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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Out12

O Poema Infinito (115): arrefecimento

João Madureira


Caminho por entre as orquídeas saboreando a minha imensidão mamífera, tocando ao de leve as atuais paisagens que estão impressas no meu sonho. E carrego o sangue do meu espanto animal e tremo dentro da minha aura azul e equilibro-me respirando por um buraco rápido. Desta vez transpiro luz e a minha pele está transparente e o ar é uma película que se mexe no limiar da casa. E a casa alaga-se. E a casa desdobra-se de baixo para cima. E geme. No jardim, as abelhas fervilham dentro da sua imensidão de ouro e mel. Dentro da minha cabeça o som do tempo ferve. As nervuras das orquídeas respiram as longas vozes do amor. E as sombras apaixonam-se pela brancura das paredes que desaguam nas minhas mãos. A vegetação ressurge por cima das vozes dos loucos. Aranhas de prata cruzam com delicadeza as teias e atravessam as imagens minuciosas condensando o seu clarão atormentado. Com a minha cabeça arqueada multiplico o delírio da vida e dela nascem flores de pétalas vingativas. O silêncio desarruma-se e os insetos refratam-se. O sono é outra barreira. Na alvorada que aparece por detrás de mim o som dos círculos torna-se plano. A manhã porosa remanesce e abrasa-se. A água explode lívida. A lentidão aflige a carne. Barcos de papel carregam o álcool que se transforma em doce veneno. Sou novamente carnívoro. E exalto. Mas as linhas do esquecimento pulsam de novo dentro da minha imaginação e transformam-se em mais imagens implacáveis. Os meus pés descalços tocam a folhagem. Todo o esplendor é obsessivo, por isso se espalha em curvas brancas. O tempo cai e por isso fica sem espaço. E o espaço que resta agoniza e freme. Uma sonolência vibrante toma conta de mim. É a loucura que me invade com a sua auréola selvagem. Desdobro-me entre o plano da escuridão e o plano da luz. Deus explode na paisagem. Um terror branco toma conta do tempo e do mundo. E o texto que escrevo respira e sufoca dentro da sua aterradora delicadeza. A velocidade dos olhares afoga-nos com a sua sintaxe colorida e redonda. Tudo me ameaça. Sou de novo uma paisagem animal onde ficam impressos todos os sentimentos. Beijas-me com a tua doçura relampejante. Ferves-me na boca por causa da geometria obstinada das estrelas. As salas ordenam-se e recompõem-se dentro da sua lógica idiomática. Uma luz rara avança pelos jardins da memória. Dizem que a morte é uma longa tristeza de seda. Daí a sua energia de vírgulas. A minha tristeza deita-se com os jacintos. Eu chamo pelos meus mortos que estão impressos nos retratos reclinados a sépia. Os seus olhos são agora pontos noturnos liquefeitos na sua cor de pausa eterna. O meu olhar encosta-se à janela e suspira como um cavalo louco. A vida é sempre alterosa. A morte é sempre a transfiguração para o nada. Por isso sento-me em cima do meu tempo e adormeço dentro do meu sonho onde tudo arrefece: a voz, os enigmas, os sorrisos, a ligeireza das casas, o espaço, o sorriso das crianças, a atenção inerte dos espelhos, a infância que queima, a música lúgubre das glicínias, o vento, o sol, a matéria das almas, tudo aquilo que é sagrado, a velocidade do desejo, todos os nomes que nos são queridos, a inocência, a espuma dos dias, as canções de amor, os cheiros intensos, a energia rápida, os segredos, os instantes imortais, os gritos de prazer, o vapor leve da chuva, os rostos amados, os rostos amados, os rostos… e os olhares.

08
Out12

Pérolas e diamantes (6): desgraça

João Madureira

 

Lá fora chove e o vento faz abanar os ramos e as folhas das árvores. O céu está cinzento, bem da cor da nossa tristeza e da nossa desilusão. O país esgota-se. O governo geme e titubeia nos conselhos de ministros. O primeiro-ministro carpe razões e desilusões.

 

Eu fecho os olhos e na minha memória surge, repentina e dolorosamente, a imagem de Pedro Passos Coelho a declarar ao país mais medidas de austeridade, como quem se vinga do Estado, dos portugueses e, muito especialmente, dos funcionários públicos.

 

É já público e notório que o nosso primeiro-ministro gosta tanto dos trabalhadores do Estado como Hitler simpatizava com os judeus, os ciganos e os homossexuais. E isso nota-se quando fala deles, quando os acusa de todos os males do país. Quando os persegue com impostos e mais impostos e desemprego e ameaças de despedimentos e de cortes e mais cortes.

 

E corta nos salários, aumenta o IRS, o IVA, o IMI, e mais IRS, mais IMI e mais IRS. E ainda mais IRS e mais um corte nos salários e outro nos subsídios. E mais uma taxa moderadora na Saúde.

 

E mais um aumento dos combustíveis. E da eletricidade. E mais um imposto de selo. E mais um ajuste no IRS e mais uma diminuição dos salários e mais um corte nas despesas com a Saúde e mais outro corte nas despesas com a Educação e outro corte nos subsídios. E nova subida no IRS.

 

E depois diz-nos, com um ar entre o vingativo e o gozador, que tanto corte e tanto imposto ainda não chegam. Há que fazer mais cortes. Há que cortar mais qualquer coisinha nos salários e nos subsídios. E ainda é necessário aumentar novamente a taxa do IRS.

 

E o homem não se cansa de cortar e de aumentar os impostos enquanto reduz tudo a zero, até a esperança dos portugueses. E promete, com cara de sádico, que ainda vão ser necessários mais cortes nos salários, nos subsídios e mais uma subida das taxas de IRS. Nunca sabe quando deve parar.

 

Passos Coelho não sabe gerir, não sabe administrar, não sabe governar. Apenas sabe cortar os salários e aumentar os impostos, até não haver mais salários, emprego e riqueza disponível para ninguém. E lá vai mais um aumento das taxas do IRS.

 

Mas uma coisa temos de lhe reconhecer, nunca nenhum governo em Portugal conseguiu unir contra a sua política todos os setores políticos e sociais.

 

O executivo de Passos Coelho tem contra si a maior parte do PSD, o CDS, o PS, o PCP, o BE, os sindicatos, os patrões, os médicos, os professores, os trabalhadores do setor privado, os trabalhadores do setor público, o presidente da República, o Conselho de Estado, os comerciantes, os capitalistas, os proletários e mesmo os bispos e os padres. E até o professor Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes. Acho que melhor é impossível.

 

A tentativa da subida da TSU foi óbvia, quis colocar patrões contra empregados e o povo em geral contra os funcionários públicos. Mas a porca sai-lhe mal capada. Afinal o país levantou-se contra a sua prepotência pueril e contra a sua arrogância neoliberal.

 

As pessoas estão indignadas, frustradas, ou, como diz o nosso povo, fodidas da vida, desesperadas, claro que pelos sacrifícios que lhe são pedidos, mas, sobretudo, e acima de tudo, pela falta de consideração com que têm sido tratadas pelo bando de néscios que nos governa.

 

O povo português detesta este governo porque abomina os chicos espertos que dele fazem parte, porque detesta que se façam de parvos como quando o Tribunal Constitucional disse para distribuir os sacrifícios equitativamente pelos portugueses e o governo atacou com mais cortes nos pensionistas e na função pública e resolveu mesmo ceifar um subsídio aos trabalhadores do setor privado.

 

Além disso, este novo Pinóquio de ferro oxidável que chefia o governo português prometeu, sorrindo como as hienas, que 2013 era já um ano de recuperação quando, pelos números já divulgados, é mais um ano de desastre e afundamento do país. 

 

O governo de Pedro Passos Coelho propagandeou aos sete ventos que a sua tarefa primordial era atacar o défice, pôr as contas em dia e as finanças em ordem. Daí o perfil exclusivamente técnico do seu ministro Vítor Gaspar. Mas a primeira conclusão a tirar deste ano e meio de governação é que a competência técnica foi para o galheiro, resultando apenas da sua política o afundamento da economia e o aumento assustador do défice.

 

Afinal as contas continuam como dantes. Exatamente como dantes. E para onde foi o dinheiro dos cortes? Onde foram metidos os impostos conseguidos com o suor e o trabalho dos portugueses? Para quê tantos sacrifícios se sem eles estaríamos na mesma, ou mesmo um pouco melhor?

 

De facto, o governo de Pedro Passos Coelho tecnicamente é um verdadeiro desastre e a nível político é uma ignomínia, muito próxima da ideologia conservadora e protofascista.

 

O país desmorona-se e Pedro Passos Coelho só nos consegue irritar ainda mais. Será isto loucura? Ele continua a dizer que apenas tenta equilibrar as contas públicas. E até admite que o está a fazer à custa do sacrifício de milhões de portugueses. E até se cala quando o acusam de insensibilidade e ineficácia. E sorri sibilinamente quando lhe lembram que todas as medidas de austeridade são de uma ineficácia de bradar aos céus.

 

Mas tornamos a perguntar incrédulos: Será isto loucura ou desvario? Não, não o é. Pedro Passos Coelho pretende vingar-se do Estado, sobretudo do Estado Social, que detesta e pretende destroçar a todo o custo. O primeiro-ministro está bem mais à direita do que o CDS. Paulo Portas comparado com ele parece o Francisco Louçã ao pé do José Sócrates.

 

Passos Coelho, em conjunto com Merkel e toda a elite neoliberal, pretendem alterar os valores cívicos e civilizacionais com que foi criada a Europa do pós-guerra e na qual nos integramos depois do 25 de Abril.

 

Não, desiludamo-nos, o homem não age desta forma apenas por ignorância, impreparação ou incapacidade. Ele e todos os seus cobradores do fraque querem alterar o paradigma económico e social português. A economia acima de tudo. E com esse fim não se coíbem de destruir o país.

 

Por isso falam no “processo de ajustamento em curso” da nossa economia, baseado em emprego precário e mal pago, em trabalho sem direitos, em pequenas empresas falidas e na destruição da nossa periclitante classe média.

 

O objetivo é, finalizado o “ajustamento”, qual bomba de neutrões económica, restarem em Portugal apenas as grandes empresas financeiras e os antigos e diversos monopólios de má memória, lucrando com os baixos salários praticados, com uma bolsa enorme de emigrantes ou desempregados prontos a trabalhar por umas cascas de alho e sem nenhuns direitos ou condições.

 

Por isso é que, estranhamente ou não, Pedro Passos Coelho não ligou patavina ao artigo da revista britânica conservadora “The Economist” onde se diz que Portugal passou de “aluno modelo” a “exemplo dos perigos” do excesso de austeridade.

 

O artigo intitulado “Quanta austeridade é demasiada austeridade?” frisa que Pedro Passos Coelho “parece ter levado as reformas além do limite considerado aceitável por larga parte do eleitorado”.

 

Agora todos sabemos que o homem só descansa quando entregar isto aos brita-ossos do capital. Pedro Passos Coelho acredita que Portugal só tem futuro como um país do terceiro mundo. Ora esse não é futuro nenhum.

 

O governo de Passos Coelho não é um grupo de pessoas competentes e sérias. É, e por muito que nos custe dizê-lo, um atraso de vida. E já todos o pressentimos: o nosso futuro não passa por aí. Urge arranjar uma alternativa válida e consistente. É que Portugal apaga-se como uma vela na corrente de ar. Temos de conseguir fechar a porta por onde nos invade a desgraça. 

05
Out12

O Homem Sem Memória - 128

João Madureira


128 – Ora aqui estamos de novo para vos dar conta da tal conversa filosófica. E até algo mais, se for necessário.


Depois de enfiarem os pincéis nos baldes e de recolher nas respetivas latas a tinta que sobrou, dirigiram-se ao Centro de Trabalho e aí encontraram o funcionário comunista colérico porque tinha acabado de ser informado que um bando de rapazes encapuzados tinha vandalizado todos os cartazes do Partido. O José lembrou-lhe que também os cartazes dos outros partidos tinham igualmente sido rasgados ou arrancados.


“A mim não me interessam os cartazes dos partidos reacionários. Apenas me preocupam os nossos. Algum de vós tem ideia de quem possa ter sido?”


Os elementos da célula de agitprop tiveram de mentir, o que muito lhes custou, mas admitir a sua participação na razia de cartazes era grave de mais para ser sequer admitida como hipótese. Por isso tentaram desviar as atenções e passaram a culpa aos anarquistas.


“Mas em Névoa não há um único anarquista”, limitou-se o funcionário a admitir o óbvio.


“Isso é o que parece, esqueceste que os anarquistas são muito manhosos. São gente do escuro, da noite, rapaziada que gosta de brincar com tudo, até com a política. Vivem permanentemente na clandestinidade. Eles querem é destruir o Estado. Para esta gente tanto se lhes dá o fascismo, como o comunismo, o socialismo ou a democracia burguesa. Onde existir o Estado aí reside o seu inimigo. Por isso não é de admirar que tenham rasgado todos os cartazes de todos os partidos e escrito nas paredes do Liceu que a virgindade provoca o cancro e outras estupidezes do género, aconselhando as raparigas a vacinarem-se”, disse o Graça para despistar.


Temos de admitir que o Graça era tão bom a dizer a verdade como a mentir. Por isso tinha todas as condições para ser político. Ou melhor, possuía a característica essencial para ser um alto dirigente partidário. Pois quem diz a verdade que parece, e é, uma verdade, é igual a toda a gente vulgar e corrente. Já quem mente e convence os outros de que diz a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, é um eleito, pois tal predicado é apenas intrínseco aos grandes líderes.


“Quais anarquistas, qual caralho, aqui anda a mão da reação. Só os reacionários são capazes de arrancar os nossos cartazes e a seguir arrancar os outros para disfarçar. Já que os nossos são muito melhores do que os deles, muito mais conseguidos, com outra qualidade artística, com outro nível ideológico, com outra eficácia política”, disse enquanto se babava de entusiasmo o funcionário. E avisou a célula: “Preparai-vos para amanhã, pois nova tarefa revolucionária se avizinha. Mais uma vez vamos inundar as paredes de Névoa com os nossos cartazes, com a nossa mensagem revolucionária. Então, até amanhã camaradas”, terminou sorrindo e citando o título da obra do dirigente de cristal.


Quando o camarada funcionário viu toda a célula comunista da agitprop de Névoa a destroçar, perguntou-lhes se iam ainda a algum lado. O Graça, com a calma de quem diz a verdade, e nada mais do que a verdade, mentiu-lhe: “Já é tarde, por isso vamos todos para a caminha descansar que amanhã vai ser um longo dia a preparar os panos, a fazer a cola, a recolher os placares que vêm do Porto, a misturar tintas, a lavar pincéis, a estudar palavras de ordem, a discutir o editorial de A Verdade e a definir as paredes estratégicas que temos de escolher para colar os nossos cartazes.”


“Tanto cartaz, tanto caralho”, desabafou o Mário “Camões” com o olho de vidro fixo na noite e o bom apontado caras ao Graça. “Já estou farto de colar cartazes e pintar paredes. Penso que as pessoas não ligam nada a isso.” Ao que o José retorquiu, com um pouquinho de ironia: “Existem muitas formas de fazer uma revolução, colar cartazes é a nossa. É a via para o socialismo lusitano. É aí que reside a originalidade da revolução portuguesa, tão elogiada lá fora.”


“Estás a gozar comigo não estás?”, perguntou o Mário “Camões”. Ao que o Graça respondeu como dirigente: “Não, ele está a gozar com a revolução. O José é um poço de ironia.”


Já a noite ia bem comprida, e eles em volta de uma travessa de costelinhas fritas e de uma caneca de vinho tinto, quando o Graça começou a explicar ao Mário “Camões” a relação entre a virgindade e a Virgem Maria.


“A virgindade é a modos que um sexo, neste caso feminino, que nunca foi utilizado com esse fim”, explicou o Graça. Ao que o Mário Camões, na sua infinita ingenuidade, perguntou: “Qual fim?” “Pois, que não foi utilizado para procriar.” “Pois…” “No caso das fêmeas, a virgindade está relacionada com um membrana que quando um homem introduz o seu pénis na vagina de uma mulher, seja ela de que raça, cor, ideologia, condição social ou religiosa for, rasga-se e sangra. Depois disso nunca mais é virgem, independentemente da cor, religião, raça, ideologia, classe social, ou orientação religiosa. Isto que fique bem claro. Ora, vem na Bíblia que a Virgem Maria concebeu sem pecado, que o mesmo é dizer que engravidou sem que tivesse tido relações sexuais, sem que tivesse sido fecundada pelo método natural onde o pénis entra onde deve entrar, faz o que tem a fazer, ejacula e vai à sua vida. Foi a partir daí que ligaram o conceito à condição virgem da mãe de Cristo e arranjaram palavras para separar a função sexual do prazer, pois a mãe do filho de Deus não podia fazer as coisas de maneira natural. Pois se as fizesse não podia ser virgem, Deus não podia ser pai, José perdia a honra e Cristo a sua auréola celeste. Fácil é de concluir que o que vem na Bíblia é um imbróglio dos diabos: Maria engravida virgem, Deus fecunda apenas com a sua palavra, José assiste a tudo isto sem ter sido tido nem achado e Cristo nasce de forma natural, ou seja por uma vagina onde nada penetrou. Temos de convir que tal façanha não é nada fácil de admitir, por isso lhe chamam milagre. Eu penso que o maior milagre não está na circunstância de Deus ter feito o que fez, mas antes no facto de milhões de pessoas acreditarem nisso. Pois quem acredita num tal dogma, está pronto para acreditar em qualquer coisa. E ainda dizem que o Homem é um ser racional.”


O Mário “Camões”, já à beira das lágrimas, não pela história, pois não era muito dado a acreditar em coisas tão elaboradas, mas por causa da pinga, que lhe puxava ao sentimento, balbuciou: “A ser como tu contas, lá milagre é. E dos grandes. Não tenho conhecimento de outro que se lhe compare. E Deus é mesmo muito sério e determinado: fez um filho e nunca mais se aventurou a repetir a proeza. Como homem de palavra, disse uma vez uma coisa, agiu em conformidade e não repetiu a dose. Se isso é verdade quero ir para padre. O comunismo não faz dessas coisas. É só lutas de classes para aqui, proletários para ali, revolução para acolá e cartazes para colar a toda a hora, mas de transcendente não tem nada. Não tem encanto nenhum. É tudo muito fatigante.” E começou a chorar.


Podemos informar os estimados leitores que a guerra dos cartazes ainda continuou por mais algumas semanas, sempre com o mesmo frenesim, a mesma prática e a mesma conclusão. Apenas abrandou com o começo das aulas, pois a juventude tinha também que se instruir. Isto apesar dos comunistas considerarem que talvez este fosse o momento adequado para fechar durante um ano inteiro os estabelecimentos de ensino, para se repensar o sistema educativo, e durante todo esse tempo o povo se dedicar por inteiro a fazer a revolução, transformando os campos e as fábricas em motores de uma nova sociedade sem explorados nem exploradores, numa sociedade fraterna e solidária. O resto logo se veria. 

03
Out12

O Poema Infinito (114): a lucidez das pequenas coisas

João Madureira


Apreendo a substância noturna das palavras voltando a ti pelo lado da sombra. Por isso as palavras existem e consomem-se e consomem-nos. Por isso o tempo coincide com a nossa sede de branco absoluto. O universo torna-se visceral, vertebral e vertical. Todo o gesto culmina na sua densidade de ave de fogo e os espelhos jogam primitivamente, e para sempre, a sua fidelidade à matéria. Torres de fumo coincidem com a época da ignorância. Por isso perdemos a idade e o fervor da alegria. Agora sabemos o sabor da tristeza. E a tristeza é uma inclinação lúcida. Tão lúcida como a loucura dos mártires. Por isso nos entregamos um ao outro com a fúria da ilusão. E oferecemo-nos em paz. E em paz nos glorificamos. Uma transparência incandescente sobe-nos pela garganta. O tempo todo ilumina a inocência. E o passado ascende sobre o nosso peito como se fosse o núcleo vago da vida. Deitados sobre pedras talhadas por raízes estremecemos com a passagem do vento. A terra volta a ser uma proteção.  Uma música de árvores coloridas molda-nos os membros. Deus respira sobre nós como se nos quisesse aquecer. As palavras adormecidas nos livros antigos começam a vibrar. O vazio grita. Toda a ciência é um rumor visível. Deus escolheu-a para nos eliminar. E por isso fez o silêncio. E do silêncio fez o princípio da vida e a origem da angústia. Sobrevivo ainda porque olhas para mim com toda a reserva acolhedora da confiança. A minha linguagem é um agradecimento a isso. Apenas a ti faço confidências puras. Só a ti. E escrevo porque essa é a condição objetiva de te encontrar. Deus é agora um universo mudo de ausência. E a sua ausência é uma infinita brancura irremediavelmente separada e vazia. Nós somos quem espera pela iminência do seu desencontro. As palavras esquecidas caem agora ao chão. Um poema pequenino nasce dentro da sua forma simples de esplendor. As nossas mãos tremem como folhas de uma árvore ávida. O desejo é um ardor silencioso que se liberta em gestos flamejantes. O amor de Deus tornou-se ilegível. A sua liberdade é um desejo escuro. Os raios de sol ardem quando nos transformam a pele. A consciência humana explode. E as palavras transformam-se em gritos. E os gritos tornam-se círculos abertos de abandono. Apenas dele resta a eminência efémera do abandono. O abandono das coisas amadas. O abandono do desígnio divino. O esplendor do nada.  A fragilidade humana atinge-me como um desencontro mortal. Eu estou dentro da tua nudez. Eu estou completamente dentro da tua mortalidade. Da minha mortalidade. Do vazio. Desejar-te é a unidade íntima do amor. Por isso crio espaços com a densidade das palavras. E as palavras sopram círculos abertos. Densos círculos de lentidão. As perguntas brilham dentro de ti. As imagens respiram. Continuar a viver só é possível dentro da unidade com que me cicias palavras à velocidade do amor. Continuas a ser a minha profecia iluminada. Por isso o poema infinito continua a atravessar o resultado absoluto da existência. As imagens incendeiam-se. A visão suspende-se. Uma luz invisível olha-nos como se fossemos uma serena plenitude. A surpresa de um corpo dentro de outro corpo é agora acessível. É essa a lucidez das pequenas coisas. 

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    12. N
    13. D

A Li(n)gar