125 – Almoçaram como bons, sinceros e coerentes comunistas. Comeram a sopinha, a costeleta de porco, as batatas fritas e o arroz, debicaram a salada, beberam o vinho e “sobremesaram” pudim. Terminaram com um café, meio Croft e uma valente cigarrada que a todos pôs bem-dispostos.
Entraram no Centro de Trabalho a rir e a assobiar energicamente a Internacional. Mas afinados, como convinha. Honra lhes seja feita. E que do proveito não desmereçam. Por isso botaram nova cigarrada e, entrementes, deram por iniciada a segunda parte da reunião.
O camarada funcionário – funcionário uma vez funcionário para sempre –, fez questão em lembrar o ponto da situação. O Graça, por seu lado, sarrazinou em recordar o ponto da situação, qual estado da nação, e até o José se preparava também para botar pendência relativamente ao ponto da situação, para demonstrar, caso fosse necessário, que aprendia bem e depressa, quando o Mário “Camões” veio de novo à liça para propor que deviam seguir o procedimento suficientemente basto e revolucionário do camarada Talião: olho por olho e dente por dente.
O Graça, com a paciência da digestão, acendeu novo cigarro, deu duas chupas bem dadas, travou com efetiva e resoluta decisão revolucionária o fumo do seu SG filtro, fez três argolinhas muito parecidas com as da coligação comunista, e, virando-se para o Mário “Camões”, lembrou-lhe de novo que tirar olhos aos outros, mesmo que os outros sejam temíveis reacionários, não é uma atitude verdadeiramente marxista-leninista, que o tal Talião não era comunista, nem pouco mais ou menos, nunca o foi e não o poderia vir a ser porque já tinha morrido há muito, muito, mas mesmo muito tempo, que os comunistas não são vingativos, e se o fossem não seria nunca com o pretexto de uma guerra de cartazes que se punham a arrancar olhos a quem quer que seja. Nem dentes, quanto mais olhos. É que os dentes ainda se podem substituir, agora os olhos não. A não ser pelos de vidro, mas esses não têm valimento nenhum. Os dentes postiços são como os socialistas, estéreis auxiliares da construção democrática, o que politicamente é pouco. Já os olhos de vidro estão para a visão, como os reacionários para a revolução.
Além disso a cidade é pequena, aqui todos são ou conhecidos ou amigos. E mesmo os comunistas têm familiares distribuídos pelos distintos partidos da reação ou da contrarrevolução. Por isso deviam tentar enquadrar devidamente os acontecimentos.
Todo o verdadeiro comunista tem de saber colocar as coisas no seu devido lugar. Colar cartazes e arrancar cartazes são tarefas políticas de momento. Não é a revolução. A revolução é pegar em armas e tomar o poder ou outra atitude do mesmo estilo. Cada coisa no seu devido lugar.
Por exemplo, quando os comunistas colam cartazes estão a fazer uma tarefa política devidamente enquadrada, estão a comparecer ao jogo democrático. Mas não se ficam por aí. Por aí ficam-se os dentes postiços (perdão!), os socialistas.
Os comunistas não se iludem com o brilho das dentaduras postiças (perdão!), dos socialistas. Pois a democracia burguesa e parlamentar é uma ilusão, bem assim como os socialistas, as dentaduras postiças e os cartazes. Não sei se nos fazemos compreender.
O Mário “Camões” vendo que a conversa não ia dar a lado nenhum, contestou: “Quer dizer que os reacionários rasgam-nos os cartazes e nós vamos ficar quietos e calados como uns cobardes? É isso? Questiono! Vamos para aqui ficar a falar de dentaduras postiças, de socialistas e de olhos de vidro? É isso? Questiono!”
“Não, não é isso”, verbalizou calmamente o Graça. “Quer dizer que temos de discutir o assunto, denunciar a situação e agir em conformidade. Revolucionariamente quanto baste, mas não mais do que isso. E agir como um militante marxista-leninista é agir sempre em favor da revolução, mas também sempre devidamente enquadrado. Mesmo não parecendo. Hoje colamos cartazes, amanhã não sabemos se estamos a afixar cartazes ou de armas na mão a defender as mais amplas liberdades do nosso povo, entrincheirados na Serra do Brunheiro, como o Fidel e o Che estiveram na Sierra Maestra. Mas amanhã é muito tempo, por isso temos de nos concentrar nas tarefas imediatas.”
O Mário “Camões” tentou de novo pegar na palavra, como quem pega em armas, mas o camarada funcionário cortou cerce: “Agora quem fala sou eu. Vamos lá respeitar as hierarquias.” O Graça olhou para o luzeiro escorreito do Mário “Camões” e vendo-o a piscar como um semáforo na cor amarela, o que nele queria significar tormenta, tomou de novo a palavra e tentou temporizar: “Caro camarada funcionário, eu sei que as hierarquias são para ser respeitadas, mas também sei que o direito de cada camarada a expor a sua opinião é sagrado…”
Ao que o camarada funcionário, já visivelmente irritado, respondeu: “Aqui no Partido, a única coisa verdadeiramente sagrada é o centralismo democrático. E esta reunião tem todo o aspeto de ser um debate entre amigos, não uma reunião de intrépidos bolcheviques que honram o Partido acima de tudo, os seus órgãos, as suas orientações e decisões. E a verdade, verdadinha, é que o Partido já decidiu que a resposta a dar à provocação tem de passar pela redação de um comunicado ao nosso povo dando-lhe conta do sucedido, denunciando a provocação, apelando à unidade na ação entre as forças democráticas e de esquerda para combater a reação, o anticomunismo primário, o imperialismo, a exploração capitalista, os latifundiários, a burguesia contrarrevolucionária, denunciar o obscurantismo, o esquerdismo, o aventureirismo pequeno-burguês de fachada socialista e…”
“E o caralho que te foda”, disse o Mário “Camões” com o olho bem aberto e apontando o seu indicador direito como se fosse uma Mauser. “Então eles arrancam-nos os cartazes e nós limitamo-nos a redigir um comunicado a dizer para terem pena de nós? É isso? Vê-se logo que não te custaram a colar. Tu és bom a dar ordens. Mas nem um único cartaz te deste ao trabalho de colar. Limitaste-te a observar e a dizer se os devíamos inclinar mais para a direita ou para a esquerda.”
Ao que o camarada funcionário retorquiu com a verdade, pois só ela é verdadeiramente revolucionária: “E tu bem necessitaste da minha ajuda, senão os cartazes iam ficar todos tortos.” Ao que o Mário “Camões” respondeu: “E a quem é que isso interessava. Afinal era para serem arrancados!” E adiantou: “Além disso, posso ser zarolho mas não sou, nem consigo ser, cobarde.”
O Graça pôs-se então de pé e exigiu calma. Ele ainda era o controleiro. E exigia calma. E quando o Graça exigia calma o melhor a fazer era agir em conformidade. Todos o sabiam. Mesmo o Mário “Camões”, e inclusive o camarada funcionário. Quando a paz voltou ao espírito dos presentes, o Graça deu a palavra ao seu superior hierárquico.
“Sim, é isso. Eles arrancam-nos os cartazes, nós emitimos um comunicado e voltamos a colar os cartazes que nos rasgaram”, disse o camarada funcionário. “São essas as indicações do Partido. A paciência é uma virtude comunista. Uma grande virtude.”
“Tu chamas virtude à paciência. Eu chamo-lhe cobardia”, disse o Mário “Camões” com o peito repleto de coragem transmontana. No que foi coadjuvado pelo Carlos Chouriço que lembrou: “Não vês que para este banana até cagar e mijar são tarefas revolucionárias. Bonito comunista me saiu este funcionareco de província.”
“Razão têm os esquerdistas, este é um partido de revisionistas. Têm medo da reação. E o que é pior, têm medo da revolução. Para eles, a revolução faz-se a redigir comunicados que não interessam nem ao menino Jesus. E as armas? Quando se pega em armas para tomar o poder?”, disse em pose de Lenine o Mário “Camões”.
Logo de seguida, o Carlos Chouriço gritou: “Ou reação ou revolução. Caralho. Unidos venceremos. Nem mais um soldado para as colónias. O Povo está com o MFA. Abaixo a reação. Caralho. Abaixo a reação. Avante camarada, avante, junta…”
“Vamos lá por um ponto de ordem à mesa”, avisou o camarada funcionário. “Disciplina, ordem, respeito. Exijo respeito. E ordem. E disciplina. Não se esqueçam que estão no Centro de Trabalho, na casa dos comunistas. Aqui todos os militantes têm de respeitar os Estatutos do Partido. As decisões são tomadas em consenso. O coletivo é quem mais ordena.”
“Sim”, disse o Graça. “Vamos votar.” “Votar o quê?”, perguntou atrapalhado o funcionário. Ao que o José respondeu: “Votar ou na proposta de redigir um comunicado e de voltar a colar os cartazes ou…” Ao que o camarada funcionário replicou: “Que eu saiba não há mais nenhuma proposta em cima da mesa.” “Não há mais vai haver”, disse o Carlos Chouriço. “Proponho que devemos pegar em armas e ir para o Brunheiro, imediatamente e em toda a força.”
O Mário “Camões”, por seu lado, alvitrou: “Eu proponho que levemos à prática as diretrizes do camarada Talião, deixando cair, no entanto, a parte do “dente por dente”, para poupar os socialistas, mas respeitando na íntegra tudo o que diz respeito ao “olho por olho”, para foder a reação.
Desesperado, o camarada funcionário desabafou: “Não há pior cego do que aquele que não quer ver.” Ao que o Mário “Camões”, sentindo-se coagido, perseguido e gozado, respondeu: “Posso ser zarolho, mas não sou cego. Nem sou cobarde.” E já ia para ele de broxa em riste quando o Graça se interpôs e lhe deu um murro certo no sítio devido que o deitou ao chão. Depois de lhe pedir desculpa, ajudou-o a levantar-se e disse-lhe que ou acatava a decisão do Partido ou tinha de se ir embora.
“E qual é a decisão da Partido?”, perguntou o Carlos Chouriço, fazendo-se de ingénuo. Ao que o Graça objetou pesaroso: “Redigir um comunicado e voltar a colar os cartazes.”
“Com tarefas revolucionárias dessa envergadura, o povo português bem pode esperar sentado pela revolução”, avisou o Carlos Chouriço. Ao que o José juntou: “Só a verdade é revolucionária.”
E o Graça visivelmente desalentado: “Também tu, José. Também tu me atraiçoas.” O Mário “Camões”, visivelmente abalado, virando-se para o Carlos Chouriço, disse: “Vamos embora que esta revolução não é a nossa. Ninguém faz uma revolução a colar cartazes e a redigir comunicados. E fiquem sabendo os do Comité Central que a nossa revolução é mais bonita do que a vossa, ou a deles ou a de quem quer que seja e…”