorda dos poemas do Fernando Pessoa que líamos e decorávamos para recitar às raparigas namoradeiras. Nós apreciávamos muito o poeta, as garotas é que não lhe achavam lá grande piada. Mas também para que serve uma rapariga que aprecia Fernando Pessoa na juventude? Cada coisa a seu tempo. É que a idade esclarece muita coisa e confere alguma circunspeção. Mas também arruína muita realidade, apaga muita beleza, esclarece muitos equívocos e destrói intensas ilusões. Fora isso tem a propriedade de tornar tudo finito.

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