133 – Quando José relatou o sucedido aos camaradas, eles limitaram-se a censurar-lhe o medo e a desvalorizar os sinais. A terra podia ser um antro de reacionários, mas aquela não era gente com coragem suficiente para se meter com o Partido e os seus militantes mais distintos. “Eles que se atrevam a molestar-nos que logo ficam a saber do que somos capazes. Os comunistas não têm medo de nada nem de ninguém. Era o que mais faltava! Nós enfrentámos, durante a longa noite fascista, as forças policiais e repressivas, a PIDE e o Salazar. Enfrentámo-los e vencemos. Não são agora meia dúzia de matarruanos que nos amedrontam ou que nos limitam no nosso direito sagrado a fazer política.”
Depois de mais uma tarefa revolucionária concluída, foram jantar a um dos poucos restaurantes que se encontravam abertos. O dono serviu-lhes de forma neutra umas ousadas costeletas de vitela com batata cozida e vinho da casa. Entretanto escureceu. Quando se preparavam para pedir o café, uma valente pedrada contra a porta do restaurante fê-los saltar das cadeiras. Todos ficaram em silêncio, menos o patrão da casa que lhes serviu o café com o pedido de que pagassem rápido e se fossem embora o mais depressa possível. Informou-os de que um grupo de pessoas se dirigia para a salão onde se ia realizar o comício munidos de varapaus, seitouras, enxadas, forquilhas, engaços, algumas pistolas e uma que outra caçadeira. O propósito não era pacífico. A reação estava alerta e organizada.
“Vão-se embora antes que eles deem cabo do meu restaurante”, pediu-lhes. “Vocês deviam saber que por aqui os comunistas não são bem-vindos. Cá na terra, até os socialistas são molestados e perseguidos. Vão-se embora enquanto é tempo.”
O camarada de Vila Real foi taxativo: “Não podemos fugir. Vem aí a Maria Tenrinha para fazer o comício. Ela é membro do Comité Central. O que iria pensar de nós? Que somos cobardes? Um comunista nunca vira a cara à luta.”
Nova pedrada embateu em cheio na porta do restaurante. De seguida ouviu-se um grito: “Morte aos comunistas.” Logo depois ouviu-se uma saraivada de sons de ferros e paus a bater com força no empedrado da rua. O dono do restaurante começou a desligar as luzes e encaminhou-os para uma saída lateral. “Fujam, que ainda há tempo”, disse-lhes em jeito de despedida.
Na rua, dirigiram-se apressados ao salão, mas não se atreveram a entrar. Do lado de fora, uma multidão furiosa ululava e batia no chão com varapaus, aguilhadas e vários utensílios agrícolas. “Morte ao comunismo. Comunistas para a Sibéria”, bradavam excitados os homens. “Assassinos”, gritavam desvairadas as mulheres.
Por muita coragem que tivesse aquela meia dúzia de intrépidos militantes comunistas, o ar assanhado da população era um enorme dissuasor de qualquer propósito que não fosse abandonar Ribeira de Pena com a organização necessária. E quanto mais depressa melhor. O camarada dirigente de Vila Real ainda ensaiou uma derradeira solução. Como a entrada do salão estava bloqueada, resolveu dirigir-se ao posto de GNR para pedir proteção e apoio. A liberdade de expressão era um direito, e uma conquista, da revolução democrática e nacional. Ninguém podia coagir ou tentar proibir os comunistas de divulgar as suas ideias e propalar os seus ideais. Além disso, a GNR, como força da ordem, tinha o dever de os proteger e de impor o respeito pelas mais amplas liberdades. A sua missão consistia em fazer vingar o princípio da coexistência pacífica entre a população e os diferentes partidos políticos.
“Vamos ao posto da GNR exigir-lhes que dispersem os reacionários para que possamos fazer o nosso comício”, disse com cara de caso o camarada de Vila Real. “Anda daí comigo José, o teu pai não é da GNR? Anda, vai lá falar com eles, enquanto eu fico a guardar os carros.” “Eu vou lá mas só se tu fores também. Eu sou apenas um militante de base, enquanto tu és dirigente. Quem tem as credenciais és tu. O Aníbal fica aqui a guardar os carros. Ele e os outros. A Catarina vem connosco.”
O Aníbal, apercebendo-se da trovoada que se estava a preparar sugeriu que fossem todos ao posto da GNR e nos carros. Estacionados perto do posto estavam a salvo.
Quando chegaram ao posto, encontraram o plantão a fechar as portadas das janelas, o portão da rua e a aferrolhar por dentro a entrada.
“Por favor, por favor, ajude-nos. Os reacionários não nos deixam entrar no salão onde vai ter lugar o comício do Partido. Mande uma patrulha lá acima por ordem naquilo”, exigiu o camarada dirigente de Vila Real.
O soldado da GNR olhou para ele com todo o desprezo do mundo e disse-lhe que a patrulha tinha ido tomar conta de uma ocorrência numa aldeia do concelho.
“Então chame o cabo.” “O cabo foi-se deitar.” “Às nove da noite?” “Está doente.” “Então chame o sargento, pois o caso é grave e pode trazer consequências.” “O nosso sargento foi passar o fim de semana a casa.” “Então e os outros guardas?” “Os outros guardas foram gozar o seu dia de folga. Eles também têm mulher e filhos.” “E então nós?” “Desenrascam-se como puderem.” “Mas somos meia dúzia de pessoas. Não podemos com aquela gente toda.” “Quem bem faz a cama bem se deita nela. Boa noite.” E mais nada disse o plantão da GNR. Bateu com a porta, deu duas voltas à chave e desapareceu deixando-os ali no meio da rua com cara de incrédulos. (Íamos para escrever cara de estúpidos, mas, como todos sabemos, os comunistas podem ter cara de tudo, menos de estúpidos. Oferecemos as antigas e saudosas obras completas de Lenine, da Novosti, em espanhol de lei, e ainda novinhas em folha, a quem nos provar o contrário.)
“Não acredito”, disse o camarada dirigente de Vila Real. “A GNR em vez de nos proteger abandona-nos à nossa sorte.” A camarada Catarina, com a sua lucidez feminina, disse: “O melhor é irmos embora enquanto podemos e lá em cima esperar pela camarada Maria Tenrinha e avisá-la de que o comício não se pode realizar por falta de segurança.”
Uma parte da multidão começou a descer a rua de encontro aos camaradas batendo com os paus no chão como se estivessem a afugentar cobras ou a espantar javalis. Jovens de moto começaram a fazer-lhes tangentes e a insultá-los.
“Vamos embora”, ordenou o camarada dirigente. Encontrámo-nos lá em cima na estrada que liga a Vila Pouca. E ninguém para. Quem se meter à frente é reacionário morto.
Quando se enfiaram nos carros, já a multidão os tinham cercado. Enquanto batiam nos viros e na chapa do carro com o que tinham à mão, insultavam-nos de tudo: “Filhos da puta, comunistas do caralho, assassinos, ladrões, papantes.”
Dentro do carro, o José, virando-se para o Aníbal, quase em lágrimas, perguntou: “Porque será que o nosso povo é tão reacionário. Será que não enxerga que quem os defende somos nós, os comunistas. Por que razão nos odeiam tanto?” “Não ligues. O povo não presta.” “Como podes dizer isso, sendo tu comunista?” “Sempre é melhor do que pensar que quem não presta somos nós.” “Que terrível dilema: Nós defendemos o povo e o povo é contra nós.” “Lá terá as suas razões…”, mas não acabou a frase pois teve de travar de repente para não atropelar uma mulher idosa que com uma forquilha em punho se meteu à frente do carro para o picar como o fazia aos animais bravos.
“O camarada de Vila Real disse que não devíamos parar. Quem se atravessar à frente morre.” “Quem morre somos nós se atropelarmos alguém,” argumentou com muita sapiência o Aníbal.
Um pouco mais adiante, o outro veículo dirigia-se com velocidade variável em direção ao cordão humano de homens mulheres que gritavam impropérios e agitavam toda a espécie de ferramentas agrícolas. Adivinhava-se uma tragédia, pois nem o carro abrandava nem a barreira humana abria qualquer brecha.
“Vamo-nos foder todos por causa daquele maluco. Se pensa que pode atropelar alguém e sair daqui incólume é bem mais maluco do que eu imaginava”, comentou o Aníbal. “Que Deus nos ajude neste momento tão delicado”, desabafou o José. “Tu ainda és católico?” “É apenas uma força de expressão.” “Com a verdade me enganas.” “Segue o carro da frente e não traves.” “Posso não ser lá grande comunista, mas decididamente não sou louco.” “Depois de ele matar alguém, o seu destino será o nosso destino.”
Milagrosamente a muralha humana abriu uma frincha quase no momento da colisão.
Estavam os intrépidos e decididos marxistas-leninistas transmontanos a acelerar por ali acima quando o automóvel da Maria Tenrinha passou por eles sem se ter apercebido que eram os seus camaradas quem abandonava Ribeira de Pena para não serem trucidados. Quando, um pouco mais adiante, pararam os veículos, discutiram se deviam ou não ir atrás da camarada do Comité Central, para a salvarem.
Meterem-se no vespeiro era morte certa, mas abandonar a camarada era uma cobardia, um ato indigno de comunistas revolucionários. Enquanto discutiam, apareceu o carro de um camarada de Névoa que em boa hora tinha decidido ir assistir ao comício. Vendo-os parados, parou também e perguntou-lhes o que faziam ali imóveis no meio da serra.
Depois de o informarem sumariamente do ocorrido, resolveram que o melhor era o camarada ir a Ribeira de Pena disfarçado de turista e tentar avisar a Maria Tenrinha do sucedido. Para o efeito teve de arrancar os cartazes dos vidros e das portas da viatura e desfazer-se de toda a iconografia comunista que nela transportava.
Quando lá chegou, já a camarada Maria Tenrinha tinha sido agredida e, com um olho negro e um joelho inchado, ia agora a caminho do hospital de Vila Real.
No hospital, a camarada do Comité Central, enquanto era observada e lhe faziam o curativo, contou aos camaradas que a rodeavam que vendo tanta gente junta dirigiu-se-lhes e que de imediato foi agredida, ainda antes de ter perguntado onde ficava o salão do comício do Partido. “Ai tu é que és a Maria Tenrinha?”, questionou-a um popular. “Aqui as bruxas comunistas levam porrada até lhes sair a ronha.” Já o pau estava a descer na direção da sua cabeça quando ela sacou de um spray de defesa pessoal e o disparou bem na direção dos olhos daqueles que pretendiam agredi-la. Mesmo assim foi atingida por vários murros e um que outro pontapé. Ato contínuo, os dois camaradas seguranças pegaram-lhe com determinação, enfiaram-na no carro e levaram-na dali com toda a velocidade que o carro permitia.
Como a camarada do Comité Central era a companheira de outro camarada do Comité Central que tinha seu cargo as tarefas de organização e controle da segurança do Partido, logo na manhã seguinte telefonou ao governador civil de Vila Real, para se queixar da vergonhosa atuação da GNR, cuja jurisdição estava a cargo do representante do governo no distrito, e para o avisar que no fim-de-semana seguinte Ribeira de Pena ia assistir ao maior comício da sua existência enquanto vila.
E assim foi. Centenas de carros, camionetas, motas e autocarros transportando milhares de simpatizantes e militantes comunistas entupiram a estrada que ligava Vila Pouca a Ribeira de Pena agitando bandeiras com a foice e o martelo, buzinando sem parar e gritando palavras de ordem até ficarem roucos.
Os mesmos populares que no dia anterior se tinham engalfinhado contra a Maria Tenrinha e os seus companheiros, desta vez juntaram-se aos camaradas e comportaram-se como se fossem comunistas de toda a vida.
José lembrou-se do ditado popular: Se não podes com eles junta-te a eles. O povo é mesmo assim, como as giestas no monte, afaz-se ao sentido do vento.