144 – Ao camarada Graça também lhe exigiram um relatório, não de crítica e autocrítica, como era habitual, mas antes analítico sobre o relatório do “seu” camarada José. E fizeram-lhe sentir as aspas.
O camarada Graça tentou ainda falar com o funcionário às boas para que lhe fosse retirado esse encargo, mas o funcionário disse-lhe que nada podia fazer já que as diretivas vinham lá do alto e que também ele tinha recebido ordens expressas para elaborar um relatório final sobre toda a situação, onde devia obrigatoriamente incluir os dados relevantes de todos os outros relatórios, inclusive dos textos das camaradas crianças, ou melhor, dos camaradas pioneiros, que, não sendo propriamente relatórios, para os devidos efeitos passavam a sê-lo, pois, como muito bem diz o povo, na sua infinita sabedoria, mais vale sê-lo que parecê-lo.
O camarada Graça tentou, logo desde o início, demarcar-se ardilosamente da situação. Pelo menos foi essa a estratégia gizada. Mas um texto nunca é aquilo que temos pensado, é sempre algo mais, e substancialmente distinto, do propósito inicial. Ei-lo, o documento, claro está, como o encontrámos no arquivo do Gulag Português.
«Vou tentar começar pelo princípio, por isso convém esclarecer que a Escola de Pioneiros foi uma imposição do Partido que visava prosseguir a diretiva de criação de escolas destinadas aos filhos dos camaradas militantes, e também de alguns camaradas simpatizantes, com o firme propósito de educar, desde a mais tenra idade, os filhos dos nossos camaradas nos princípios e nos valores do marxismo-leninismo, enfim, do comunismo.
Eu ainda tentei levar a diretiva à reunião da comissão concelhia mas o camarada funcionário proibiu-me determinantemente de pôr à discussão uma decisão do Comité Central, argumentando que não se levam decisões da mais alta instância do Partido a reuniões das concelhias, pois isso inverte, e subverte, toda a lógica do centralismo democrático. Reconheço que até é capaz de ter razão, mas a minha intenção era boa. Pelo menos era honesta.
Na dita reunião limitei-me a dar conta aos camaradas de que tinha ordens superiores para implantar em Névoa uma Escola de Pioneiros. Eles, depois de olharem para o camarada funcionário, nada disseram. Ou melhor, disseram que concordavam. E que achavam boa ideia, pois se os católicos ensinam aos seus filhos, na catequese, os estafados princípios da religião católica com o êxito que todos lhes reconhecemos, os comunistas devem também educar os seus descendentes na doutrina científica e libertadora do marxismo-leninismo.
O camarada funcionário replicou zangado que a Escola de Pioneiros não era como a catequese, pois nela não se ensinam mentiras, não se propagandeiam invenções, nem se ensinam orações. Na Escola de Pioneiros apenas se demonstra a verdade. E não se aprende a rezar, aprende-se a argumentar, que é coisa bem distinta. Todos concordaram com as diferenças evidentes e inimitáveis. Uma coisa é repetir palavras para se aprender a ser dócil e educado como um cordeiro, mesmo que seja de Deus, outra, bem distinta, é pensar e argumentar para dessa maneira transformar o mundo de modo revolucionário.
Então passou-se ao ponto seguinte: o de escolher o local onde iria funcionar a escola, quem devia ser o camarada que tomaria a seu cargo a direção e quais seriam os professores. O primeiro nome a surgir na cabeça dos camaradas foi, por incrível que pareça, o meu. Eu fiz ver aos camaradas que as tarefas da agitação e propaganda me ocupam todo o tempo disponível. Que ou uma coisa ou outra. Ou agitação e propaganda ou Escola de Pioneiros. E que isso iria implicar que outros camaradas fossem chamados a assumir algumas das tarefas, nomeadamente os camaradas professores que, na minha opinião, eram os mais indicados para esse efeito, pelos motivos óbvios. Muitos são os chamados e poucos são os eleitos! Mas eles informaram, desde logo, que não, porque tinham de dar aulas nas respetivas escolas, tinham o sindicato, tinham as diversas associações e tinham as reuniões do Partido. Que já não possuíam nem sequer tempo e disponibilidade para a vida em família. Eu disse que também não tinha tempo para outra coisa que não fosse o Partido, mas eles carregaram com o argumento de que eu não tinha mulher nem filhos. Tentei ainda propor o nome de outros camaradas mais responsáveis, mas todos argumentaram da mesma forma, que já davam tudo o que podiam ao Partido. Que mais era impossível. Um que outro, ainda sugeriu o nome do camarada funcionário. Mas desistiram logo da ideia depois de olharem para a expressão do seu rosto. Restava eu. Mas eu não podia. Não podia mesmo que quisesse. E, para falar verdade, eu não queria. Mas também não podia, como também já referi e repito. Foi então quando me lembrei do camarada José. Tinha andado no seminário, o que lhe dava um adianto em termos de retórica e instrução. Era um camarada organizado. Além disso, como no momento estava com a sua militância congelada por causa do seu papel de independente do movimento associativo estudantil, era uma forma de o enquadrar num trabalho sério e exigente. Isso podia limpar-lhe um pouco a ficha e retirar de lá, ou suspender, a designação de criticista.
De cara alegre e sorriso sincero, transmiti essa ideia aos camaradas. Eles opuseram-se. Ou melhor, não se opuseram logo, começaram com rodeios e meias palavras. Que o camarada José era criticista, que tinha a mania, que era filho de um guarda-republicano e que, ainda por cima, tinha andado no seminário até dele ser expulso. Para palavras loucas orelhas moucas, por isso deixei passar em branco os primeiros três argumentos para me fixar no último. Fiz-lhes ver que o ter andado no seminário e dele ter sido expulso era um argumento a seu favor. Desde logo porque não se tinha dado bem com o ambiente autoritário, porque tinha contestado o ideário católico como desfasado da realidade e que tinha combatido os padres e a sua mensagem de submissão e resignação perante os ricos e poderosos. Eles continuaram a arengar que não tinha perfil, que era criticista, que era indisciplinado, que tinha, durante algum tempo, convivido com o lúmpen e até se tinha tornado o seu chefe guerrilheiro. Que frequentou ambientes degenerados, que mais isto e mais aquilo. Então calei-me. Não valia a pena continuar a chover no molhado. Foi então quando o camarada funcionário disse que apenas restavam duas soluções: ou alguns dos camaradas ali presentes aceitavam a tarefa de dirigir e dar aulas na escola ou então apenas restava a hipótese chamada José, mesmo reconhecendo que os camaradas da comissão concelhia tinham toda a razão nas suas críticas. Mas lembrou também que o Partido é uma casa onde cabem todos os comunistas, com defeitos, ou sem eles. A todos educa por igual, pois é bom não esquecer, já que estávamos a falar em escolas, que o Partido é a melhor escola de todas as escolas que existem no país. Nisso foi apoiado por todos os camaradas presentes. Também se disponibilizou a fazer um controlo mais apertado da atividade do camarada José, tentando refrear-lhe o ímpeto criticista. Confesso que não sei como, mas o camarada lá saberá, pois para isso é que é funcionário.
No entanto, os camaradas professores apenas se disponibilizaram a apoiar a indigitação do camarada José como diretor da Escola se ele ficasse também com a tarefa de ministrar as aulas. A proposta foi aceite por unanimidade, mas sem aclamação, o que não é coisa de somenos. Nestas, como noutras coisas, é bom ler os sinais.
Mas uma coisa muito importante faltava, a anuência do camarada José que até à data não tinha sido tido nem achado no processo e, sobretudo, na decisão. Eu lembrei aos camaradas a conjuntura. Eles limitaram-se a dizer que para o camarada José só podia ser uma honra tão subida distinção. Honra que não merecia e que por isso apenas lhe restava aceitar o cargo com um sorriso nos lábios.
Já que era assim que viam as coisas, sugeri que fossem eles os camaradas designados para lhe darem tão boa nova. Eles declinaram o convite com o argumento de que eu é que era o seu controleiro e, o que ainda era pior, seu amigo íntimo. Eu neguei, mesmo sem querer. Neguei que fosse seu amigo íntimo, e três vezes, mesmo sem galo algum por perto, argumentando que intimidade só a tinha com a minha namorada. Eles riram-se. Eu não consegui.
Resumindo e concluindo: Rejeito perentoriamente a insinuação de que fui eu o responsável pela nomeação do camarada José. A decisão foi do coletivo. Não minha. O engano da sua escolha, como já ouvi dizer, não foi de minha autoria. Foi do coletivo. Porque isto das responsabilidades do coletivo não existem apenas para quando as coisas saem bem. Também devem ser assumidas quando elas correm mal.
Pelo que sei, a atuação do camarada José, enquanto dirigente e professor da Escola de Pioneiros, foi exemplar. Mesmo contra a sua vontade em aceitar o cargo, desempenhou com rigor e disciplina comunista todas as tarefas de que foi incumbido. Empenhou-se desde o primeiro dia em que a escola fosse para todos, sem distinções. Tratou a totalidade dos camaradas pioneiros por igual.
Os problemas começaram a surgir quando os pais perguntaram aos filhos como ia a escola e dois filhos responderam aos pais que não ia nada bem. Pelo menos foi essa a resposta dos camaradas pioneiros Luís e João relativamente à postura e ao comportamento do camarada pioneiro Miguel, filho do camarada operário da construção civil, Manuel Augusto.
Mas os acontecimentos que despoletaram a controvérsia não se deram dentro da sala de aula, aconteceram no recreio, ou mesmo fora da escola. A tentativa de enforcamento deu-se num monte perto do bairro onde vivem e as cenas de pancadaria tiveram lugar à saída da escola normal, não na dos Pioneiros.
A rivalidade que existe já vem dos pais e dos tempos em que eles andavam na escola e o pai do Miguel lhes fazia o mesmo que o seu filho faz agora aos seus descendentes.
Ou seja: a contenda entre os camaradas pioneiros é o prolongamento da luta de classes que existiu entre os pais no tempo em que todos andavam na escola.
A culparem alguém pelo sucedido culpem os adultos e não as crianças que apenas fazem o que veem fazer e apenas dizem o que ouvem dizer.
Gostem ou não, o meu relatório acaba aqui, pois a mais não sou obrigado, pelo menos na minha consciência de comunista.»