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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

19
Set12

O Poema Infinito (112): renascimento

João Madureira

 

Uma ave de ouro sobrevoa os altíssimos altares bíblicos e entra de repente nos meus olhos. E os meus olhos entram nos teus. E assim se protegem da escuridão do desalento. Saem do fogo figuras de escrita que ascendem com o fumo. O meu corpo tem agora os sintomas inexpressivos do amor. A febre da demência e do conhecimento sopra de novo sobre a carne dos animais sacrificados, sobre o rebordo inflamado das vozes, sobre o tecido perseverante das metáforas, sobre as vocalizações da dor e do arrependimento. Um gládio de raios laser separa definitivamente o céu da terra. E a boca dos humanos transforma-se num vulcão que expele gritos primitivos, como se a Terra arremessasse por aí a sua lava criativa. Afinal Deus está morto e jaz amortalhado nos seus textos bíblicos. Sentado à beira de um riacho, o seu filho reza um poema do génesis e lamenta a sua infertilidade. Nem mulher a quem amar, nem filhos a quem criar, nem inimigos a quem odiar. Afinal, para que lhe serve a redenção e a sua humanidade divina? Todas as gerações antigas descem agora da Arca de Noé. E Noé chora porque vê Cristo chorar e sabe que dentro do palácio celestial Deus jaz morto e arrefece porque quis deixar de sofrer com o sofrimento dos seus filhos. A Cristo pesam-lhe os pecados e os milagres e as orações e os constantes pedidos de redenção e as súplicas monocórdicas e a cintilação da solidão dos abandonados e os caminhos desertos e a geografia eterna das doenças e a cintilação agreste dos gritos dos logocratas e os projetos esboçados pelos poderosos e as multidões de indignados e a velhice eterna da esperança e as trémulas lágrimas das crianças e os equívocos da condição humana e a sua agressiva falta de sentido e os gestos esforçados dos idosos e os pretextos equívocos dos redentores e os gritos da austeridade da vida real e o seus números agressivos e o simbolismo doloroso da cruz e as translações metálicas dos anjos e as inflexões luxuriosas dos demónios e a palavra “ordem” e a palavra “oráculo” e a palavra “exclusão”. Cristo faz explodir os templos porque se transformaram em casas de apostas. Cristo não chora a morte do seu pai, o filho de Deus chora a inflexão estúpida dos cânones, as mentiras alquímicas dos que ainda se dizem seus seguidores. Cristo lê agora a história curta da vida de cada homem impressa na sua alma. E desenha ao seu redor um templo construído com concavidades perfeitas de alegria de onde nasce incessantemente a razão pura das coisas. E sorri. E canta. E dança. E regressa de novo pródigo ao encontro dos infelizes, às zonas infetadas pela moral vigente, pela ambição, pelo desalento. E joga e abençoa os poetas e consola os desiludidos e transforma todas as palavras em estrelas e origina convulsões de beleza e faz lindos pães cintilantes e multiplica os livros e fecha as cidades ao trânsito e inunda de aldeias as metrópoles e enche de prazer as ruas abandonadas e faz dos falsos profetas estátuas de sal e ilumina as casas com poemas chineses e recompõe a verdade e redime a mentira e comove os exércitos e faz dos generais índices de enciclopédias e ilumina todas as noites com clarões de silêncio e luz subatómica. E liberta o Édipo do seu intricado complexo, as máquinas das suas engrenagens e a Cruz do seu simbólico castigo. Cristo repõe a vida no seu devido lugar, permitindo-lhe o seu sentido utópico. A utopia deixará, definitivamente, de ser utópica. O filho de Deus intenta outra vez a sua corrida final: o recomeço. E grita: Deus já pode descansar em paz. Que a eternidade lhe seja leve. 

17
Set12

Pérolas e diamantes (3): os corajosos embuçados e o escritor constrangido e frouxo

João Madureira

 

Talvez seja por eu ter nascido numa aldeia que tem o S. Sebastião como padroeiro que desde sempre atraio sobre mim as setas dos inimigos. Só que como vivemos nos tempos modernos, em vez de setas verdadeiras eu apenas sou vítima das suas palavras afiadas ou dos seus rancores mais obscuros.

 

Esses embuçados, sempre ocultos pelo manto diáfano do anonimato, cumprem com a tradição, nublando-se com o outro Sebastião, não o santo, mas o rei garoto que se sumiu na bruma para nunca mais. Mas cada um tem o fado que merece. E eu já me habituei à minha triste sina. É certo e sabido: o bom português aspira ao anonimato.

 

A eles, os outros, a esses intrépidos embuçados, saltam-lhes dos lábios os velhíssimos truques da arte da sedução da forma mais airosa possível, a mim ouve-se, quando muito, o engolir de palavras que não pronuncio por educação. E olhem que engolir a saliva de forma intrusiva não é mesinha que se aconselhe, nem mesmo aos adversários.

 

Presentemente consolo-me em contar histórias, mais ou menos frescas, que, mesmo sendo incompletas, como tudo na vida, não deixam de ser abundantemente inventadas. E olhem que nunca estão concluídas, como todos bem sabemos. Encontram-se sempre à espera de uma nova oportunidade para serem continuadas ou então narradas do fim para o princípio ou vice-versa, pois para o caso tanto monta.

 

Lembro-me de uma primavera, nos tempos em que a comida não abundava mas sobejava o trabalho nos campos, de estar bem em frente da junta de bois do meu avô e a guiá-la, dando pequenas pancadas com a aguilhada no jugo, de ver-me a tropeçar mesmo em frente das pesadas patas dos bichos, para desespero do meu avô que correu na minha direção com a atrapalhada intenção de me salvar de ser trepado e esmagado, e de eu, num gesto instintivo, ter rebolado para fora do alcance das patas dos bois. Pois lá diz o velho ditado, ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo.

 

Neste caso posso escrever sem me enganar que o João Lorde foi salvo da excomunhão em vida, pois não podendo o meu avô chegar a tempo de me salvar, a sua mulher e a sua filha querida tinham-no cruxificado, não num madeiro de pau, mas antes numa cruz de palavras que o consumiriam em três noites e quatro dias e ainda o transformariam em alma penada por tamanho pecado e tão torpe negligência.

 

Quando ele, atónito, pegou em mim ao colo com um ar sério de atrapalhação e orgulho, e me fez uma festa com tanto carinho e esforço como só um cristo rei do tamanho do nosso e do brasileiro podem fazer, lembrou-me que existe sempre uma saída para um problema, a habilidade está em reagir a tempo.

 

Ainda me recordo das suas palavras: Nunca te esqueças disso. Perante a adversidade, rebola, afasta-te das patorras das bestas. Não te fies no seu olhar dócil e na sua mansidão castrada. Mesmo pacatos, os bois passam por cima de ti sem sequer se deterem. Nunca te fies nas aparências. Rebola, rebola sempre. Nunca te dixes espezinhar. Rebola.  

 

Amiúde ainda me lembro da sua voz de lavrador que rebentava com as paredes da Clerga e da paz com que olhava para aqueles sítios que pouco tinham de lírico: uma paisagem solarenga, disseminada pelas diversas propriedades, por vezes estilizada pela chuva, ou disfarçada pelo nevoeiro. Com a sua voz grossa, unicamente as badaladas do sino da igreja podiam rivalizar.

 

Era a minha aldeia, uma pobre e mansa circunstância que não permitia grandes elevações de consciência. Talvez daí este meu espírito ríspido, dado ter sido talhado com o gume das palavras verdadeiras e temperado com as geadas de janeiro.   

 

Era frequente ir para o sítio do feno meditar e descansar. Eu e os gatos. Depois punha-me a pensar realidades, possivelmente profundas, ou talvez não. Mas, ó deus das pequenas coisas, por incrível que pareça, este vosso amigo já então se punha a pensar pela sua cabeça. O atrevimento já lhe vem de longe.

 

Quando menino era assim, um sempre na lua. Pensava em coisas argutas acerca do céu estrelado, sobre os desenhos inscritos na face do satélite da Terra e, muito provavelmente, em coisas poéticas, acabadinhas de misturar, como o pão na masseira, que levedava bem embrulhado no seu manto de linho e onde a cruz desenhada em cada bola começava a desaparecer ao compasso com que se esfumavam as orações que da boca da minha avó saíam, ciciadas a gosto, cantadas com carinho, sussurradas como cânticos mágicos.

 

O tempo lá ia passando sem grande utilidade. Ou a sua memória. Pois as memórias assentam em memórias que, por sua vez, assentam noutras memórias. E por aí fora.

 

O que aprendi de ciência certa é que é preciso muito tempo para se acabar de conhecer os indivíduos. E como muito bem filosofava D. Quixote: “Portanto Sancho, por onde tanta boa gente tem passado posso eu passar também.”

 

Com a vossa licença, atrevo-me até a mais, pois um pouco à frente, a obra-prima de Cervantes narra a desventura dos seus dois personagens depois de ambos apanharem uma surra das valentes, generosamente brindada por uns viajantes manchegos que tiveram a desdita de se atravessarem nos heroicos destinos do dono do Rocinante e do seu gentil escudeiro.

 

Este, mesmo moído de pancada, tem ainda tempo, e inteligência, para refletir e afirmar para um Sancho lastimável e lastimado: “Deixa-te disso e faz das fraquezas forças, Sancho, que assim eu farei; e vejamos como está Rocinante, que, ao que me parece, o coitado não apanhou menor quinhão que nós.”

 

Por isso, aos anónimos de serviço respondo com a admiração do sábio escudeiro do cavaleiro da triste figura: “Não admira, pois é também andante; o que a mim me espanta é, que o meu jumento escapasse com as costas inteiras donde nós trouxemos quebradas as costelas.”

 

Aos corajosos do incitamento que não sarrabiscam uma linha mas estão continuamente habilitados a rir-se dos adversários e a comentarem a escrita dos demais e sempre, sempre, sempre a resguardo do anonimato, lhes digo em jeito de Sancho Pança: “Mas eu lhe juro, à fé de pobre homem que sou, que mais estou eu para emplastros, que para arrazoados.”

14
Set12

O Homem Sem Memória - 125

João Madureira


125 – Almoçaram como bons, sinceros e coerentes comunistas. Comeram a sopinha, a costeleta de porco, as batatas fritas e o arroz, debicaram a salada, beberam o vinho e “sobremesaram” pudim. Terminaram com um café, meio Croft e uma valente cigarrada que a todos pôs bem-dispostos.


Entraram no Centro de Trabalho a rir e a assobiar energicamente a Internacional. Mas afinados, como convinha. Honra lhes seja feita. E que do proveito não desmereçam. Por isso botaram nova cigarrada e, entrementes, deram por iniciada a segunda parte da reunião.


O camarada funcionário – funcionário uma vez funcionário para sempre –, fez questão em lembrar o ponto da situação. O Graça, por seu lado, sarrazinou em recordar o ponto da situação, qual estado da nação, e até o José se preparava também para botar pendência relativamente ao ponto da situação, para demonstrar, caso fosse necessário, que aprendia bem e depressa, quando o Mário “Camões” veio de novo à liça para propor que deviam seguir o procedimento suficientemente basto e revolucionário do camarada Talião: olho por olho e dente por dente.


O Graça, com a paciência da digestão, acendeu novo cigarro, deu duas chupas bem dadas, travou com efetiva e resoluta decisão revolucionária o fumo do seu SG filtro, fez três argolinhas muito parecidas com as da coligação comunista, e, virando-se para o Mário “Camões”, lembrou-lhe de novo que tirar olhos aos outros, mesmo que os outros sejam temíveis reacionários, não é uma atitude verdadeiramente marxista-leninista, que o tal Talião não era comunista, nem pouco mais ou menos, nunca o foi e não o poderia vir a ser porque já tinha morrido há muito, muito, mas mesmo muito tempo, que os comunistas não são vingativos, e se o fossem não seria nunca com o pretexto de uma guerra de cartazes que se punham a arrancar olhos a quem quer que seja. Nem dentes, quanto mais olhos. É que os dentes ainda se podem substituir, agora os olhos não. A não ser pelos de vidro, mas esses não têm valimento nenhum. Os dentes postiços são como os socialistas, estéreis auxiliares da construção democrática, o que politicamente é pouco. Já os olhos de vidro estão para a visão, como os reacionários para a revolução.


Além disso a cidade é pequena, aqui todos são ou conhecidos ou amigos. E mesmo os comunistas têm familiares distribuídos pelos distintos partidos da reação ou da contrarrevolução. Por isso deviam tentar enquadrar devidamente os acontecimentos.


Todo o verdadeiro comunista tem de saber colocar as coisas no seu devido lugar. Colar cartazes e arrancar cartazes são tarefas políticas de momento. Não é a revolução. A revolução é pegar em armas e tomar o poder ou outra atitude do mesmo estilo. Cada coisa no seu devido lugar.


Por exemplo, quando os comunistas colam cartazes estão a fazer uma tarefa política devidamente enquadrada, estão a comparecer ao jogo democrático. Mas não se ficam por aí. Por aí ficam-se os dentes postiços (perdão!), os socialistas.


Os comunistas não se iludem com o brilho das dentaduras postiças (perdão!), dos socialistas. Pois a democracia burguesa e parlamentar é uma ilusão, bem assim como os socialistas, as dentaduras postiças e os cartazes. Não sei se nos fazemos compreender.


O Mário “Camões” vendo que a conversa não ia dar a lado nenhum, contestou: “Quer dizer que os reacionários rasgam-nos os cartazes e nós vamos ficar quietos e calados como uns cobardes? É isso? Questiono! Vamos para aqui ficar a falar de dentaduras postiças, de socialistas e de olhos de vidro? É isso? Questiono!”


“Não, não é isso”, verbalizou calmamente o Graça. “Quer dizer que temos de discutir o assunto, denunciar a situação e agir em conformidade. Revolucionariamente quanto baste, mas não mais do que isso. E agir como um militante marxista-leninista é agir sempre em favor da revolução, mas também sempre devidamente enquadrado. Mesmo não parecendo. Hoje colamos cartazes, amanhã não sabemos se estamos a afixar cartazes ou de armas na mão a defender as mais amplas liberdades do nosso povo, entrincheirados na Serra do Brunheiro, como o Fidel e o Che estiveram na Sierra Maestra. Mas amanhã é muito tempo, por isso temos de nos concentrar nas tarefas imediatas.”


O Mário “Camões” tentou de novo pegar na palavra, como quem pega em armas, mas o camarada funcionário cortou cerce: “Agora quem fala sou eu. Vamos lá respeitar as hierarquias.” O Graça olhou para o luzeiro escorreito do Mário “Camões” e vendo-o a piscar como um semáforo na cor amarela, o que nele queria significar tormenta, tomou de novo a palavra e tentou temporizar: “Caro camarada funcionário, eu sei que as hierarquias são para ser respeitadas, mas também sei que o direito de cada camarada a expor a sua opinião é sagrado…”


Ao que o camarada funcionário, já visivelmente irritado, respondeu: “Aqui no Partido, a única coisa verdadeiramente sagrada é o centralismo democrático. E esta reunião tem todo o aspeto de ser um debate entre amigos, não uma reunião de intrépidos bolcheviques que honram o Partido acima de tudo, os seus órgãos, as suas orientações e decisões. E a verdade, verdadinha, é que o Partido já decidiu que a resposta a dar à provocação tem de passar pela redação de um comunicado ao nosso povo dando-lhe conta do sucedido, denunciando a provocação, apelando à unidade na ação entre as forças democráticas e de esquerda para combater a reação, o anticomunismo primário, o imperialismo, a exploração capitalista, os latifundiários, a burguesia contrarrevolucionária, denunciar o obscurantismo, o esquerdismo, o aventureirismo pequeno-burguês de fachada socialista e…”


“E o caralho que te foda”, disse o Mário “Camões” com o olho bem aberto e apontando o seu indicador direito como se fosse uma Mauser. “Então eles arrancam-nos os cartazes e nós limitamo-nos a redigir um comunicado a dizer para terem pena de nós? É isso? Vê-se logo que não te custaram a colar. Tu és bom a dar ordens. Mas nem um único cartaz te deste ao trabalho de colar. Limitaste-te a observar e a dizer se os devíamos inclinar mais para a direita ou para a esquerda.”


Ao que o camarada funcionário retorquiu com a verdade, pois só ela é verdadeiramente revolucionária: “E tu bem necessitaste da minha ajuda, senão os cartazes iam ficar todos tortos.” Ao que o Mário “Camões” respondeu: “E a quem é que isso interessava. Afinal era para serem arrancados!” E adiantou: “Além disso, posso ser zarolho mas não sou, nem consigo ser, cobarde.”


O Graça pôs-se então de pé e exigiu calma. Ele ainda era o controleiro. E exigia calma. E quando o Graça exigia calma o melhor a fazer era agir em conformidade. Todos o sabiam. Mesmo o Mário “Camões”, e inclusive o camarada funcionário. Quando a paz voltou ao espírito dos presentes, o Graça deu a palavra ao seu superior hierárquico.


“Sim, é isso. Eles arrancam-nos os cartazes, nós emitimos um comunicado e voltamos a colar os cartazes que nos rasgaram”, disse o camarada funcionário. “São essas as indicações do Partido. A paciência é uma virtude comunista. Uma grande virtude.”


“Tu chamas virtude à paciência. Eu chamo-lhe cobardia”, disse o Mário “Camões” com o peito repleto de coragem transmontana. No que foi coadjuvado pelo Carlos Chouriço que lembrou: “Não vês que para este banana até cagar e mijar são tarefas revolucionárias. Bonito comunista me saiu este funcionareco de província.”


“Razão têm os esquerdistas, este é um partido de revisionistas. Têm medo da reação. E o que é pior, têm medo da revolução. Para eles, a revolução faz-se a redigir comunicados que não interessam nem ao menino Jesus. E as armas? Quando se pega em armas para tomar o poder?”, disse em pose de Lenine o Mário “Camões”.


Logo de seguida, o Carlos Chouriço gritou: “Ou reação ou revolução. Caralho. Unidos venceremos. Nem mais um soldado para as colónias. O Povo está com o MFA. Abaixo a reação. Caralho. Abaixo a reação. Avante camarada, avante, junta…”


“Vamos lá por um ponto de ordem à mesa”, avisou o camarada funcionário. “Disciplina, ordem, respeito. Exijo respeito. E ordem. E disciplina. Não se esqueçam que estão no Centro de Trabalho, na casa dos comunistas. Aqui todos os militantes têm de respeitar os Estatutos do Partido. As decisões são tomadas em consenso. O coletivo é quem mais ordena.”


“Sim”, disse o Graça. “Vamos votar.” “Votar o quê?”, perguntou atrapalhado o funcionário. Ao que o José respondeu: “Votar ou na proposta de redigir um comunicado e de voltar a colar os cartazes ou…” Ao que o camarada funcionário replicou: “Que eu saiba não há mais nenhuma proposta em cima da mesa.” “Não há mais vai haver”, disse o Carlos Chouriço. “Proponho que devemos pegar em armas e ir para o Brunheiro, imediatamente e em toda a força.”


O Mário “Camões”, por seu lado, alvitrou: “Eu proponho que levemos à prática as diretrizes do camarada Talião, deixando cair, no entanto, a parte do “dente por dente”, para poupar os socialistas, mas respeitando na íntegra tudo o que diz respeito ao “olho por olho”, para foder a reação.


Desesperado, o camarada funcionário desabafou: “Não há pior cego do que aquele que não quer ver.” Ao que o Mário “Camões”, sentindo-se coagido, perseguido e gozado, respondeu: “Posso ser zarolho, mas não sou cego. Nem sou cobarde.” E já ia para ele de broxa em riste quando o Graça se interpôs e lhe deu um murro certo no sítio devido que o deitou ao chão. Depois de lhe pedir desculpa, ajudou-o a levantar-se e disse-lhe que ou acatava a decisão do Partido ou tinha de se ir embora.


“E qual é a decisão da Partido?”, perguntou o Carlos Chouriço, fazendo-se de ingénuo. Ao que o Graça objetou pesaroso: “Redigir um comunicado e voltar a colar os cartazes.”


“Com tarefas revolucionárias dessa envergadura, o povo português bem pode esperar sentado pela revolução”, avisou o Carlos Chouriço. Ao que o José juntou: “Só a verdade é revolucionária.”


E o Graça visivelmente desalentado: “Também tu, José. Também tu me atraiçoas.” O Mário “Camões”, visivelmente abalado, virando-se para o Carlos Chouriço, disse: “Vamos embora que esta revolução não é a nossa. Ninguém faz uma revolução a colar cartazes e a redigir comunicados. E fiquem sabendo os do Comité Central que a nossa revolução é mais bonita do que a vossa, ou a deles ou a de quem quer que seja e…”

12
Set12

O Poema Infinito (111): da geometria das borboletas

João Madureira


Eis-me nu ao desaguar. Num rasgo melancólico, atravesso a sabedoria como se fosse o último animal mitológico da cidade. Os dedos abandonam a tua profunda ausência. O teu rosto é agora uma batalha. Os dias são pequenas manchas na memória. O teu corpo jaz numa fotografia austera. Já pouco me lembro de mim. Apenas consigo monologar com o medo que é uma visão permanente do fulcro das noites insones. Penso em partir de novo e esquecer tudo: as asas da tua boca, a paixão dos teus olhos, a certeza da morte. Mas acordo de novo e de novo adormeço. Já não sei se sonho ou se vivo. Sei que durmo neste corpo calmo à espera da catástrofe. Por breves momentos largo a tristeza. A cidade cresce dentro do abandono. Agora a alba apenas traz indiferença. Até as aves desaparecem dos meus olhos mesmo durante o seu voo. Os espaços crescem pendurados em árvores que enferrujam na névoa. O tempo é outono ou inverno. As nuvens escondem-se no céu e nele tatuam a saudade eterna do azul e do seu desespero. Relâmpagos acendem o medo que se esconde no ato de viver sem paixão. Outro é o ar que nos estremece. Tu nomeias o mundo. Eu desarrumo-o. Eu desordeno-o. Eu enlouqueço. A escrita é agora uma proximidade de espelhos que se constrói com os gestos exatos da criação. As persianas do quarto transformam-se em fogo-fátuo. E o chão é agora outro mar. E outras árvores protegem-nos os corpos e simulam o sonho da vida. Os meus olhos têm agora a dor salgada do mar. E o mar enche de marés o meu quarto. E a tua voz regressa. E o teu sorriso volta a acariciar-me os olhos. Renasço. O teu rosto já não tem sombras. E o teu corpo atravessou apressado a longa noite do pesadelo. Uma ave de fogo entra pela janela onde me debruço. A memória fica agora impregnada com a loucura perfumada das violetas. A madrugada persente a alegria dos ninhos de aves com asas de libélulas. Tenho uma epifania dourada pelo teu sonho. O tempo volta a circular pelos teus dedos. As tuas mãos esboçam movimentos esquecidos. Uma poalha estelar pousa suavemente sobre a nossa cama. Nela navegam agora barcos cheios de palavras doces. Enchemos as nossas bocas de segredos. A alba fustiga as velas pandas. Nos vidros das janelas gotas de chuva fazem pequenos trajetos. Esta água já não nos magoa o corpo. Um silêncio longínquo invade-nos os ouvidos. A manhã chega encostada às vidraças. Os teus lábios ficam húmidos. Os nossos corpos teimam em não se vergar e por isso são atravessados pelo pulsar denso das estrelas. As nossas mãos ficam transparentes. E os nossos rostos ficam nítidos desenhados pela pureza geométrica das borboletas. 

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