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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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30
Jan13

O Poema Infinito (131): o enigma da luz e do desejo

João Madureira


Espero muito quieto que as palavras resolvam a súbita metamorfose da ferocidade que se acendeu nos teus olhos. Os animais respiram a luz imensa do dia e exalam constelações e escondem os corpos que respiram dédalos de ansiedade. Palavras adolescentes vão colorindo os sorrisos e os amantes alcançam a visão perfeita do apocalipse. As palavras ciciadas são a janela que permite uma visão perfeita para o início. Toda a vida é uma grafia de águas amnióticas. As crianças gatafunham as suas folhas com cores amargas. E sorriem. E eu regresso a casa onde a humidade faz o seu caminho de descomposição. Morcegos dispersam-se emaranhados nos seus voos devassos. O silêncio derrete-se. A loucura derrete-se. E a morte entorpece o meu olhar no instante em que revejo o caminho do tempo. O teu rosto não me engana. Suponho que vai amanhecer de novo. Sou eu quem inventa o teu sono, quem te segreda a colheita e a apologia dos sonhos. O mundo continua a expelir todos os desastres possíveis. E eu recolho na concha das minhas mãos as lágrimas dos que sofrem. A cama conhece a memória do teu corpo. Por isso o tempo da tua ausência é ainda mais demorado. O amor desenvolve-se agora pelo cheiro a giestas verdes. E a noite, quando vem, traz novamente o esquecimento da voz. Persigo-te com as mãos abertas no vácuo onde o teu rosto se revela como uma fotografia de claridade. Os objetos ficam com o seu interior sombrio. Alguém canta dentro da minha cabeça uma canção de abandono. O nosso sonho é invadido pela sede e pelo desejo. A noite cai em cima das flores como se não as amasse. E as flores dobram-se dentro da sua cor. No céu uma utopia de ave arrisca um voo de morte. A noite pertence ao seu fulcro. Esta é a hora das alucinações, onde se derrama o sémen à velocidade do desejo. E o desejo grita. E o desejo finge que abranda. Lentamente, os meus dedos aperfeiçoam a arte do afago e param quando sussurras. Então deslizo pelo denso espaço das tuas coxas com a mobilidade dos aflitos. Este silêncio não se consegue escrever. De repente, os dedos escavam um sexo numa espiral infindável de dádiva. Posso distinguir o teu corpo pelo rumor do meu. As ilhas chegam com o início da memória. É o momento certo para abandonarmos os corpos que se agitam na sua respiração entrecortada. Crescem-nos asas nos olhos e as palavras atingem o imperceptível estrépito da lucidez. Desce o luar com a cor cinza do desespero. Os corpos reconhecem o seu sítio. Tocamo-nos novamente olhando para o mar azul da fotografia. Adivinho-te os sonhos cobertos de veludo. O ar continua impregnado de desejo. O teu rosto sussurra orgasmos. A manhã aproxima-se da janela. A memória dorme. A boca escreve uma nova melancolia. Lá fora os insetos elevam-se para o cimo das árvores e são comidos pelos pássaros. Eu espero pelo sono. A paixão transforma-se num gesto vegetal. A imobilidade é quase absoluta. A noite constrói um túnel para libertar a madrugada. Ei-la que chega, luminescente. Aperto-te os seios para me proteger. O tempo transforma-se na sua seguinte metamorfose. O tempo ergue-se na sua agonia infinita. O tempo lavra os nossos corpos em lume brando. Soergo-me devagarinho e lambo-te os lábios como quem colhe flores estupefactas. Não consigo sair daqui, por mais que tente. Respiro-te entre a ternura e a destruição. Espero que o vento nos espalhe pelo enigma da vida. 

28
Jan13

Pérolas e diamantes (22): enganos e desenganos

João Madureira


«Na verdade, quando considero qualquer sistema social do mundo moderno, não vejo neles, assim Deus me perdoe, senão uma conspiração dos ricos, para servirem o melhor possível os seus interesses, sob o pretexto de organizarem a sociedade. Procuram todos os tipos de habilidades e artimanhas, em primeiro lugar para manterem a salvo os seus lucros mal adquiridos e, em segundo lugar, para explorarem os pobres, pagando-lhes o menos possível pelo seu trabalho.»

 

Sabem quem escreveu isto? Não, não foi Karl Marx ou outro perigoso socialista do mesmo calibre. Foi Sir Tomás Morus (Thomas More) no seu livro “Utopia”, publicado, imaginem só, em 1516. O mundo, afinal, passados quase cinco séculos, continua o mesmo, um lugar pouco recomendável para gente boa, honesta e trabalhadora.

 

Desenganemo-nos! Os usurários e os ricos continuam idênticos e a utilizarem as mesmas receitas de sempre. E os seus lacaios também não enganam ninguém. Pedro Passos Coelho e os seus colegas de Governo continuam a ser os capatazes que fazem o trabalho sujo. 

 

O relatório terrorista do FMI afinal é um embuste. E dizemos que é um embuste porque, mesmo tendo a chancela dessa instituição capitalista, é, na prática, da autoria de 10 ministros e cinco secretários de Estado que colaboraram na sua elaboração.

 

Ou seja, o relatório é do Governo, sustentado, à falta de parceiro mais credível e menos agiota, pelo FMI. Por isso é que está eivado de orientações e preconceitos ideológicos contra o Estado, sobretudo contra o Estado Social, que o primeiro-ministro e o seu ministro das Finanças tanto detestam e pretendem destruir.

 

Mas a história já vem de longe e nem sequer é surpresa, pois todos estamos lembrados de Pedro Passos Coelho ter anunciado a famosa “refundação” do memorando, em Novembro, que mais não era do que a explicitação dos dados preliminares deste estudo, como agora se vê. E o mais curioso é que quando lemos o estudo do FMI, não encontramos nele nada que seja novo em relação à velha ideia de desmantelar o Estado Social ou condená-lo à morte.

 

Por detrás disto tudo está a velha tática de lançar o barro à parede para ver se pega. Apresenta-se o pior cenário possível para depois recuar um pouco para dar uma sensação de vitória à oposição. Ou seja, é uma estratégia de labregos para labregos. É a técnica dos vendedores de banha da cobra: começam por pedir um dinheirão pelos seus produtos para no final os deixarem por um preço razoável. Vivemos num tempo em que o valor das palavras se perdeu.

 

Paulo Portas veio, com a suas falinhas mansas de chefe dos escuteiros, dizer que “há sintomas de desalento e desânimo na sociedade portuguesa, que é preciso contrariar com sensibilidade”.

 

Ainda estava o homem a pronunciar estas palavras quando um senhor chamado Moedas, em direto na televisão, veio dizer, com um sorriso tolo estampado no rosto, que o relatório do FMI está “muito bem feito” e que teve o contributo do Governo. Foi o bastante para que os ânimos no PSD se incendiassem, tendo Carlos Carreiras, um autarca muito próximo do primeiro-ministro, pedido a demissão do tal senhor Moedas que, para mal dos nossos pecados, é secretário de Estado adjunto do PM.

 

Além disso, o famigerado relatório do Governo, com a chancela do FMI, é desonesto. Intencionalmente desonesto, o que é ainda mais grave. O ministro Mota Soares afirmou mesmo que parte de “pressupostos errados”. O reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa, afirmou que os autores do documento utilizaram o que na universidade se ensina os alunos a não fazer: “Partir de um preconceito, de uma teoria, e depois mobilizar os números para a defender.”

 

Segundo o mesmo catedrático, os senhores que elaboraram o relatório do FMI “põem os dados que lhes interessam e quando isso não acontece não os citam e isso é inaceitável.” Mentiram sobre o valor das propinas, mentiram sobre a percentagem do produto interno bruto gasta na despesa com a educação, distorceram os níveis de literacia dos nossos jovens de 15 anos nos testes PISA, fizeram comparações ardilosas, outras incorretas e outras ainda completamente desfasadas da realidade atual. Mas não são apenas os dados da Educação que estão viciados e desatualizados, os da Saúde sofrem do mesmo mal.

 

No relatório tudo tem uma intenção: o de reduzir praticamente a zero a rede social do Estado. Pondo o povo português no dilema de morrer na forca ou atravessado pelo gume de uma espada. Ou, como disse Jerónimo de Sousa, tendo toda a liberdade para poder escolher a árvore onde vai ser enforcado.

 

Todo o documento está eivado de uma sanha ideológica contra os funcionários públicos, os desempregados, os reformados e os pensionistas. E convém também dizer a verdade toda: O Estado detém funções que exigem qualificações que o setor privado não pode fornecer, como são os casos dos militares, forças de segurança e magistrados.

 

No Estado laboram dos profissionais mais qualificados do país. Nos setores da Saúde e da Educação, abertos já à iniciativa privada, muitos dos profissionais que trabalham fora da Função Pública auferem ordenados muitas vezes semelhantes ou mesmo mais elevados do que os funcionários públicos. E todos sabemos que a escola pública e os hospitais públicos, salvo raras exceções, fornecem mais e melhores serviços do que os privados.

 

Mas o mais chocante disto tudo é que a proposta do Governo limita-se a apostar apenas numa via de sentido único: a do empobrecimento das pessoas e das famílias, a da falência da proteção social, reduzindo-a ao assistencialismo. Falta pouco para assistirmos ao regresso do jogo da canastra e do bodo aos pobres.

 

A divulgação do relatório do FMI serviu apenas uma estratégia: a do terrorismo social. Primeiro incute-se medo, muito medo, porque tudo é passível de acontecer: reduzir reformas, aumentar os despedimentos na função pública, diminuir o subsídio de desemprego, cortar ainda mais nos vencimentos, aumentar ainda mais as taxas moderadoras para níveis incomportáveis para a maioria dos portugueses e, para terminar, a bomba de neutrões, o despedimento de uma assentada de 50 mil professores. Depois tenta-se dourar a pílula, aliviando aqui e ali a carga. Mas pouco para não nos habituarmos mal.

 

Para não parecer desonesto de todo, o Governo de Pedro Passos Coelho veio com a ficção política de querer dialogar com os parceiros sociais e os partidos políticos da oposição, nomeadamente o Partido Socialista, que distingue como um “partido do arco da governação”. Afirma que pretende debater as funções do Estado e a sua reforma. Mas tudo isso é fogo de vista. O governo do PSD/CDS apenas deseja cortar a torto e a direito na despesa do Estado cerca de 4 mil milhões de euros, que foi o montante que negociou com a troika na sequência da quinta avaliação da derrapagem orçamental de 2012.

 

Mas uma pergunta se impõe: Porquê 4 mil milhões e não cinco ou seis mil milhões, ou outra quantia qualquer? Como chegou o Governo a este número sagrado? Este é um mistério insondável que nem Pedro Passos Coelho, nem Vítor Gaspar, nem o PSD nem o CDS, e muito menos o FMI, se deram ao trabalho de esclarecer.

 

Pedro Passos Coelho disse para quem o quis ouvir que o relatório do FMI não é a Bíblia do Governo. Talvez não seja a Bíblia, mas é bem possível que seja o seu Alcorão. Os fundamentalistas têm destas obstinações.

25
Jan13

O Homem Sem Memória - 144

João Madureira


144 – Ao camarada Graça também lhe exigiram um relatório, não de crítica e autocrítica, como era habitual, mas antes analítico sobre o relatório do “seu” camarada José. E fizeram-lhe sentir as aspas.


O camarada Graça tentou ainda falar com o funcionário às boas para que lhe fosse retirado esse encargo, mas o funcionário disse-lhe que nada podia fazer já que as diretivas vinham lá do alto e que também ele tinha recebido ordens expressas para elaborar um relatório final sobre toda a situação, onde devia obrigatoriamente incluir os dados relevantes de todos os outros relatórios, inclusive dos textos das camaradas crianças, ou melhor, dos camaradas pioneiros, que, não sendo propriamente relatórios, para os devidos efeitos passavam a sê-lo, pois, como muito bem diz o povo, na sua infinita sabedoria, mais vale sê-lo que parecê-lo.


O camarada Graça tentou, logo desde o início, demarcar-se ardilosamente da situação. Pelo menos foi essa a estratégia gizada. Mas um texto nunca é aquilo que temos pensado, é sempre algo mais, e substancialmente distinto, do propósito inicial. Ei-lo, o documento, claro está, como o encontrámos no arquivo do Gulag Português.


«Vou tentar começar pelo princípio, por isso convém esclarecer que a Escola de Pioneiros foi uma imposição do Partido que visava prosseguir a diretiva de criação de escolas destinadas aos filhos dos camaradas militantes, e também de alguns camaradas simpatizantes, com o firme propósito de educar, desde a mais tenra idade, os filhos dos nossos camaradas nos princípios e nos valores do marxismo-leninismo, enfim, do comunismo.


Eu ainda tentei levar a diretiva à reunião da comissão concelhia mas o camarada funcionário proibiu-me determinantemente de pôr à discussão uma decisão do Comité Central, argumentando que não se levam decisões da mais alta instância do Partido a reuniões das concelhias, pois isso inverte, e subverte, toda a lógica do centralismo democrático. Reconheço que até é capaz de ter razão, mas a minha intenção era boa. Pelo menos era honesta.


Na dita reunião limitei-me a dar conta aos camaradas de que tinha ordens superiores para implantar em Névoa uma Escola de Pioneiros. Eles, depois de olharem para o camarada funcionário, nada disseram. Ou melhor, disseram que concordavam. E que achavam boa ideia, pois se os católicos ensinam aos seus filhos, na catequese, os estafados princípios da religião católica com o êxito que todos lhes reconhecemos, os comunistas devem também educar os seus descendentes na doutrina científica e libertadora do marxismo-leninismo.


O camarada funcionário replicou zangado que a Escola de Pioneiros não era como a catequese, pois nela não se ensinam mentiras, não se propagandeiam invenções, nem se ensinam orações. Na Escola de Pioneiros apenas se demonstra a verdade. E não se aprende a rezar, aprende-se a argumentar, que é coisa bem distinta. Todos concordaram com as diferenças evidentes e inimitáveis. Uma coisa é repetir palavras para se aprender a ser dócil e educado como um cordeiro, mesmo que seja de Deus, outra, bem distinta, é pensar e argumentar para dessa maneira transformar o mundo de modo revolucionário.


Então passou-se ao ponto seguinte: o de escolher o local onde iria funcionar a escola, quem devia ser o camarada que tomaria a seu cargo a direção e quais seriam os professores. O primeiro nome a surgir na cabeça dos camaradas foi, por incrível que pareça, o meu. Eu fiz ver aos camaradas que as tarefas da agitação e propaganda me ocupam todo o tempo disponível. Que ou uma coisa ou outra. Ou agitação e propaganda ou Escola de Pioneiros. E que isso iria implicar que outros camaradas fossem chamados a assumir algumas das tarefas, nomeadamente os camaradas professores que, na minha opinião, eram os mais indicados para esse efeito, pelos motivos óbvios. Muitos são os chamados e poucos são os eleitos! Mas eles informaram, desde logo, que não, porque tinham de dar aulas nas respetivas escolas, tinham o sindicato, tinham as diversas associações e tinham as reuniões do Partido. Que já não possuíam nem sequer tempo e disponibilidade para a vida em família. Eu disse que também não tinha tempo para outra coisa que não fosse o Partido, mas eles carregaram com o argumento de que eu não tinha mulher nem filhos. Tentei ainda propor o nome de outros camaradas mais responsáveis, mas todos argumentaram da mesma forma, que já davam tudo o que podiam ao Partido. Que mais era impossível. Um que outro, ainda sugeriu o nome do camarada funcionário. Mas desistiram logo da ideia depois de olharem para a expressão do seu rosto. Restava eu. Mas eu não podia. Não podia mesmo que quisesse. E, para falar verdade, eu não queria. Mas também não podia, como também já referi e repito. Foi então quando me lembrei do camarada José. Tinha andado no seminário, o que lhe dava um adianto em termos de retórica e instrução. Era um camarada organizado. Além disso, como no momento estava com a sua militância congelada por causa do seu papel de independente do movimento associativo estudantil, era uma forma de o enquadrar num trabalho sério e exigente. Isso podia limpar-lhe um pouco a ficha e retirar de lá, ou suspender, a designação de criticista.


De cara alegre e sorriso sincero, transmiti essa ideia aos camaradas. Eles opuseram-se. Ou melhor, não se opuseram logo, começaram com rodeios e meias palavras. Que o camarada José era criticista, que tinha a mania, que era filho de um guarda-republicano e que, ainda por cima, tinha andado no seminário até dele ser expulso. Para palavras loucas orelhas moucas, por isso deixei passar em branco os primeiros três argumentos para me fixar no último. Fiz-lhes ver que o ter andado no seminário e dele ter sido expulso era um argumento a seu favor. Desde logo porque não se tinha dado bem com o ambiente autoritário, porque tinha contestado o ideário católico como desfasado da realidade e que tinha combatido os padres e a sua mensagem de submissão e resignação perante os ricos e poderosos. Eles continuaram a arengar que não tinha perfil, que era criticista, que era indisciplinado, que tinha, durante algum tempo, convivido com o lúmpen e até se tinha tornado o seu chefe guerrilheiro. Que frequentou ambientes degenerados, que mais isto e mais aquilo. Então calei-me. Não valia a pena continuar a chover no molhado. Foi então quando o camarada funcionário disse que apenas restavam duas soluções: ou alguns dos camaradas ali presentes aceitavam a tarefa de dirigir e dar aulas na escola ou então apenas restava a hipótese chamada José, mesmo reconhecendo que os camaradas da comissão concelhia tinham toda a razão nas suas críticas. Mas lembrou também que o Partido é uma casa onde cabem todos os comunistas, com defeitos, ou sem eles. A todos educa por igual, pois é bom não esquecer, já que estávamos a falar em escolas, que o Partido é a melhor escola de todas as escolas que existem no país. Nisso foi apoiado por todos os camaradas presentes. Também se disponibilizou a fazer um controlo mais apertado da atividade do camarada José, tentando refrear-lhe o ímpeto criticista. Confesso que não sei como, mas o camarada lá saberá, pois para isso é que é funcionário.


No entanto, os camaradas professores apenas se disponibilizaram a apoiar a indigitação do camarada José como diretor da Escola se ele ficasse também com a tarefa de ministrar as aulas. A proposta foi aceite por unanimidade, mas sem aclamação, o que não é coisa de somenos. Nestas, como noutras coisas, é bom ler os sinais.


Mas uma coisa muito importante faltava, a anuência do camarada José que até à data não tinha sido tido nem achado no processo e, sobretudo, na decisão. Eu lembrei aos camaradas a conjuntura. Eles limitaram-se a dizer que para o camarada José só podia ser uma honra tão subida distinção. Honra que não merecia e que por isso apenas lhe restava aceitar o cargo com um sorriso nos lábios.


Já que era assim que viam as coisas, sugeri que fossem eles os camaradas designados para lhe darem tão boa nova. Eles declinaram o convite com o argumento de que eu é que era o seu controleiro e, o que ainda era pior, seu amigo íntimo. Eu neguei, mesmo sem querer. Neguei que fosse seu amigo íntimo, e três vezes, mesmo sem galo algum por perto, argumentando que intimidade só a tinha com a minha namorada. Eles riram-se. Eu não consegui.


Resumindo e concluindo: Rejeito perentoriamente a insinuação de que fui eu o responsável pela nomeação do camarada José. A decisão foi do coletivo. Não minha. O engano da sua escolha, como já ouvi dizer, não foi de minha autoria. Foi do coletivo. Porque isto das responsabilidades do coletivo não existem apenas para quando as coisas saem bem. Também devem ser assumidas quando elas correm mal.


Pelo que sei, a atuação do camarada José, enquanto dirigente e professor da Escola de Pioneiros, foi exemplar. Mesmo contra a sua vontade em aceitar o cargo, desempenhou com rigor e disciplina comunista todas as tarefas de que foi incumbido. Empenhou-se desde o primeiro dia em que a escola fosse para todos, sem distinções. Tratou a totalidade dos camaradas pioneiros por igual.


Os problemas começaram a surgir quando os pais perguntaram aos filhos como ia a escola e dois filhos responderam aos pais que não ia nada bem. Pelo menos foi essa a resposta dos camaradas pioneiros Luís e João relativamente à postura e ao comportamento do camarada pioneiro Miguel, filho do camarada operário da construção civil, Manuel Augusto.


Mas os acontecimentos que despoletaram a controvérsia não se deram dentro da sala de aula, aconteceram no recreio, ou mesmo fora da escola. A tentativa de enforcamento deu-se num monte perto do bairro onde vivem e as cenas de pancadaria tiveram lugar à saída da escola normal, não na dos Pioneiros.


A rivalidade que existe já vem dos pais e dos tempos em que eles andavam na escola e o pai do Miguel lhes fazia o mesmo que o seu filho faz agora aos seus descendentes.


Ou seja: a contenda entre os camaradas pioneiros é o prolongamento da luta de classes que existiu entre os pais no tempo em que todos andavam na escola.


A culparem alguém pelo sucedido culpem os adultos e não as crianças que apenas fazem o que veem fazer e apenas dizem o que ouvem dizer.


Gostem ou não, o meu relatório acaba aqui, pois a mais não sou obrigado, pelo menos na minha consciência de comunista.»

23
Jan13

O Poema Infinito (130): o centro do silêncio

João Madureira

 

Estou no centro do silêncio, aí onde nascem as frases e começa o pensamento. Já tenho idade para isso. Olho essa nova realidade de várias formas, comparando-a com os mapas de viagens assustadoras que trago inscritos na palma das mãos. O medo aproxima-se com delicadeza. O medo tem esse talento fabuloso da zoologia. Presto atenção à luz. Todos somos suas vítimas. A luz desce criando coisas extraordinariamente simples. Tenho-te dentro da cabeça, perto dos nomes de todas as coisas. E olho com rapidez para o teu vagar. Os teus olhos são uma paisagem escrita de sinais permanentes onde tudo começa e acaba. Amanho o poema como as estações trabalham as paisagens. Tudo se precipita. Possuo uma inclinação pelo sentido enigmático das coisas, pela misteriosa verdade de acontecermos, pela vertigem das armadilhas, pelos rostos oblíquos dos amantes, pelo equilíbrio das trevas, pela luz imóvel da energia, pelo rosto teatral de Deus, pela eternidade da abdicação. Todas as formas de vida morrem dentro da sua mutação. Plantas brancas enchem o tempo de indícios. Daí nascem as metáforas da paixão e os símbolos do amor e as frases que abdicam dos seus sistemas de imagens. Por isso as portas se abrem ao estio e deixam entrar na casa eterna os enredos do outono, as lentas estrelas da noite que alguém deposita na arca da roupa onde o brilho da saudade se dobra em pranto. Respiro a energia do vento. A água palpita-me na boca. Tento apanhar a memória. O tempo deposita todo o seu queixume no meu corpo dorido, revolvido pelo medo e pela angústia. O ar arqueia-se. As mãos gravitam em volta das palavras. E as palavras agarram-se-me às mãos e aos pés iluminando-me o corpo. A casa pega fogo. Dentro dela o medo verga-se à lenta inquietação das labaredas. O sonho é um veneno branco que estrangula o sono. Sinto agora a afetuosidade que alimenta a magnificência da alucinação. A casa recua. Lá fora a lua brilha nas clareiras. Por cima das florestas passam os cometas como cavalos loucos. As folhas das árvores ressumam de luz. O sexo brilha agora sobre as mãos, como um fruto maduro. A insónia agrava-se. Visões de demência tornam o tempo nu. A claridade rápida enche de violência radial a manhã. A casa treme. A insónia oscila. O sexo vibra. As mãos ondulam. Sou de novo uma criança perpétua. Um astro dentro de um recinto onde balançam os sorrisos. Amo-te em braçadas de luz. Tens a energia descendente dos desfiladeiros. Por isso sofro dentro da tua vertigem. A infância desaparece filtrada pelas vidraças da janela. Os corpos fecham-se. A noite descentra-se. Fico dentro da tua memória. O amor arde devagar. A casa levanta-se transformando-se num grito de paixão. A tua voz procura-me. E nela as palavras voltam a florir. Cercamos os pensamentos com os nossos corpos iluminados. O teu sorrido tem a imensidão da terra. Dizes: Todas as coisas boas nascem em campos fecundos. E ainda: O espírito das árvores cresce para alumiar a razão. A minha voz confunde-se com a tua. Possuem a mesma brancura fria. Começa outro tempo. O tempo do espanto que diz que a poesia se constrói contra o desejo da carne e contra o passar do tempo, porque os quer possuir. Eis chegada a idade de ignorar os mistérios. 

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