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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

18
Fev13

Pérolas e diamantes (25): porcos, suspeitos e capitais

João Madureira


Há pouco tempo deu-se na A1 um descarrilamento de porcos que provocou atrasos nos autocarros que levavam professores para uma manifestação em Lisboa. Os dirigentes sindicais, um pouco a sério e também um nadinha a brincar, levantaram suspeitas de que tantos porcos à solta na autoestrada talvez fosse uma nova arma do Governo contra a contestação dos tão mal amados, e vilipendiados, docentes portugueses.

 

De suspeitos, os porcos, que não os nossos governantes, passaram a vítimas. Pelo menos um foi filmado a levar um pontapé no traseiro por parte de um agente da GNR. Ora tal ato bárbaro fez com que as chefias da GNR se apressassem a condenar a conduta do agente da autoridade e anunciassem a abertura de um inquérito para investigar em que circunstâncias é que o pontapé ocorreu. O GNR vai ser ouvido em breve e, estamos em crer, o porco também. Os nossos governantes é que não, pois têm mais que fazer.

 

De facto, o suíno começa a ocupar o seu verdeiro lugar na nossa sociedade. Já chega de estigmatização de animal tão nobre. Nisso concordo com o Zeca, o protagonista do romance Porno Popeia de Reinaldo Moraes: “O Porco é o melhor amigo do homem, muito mais do que o cão e até do que o frango.”

 

E tanto assim é que Bruxelas impôs a Portugal novas regras que visam garantir o bem-estar dos suínos, propondo mesmo multas para os seus produtores. Essas novas regras visam garantir, por exemplo, a concretização dos, e passamos a citar, “contactos sociais” que as porcas estabelecem facilmente com os outros suínos, mas para as quais necessitam de “liberdade de movimentos e um ambiente variado”, e, continuamos a citar, para que conste, “deverá, portanto, ser proibido manter as porcas em confinamento rigoroso contínuo”.

 

Além de proibir o isolamento, Bruxelas impõe para cada animal espaços com as dimensões mínimas, que serão de 1,64 m2 para marrãs e de 2,25m2 para porcas, além de pavimento sólido com a respetiva drenagem.

 

E é bom que assim seja, pois ele, o nosso conhecido reco, como muito bem defende o Zeca, é o melhor amigo do homem. Pelo menos do homem transmontano. Por exemplo, em Montalegre, a Feira do Fumeiro, também conhecida como a romaria do São João das Chouriças, levou à capital barrosã cerca de 70 mil forasteiros que deixaram lá cerca de milhão e meio de euros. Por isso é que o presidente da Câmara fez um apelo aos jovens para que não emigrem e façam chouriças e outro fumeiro, porque dessa forma cria-se emprego e desenvolve-se a economia local e nacional.

 

Os enchidos, e o restante fumeiro de carne de porco, tornaram Vinhais na capital do fumeiro, Mirandela na capital da alheira, a Mealhada na capital do leitão, Montijo na capital do porco, Barrancos na capital do presunto e Ourique na capital do porco alentejano. Já agora, Chaves é a capital do quê?

 

Sabemos que Olhão é a capital do marisco, Santa Luzia é a capital do polvo, São Brás de Alportel é a capital da cortiça, Portimão é a capital da sardinha, Rogil é a capital da batata-doce, Moura é a capital do azeite alentejano, Estremoz é a capital do mármore, e Chaves, afinal, é a capital do quê? De que raio Chaves é capital?

 

Sabemos também que Bucelas é a capital do arinto, Almeirim é a capital da sopa de pedra, Cartaxo é a capital do vinho, Santarém é a capital do gótico, Bombarral é a capital da pera rocha, Peniche é a capital da onda, Óbidos é a capital do chocolate, Golegã é a capital do cavalo, Marvão é a capital da castanha, Caldas da Rainha é a capital da cerâmica e do comércio tradicional, Entroncamento é a capital do comboio, Ferreira do Zêzere é a capital do ovo, Marinha Grande é a capital do vidro, Alvaiázere é a capital do chícharo, Miranda do Corvo é a capital da chanfana, Lousã é a capital do livro e… Chaves é a capital do quê? De que raio Chaves é capital?

 

Sabemos ainda que Fundão é a capital da cereja, Vila Nova de Poiares é a capital universal da chanfana e do artesanato e da gastronomia, Montemor-o-Velho é a capital do arroz, Coimbra é a capital do saber português, Penacova é a capital da lampreia, Anadia é a capital do espumante, Linhares da Beira é a capital do parapente, Celorico da Beira é a capital do queijo da Serra, Armamar é a capital da maçã de montanha, São João da Madeira é a capital do calçado, Castelo de Paiva é a capital das águas bravas, Penafiel é a capital do vinho verde, Paredes é a capital do design, Paços de Ferreira é a capital do móvel, Felgueiras é a capital do calçado, Favaios é a capital do moscatel, Vila Nova de Famalicão é a capital do móvel antigo, Caldas das Taipas é a capital da cutelaria, Braga é a capital do barroco, Melgaço é a capital ibérica do rafting, Vila Pouca de Aguiar é a capital do granito, Valpaços é a capital do folar e… Chaves, meu Deus, é a capital de quê? De que raio Chaves é capital?

15
Fev13

O Homem Sem Memória - 147

João Madureira


147 – Mais uma vez o José foi ter com o seu amigo, e camarada, Graça para lhe dar conta do sucedido. Ele perguntou-lhe o que tinha acontecido. O José contou-lhe tudo. Vai daí, o Graça comentou: “Vejo que és o protótipo do Marialva comunista. Primeiro o sexo, depois o pão, perdão, a revolução. Visto que já não há volta atrás, apenas te resta o trabalho unitário… a tempo inteiro. E vem-te mesmo a calhar, pois acabou de chegar uma exposição sobre a União Soviética e tu, como membro da Associação de Amizade Portugal-URSS, vais ficar com a responsabilidade de a ires montar nos Canários.”


“Mas eu não faço parte dessa associação!”, exclamou o José. “Qual delas?”, questionou o amigo, e camarada, Graça. “Da primeira”, respondeu o camarada unitário, e amigo, José. Ao que o camarada, e amigo, Graça retorquiu: “Mas desde este momento passas a fazer. E lembro-te que o seu presidente é o General Costa Gomes.”


“Sim, um independente como eu. Vá, não brinques com coisas sérias”, verbalizou o desatento jovem bolchevique nevoense José. “Tu bem sabes que eu não brinco com o Partido, pois o Partido não é para brincadeiras. Que te fique de exemplo a Escola de Pioneiros”, rematou o camarada, e amigo, Graça.


Para transportar e desembalar as caixas com as fotos, a secção de Informação e Propaganda ainda deu uma mão, mas foi sol de pouca dura, pois mal a noite arribou, cada um foi para seu canto e não mais apareceu para o que quer que fosse. Mas, em boa verdade, o José até gostava mais assim. Não estar ali alguém que o incomodasse, para ele era um alívio. Aos poucos, foi desembalando as fotografias e, uma a uma, lá as foi colocando na parede seguindo as instruções escritas que superiormente lhe forneceram.


A exposição era enorme e a sala dos Canários era pequena, originando que os quadros ficassem uns em cima dos outros, como camaradas num comício. Mas se num comício fica bem aos camaradas estarem aglomerados para exibirem unidade e força, numa exposição já o mesmo não se passa. Mas o ótimo é inimigo do bom (princípio filosófico presumivelmente marxista versão soviética); quem não tem cão caça com um gato (princípio filosófico presumivelmente marxista versão chinesa); ou mesmo com um rato se ele for leiranco (princípio filosófico presumivelmente marxista versão portuguesa).


As caixas de papelão e os plásticos onde vieram embrulhados os quadros foram amontoadas no palco onde se mantiveram até ao final da exposição, sempre com o pano de cena corrido para não dar nas vistas.


Depois de montada, seguindo a numeração estipulada, o José foi o primeiro a admirá-la com um sorriso estampado no rosto e, porque não dizê-lo sem rodeios, com a pele arrepiada, o que nele era sinal de grande emoção.


Tudo nas fotos era apologético. Os blocos de apartamentos que celebravam a modernidade eram enormes e de uma geometria verdadeiramente científica e marxista-leninista. E sucediam-se uns aos outros como uma floresta de betão armado, tão armado como a pátria do socialismo comunista, ou do comunismo socialista. As fábricas eram imensas, limpas, repletas de máquinas espantosas e de operários que transpiravam felicidade e boa disposição. Fossem homens ou mulheres, jovens, velhos ou gente de meia-idade, todos sorriam com um sorriso tão natural que até parecia artificial. Mas de artificial não tinha nada. Na URSS, a Pátria do socialismo científico e de Lenine, Estaline e Brejnev, nada havia de artificial, tudo ali era fruto do trabalho de operários e camponeses, fossem homens ou mulheres, militantes ou simpatizantes do Partido Comunista da União Soviética, e do engenho dos seus dirigentes que eram os melhores comunistas do mundo. Razão tinha o camarada Alberto Punhal, a URSS era o sol da Terra, era quem iluminava o mundo, quem lhe abria os horizontes, quem apontava o rumo a seguir a todos os explorados da humanidade. A altura dos edifícios estonteava-o, as fotografias onde se via o camarada Brejnev, a sorrir e a acenar às massas na Tribuna da Praça Vermelha durante o desfile do 1º de Maio, enchiam-no de entusiasmo revolucionário. Em várias fotografias aparecia o camarada Punhal a ser cumprimentado e beijado pelo camarada Brejnev. Alberto Punhal sorria, Brejnev sorria, os camaradas da delegação portuguesa ao congresso do PCUS sorriam, os camaradas da comissão de receção do PCUS aos convidados ao congresso do PCUS sorriam, os polícias sorriam, as estátuas sorriam, até Lenine sorria em várias fotografias que enquadravam o camarada Brejnev, enquanto discursava, brilhava ou acenava. As cores do Palácio de Inverno eram tão intensas que resplandeciam, enchendo os olhos de quem as observava. Então que dizer da Praça Vermelha. A Praça Vermelha era tão vermelha, mas tão vermelha, que toda a gente percebia logo à primeira observação porque lhe chamavam assim. As filas para visitar o mausoléu de Lenine davam várias voltas ao edifício e ainda se estendiam por centenas, senão mesmo milhares, de metros de empedrado. Militares do exército vermelho sorriam enquanto tiravam fotografias às namoradas e às mulheres, ou eram fotografados por elas, ou por algum camarada que por ali passava. Os filhos sorriam para os pais, os pais sorriam para os filhos, os avós sorriam para os filhos e para os netos, os netos sorriam para os avós e para os pais, os polícias sorriam para as pessoas, as pessoas sorriam para os polícias e a guarda de honra do mausoléu de Lenine marchava como se os seus elementos fossem incríveis ginastas com pernas quase até ao pescoço, enquanto as pessoas os admiravam sorrindo. Nos hospitais os médicos sorriam para os doentes e os doentes sorriam para os médicos como se não tivessem maleita nenhuma. Nos concursos de ginástica, os ginastas sorriam quando ganhavam medalhas, mas também quando não as ganhavam.


O verdadeiro socialismo era assim, a todos punha bem-dispostos, quer estivessem a trabalhar ou a descansar, a ler ou a dormir, a correr ou parados, nas bichas para o pão ou nas filas para o cinema, na bicha para o sabão ou na fila para o teatro, na bicha para a carne ou na fila para o balé. Até a cadela Laika sorria à sua maneira dentro da cápsula que a levou para o espaço. Podem não acreditar, mas na pátria do socialismo científico até os animais tinham outro comportamento. Não é que sorrissem, mas quase. Não é que falassem, mas quase. Não é que fossem gente, mas quase. Gagarin também sorria a bom sorrir e a camarada Valentina Tereshkova, a primeira mulher no espaço, também ria com toda a sua simplicidade proletária, filha de proletários.


Viver na URSS era como habitar no paraíso. Ou quase, pois nem tudo ainda era perfeito. Mas para lá marchava. Até nisso o camarada Brejnev e o camarada Alberto Punhal eram sinceros e verdadeiros, honra lhes seja feita: a URSS ainda não era uma sociedade comunista, mas para lá caminhava a passos largos.


Quando chegou ao fim da exposição, o camarada José, de tão entusiasmado, voltou ao início. E admirou mais uma vez aquela realidade toda. As fotografias não enganavam. Tudo ali era o testemunho de que o socialismo no mundo inteiro só podia triunfar. Na URSS não se via pobreza e respirava-se liberdade. Não se viam muitos carros, mas em contrapartida os transportes púbicos abundavam e o metro de Moscovo, o melhor e o mais belo do mundo, estava sempre cheio, mas nunca a abarrotar. E as mulheres eram lindas e loiras e bem proporcionadas. E sorriam sempre. Os homens também não eram desengraçados. As crianças tinham um ótimo aspeto e via-se logo que eram inteligentes. Falavam sempre ajuizadamente, esperavam a sua vez, não diziam disparates e comiam sempre nas cantinas uma comida cientificamente preparada para as tornar fortes, espertas e sadias. Por isso eram sempre os melhores atletas do mundo e também os melhores cientistas. Lá não existiam igrejas, nem padres, nem beatas. Os templos tinham dado lugar a museus ou tinham pura e simplesmente sido arrasados. Lá ninguém se ajoelhava perante Deus. Lá não existia Deus, só homens e mulheres de boa vontade. Lá ninguém se drogava, ninguém se prostituía, nem ninguém passava fome. Lá o que havia mais era fartura. Mas não havia desperdício. Isso é que era bom! Tudo o que lhes sobrava, os camaradas soviéticos distribuíam pelos povos necessitados do mundo: máquinas, medicamentos, roupa, calçado, armas, muitas armas, e mesmo sanitas, mas, e voltamos a repetir para que conste, sobretudo armas, muitas armas, mas também calçado, roupa, medicamentos, máquinas e até sanitas. Tudo, mas mesmo tudo o que lhes sobrava, eles, os camaradas soviéticos, distribuíam aos povos explorados e oprimidos do mundo, para se libertarem do jugo imperialista e capitalista.


Se todas as fotografias eram impressionantes na sua realidade reveladora, então o que dizer das que retratavam os desfiles comemorativos da Revolução de Outubro. Tudo nelas era de uma beleza arrepiante. A disposição geometricamente perfeita das pessoas que desfilavam com passos perfeitos dentro das suas roupas, ou das suas fardas, perfeitas, a perfeição dos gestos, a perfeição dos sorrisos, a perfeição dos acenos, a perfeição da pose dos dirigentes do PCUS na tribuna, a perfeição do alinhamento das medalhas que o camarada Brejnev ostentava no peito e que demonstravam, até à exaustão, a sua bravura, a sua dedicação e a sua sábia liderança que tinham levado a URSS a ser a maior e a mais digna nação do mundo.


Duplamente arrepiante eram as fotos onde se via o poderio militar soviético. Os exércitos desfilavam de tal forma perfeitos e arrumados que até pareciam de chumbo. Os carros de combate eram aos milhares. Lá nas alturas de Moscovo esquadrilhas de aviões rasgavam os céus deixando impressas no seu azul linhas de fumo tão perfeitas que até pareciam pintadas. E então que dizer dos mísseis! Bem, os mísseis intercontinentais eram impressionantes. E eram tantos que podiam destruir o mundo de um momento para o outro. Por isso é que as potências ocidentais tinham medo da URSS. Por isso é que ainda não a tinham atacado para destruir o socialismo que lá se construía com toda a sabedoria comunista. Ai de quem tivesse o atrevimento de se meter com a pátria de Lenine. Era atrevimento para nunca mais. Por isso é que o camarada Brejnev ria com aquele seu sorriso de urso polar. Um abraço seu e era a morte do artista.


Tão excitado ficou o camarada José com mais esta segunda ronda, que lhe apeteceu masturbar-se. Mas conteve-se. Uma exposição da URSS não era propiamente um filme com a Sofia Loren. Mais respeito, rapaz. Mais respeito. Ainda olhou mais uma vez para uma ginasta que fazia umas acrobacias a modos que provocantes. Mas quando olhou na outra direção deu de caras com uma foto onde o camarada Alberto Punhal estava com uma expressão tão séria e marxista-leninista que fez com que do entusiasmo e da excitação passasse à circunspeção.


O comunismo pode ser excitante, como muita coisa na vida, mas não é para aí que apontam as suas armas. Cada coisa a seu tempo, cada coisa no seu lugar. Assim é que é. 

13
Fev13

O Poema Infinito (133): a natureza das figuras impetuosas

João Madureira


O mar cresce dentro de ti com a nitidez da glória. Um brilho invisível expande-se até ao infinito. São sinais novos que estudam o tempo e o seu silêncio substantivo.  Agora o mar afaga-nos e o vento que lhe define o temperamento expande-se. Todas as epifanias são de novo possíveis. O mundo acorda dentro do seu eixo paradoxal. Os animais recolhem-se dentro das suas tocas pressagiando metáforas precárias. A manhã entra pelo mar adentro trepando a sua escala de claridade. Sobe-nos a aurora ao pensamento. Há um silêncio prévio às palavras, aí onde te espero. Aí onde desespero. Enormes portões abrem-se à pulsação extensa das evidências. As palavras maninhas inclinam-se para os limites dos objetos. De ti brota a natural abundância do desejo. Está na hora de subir às nuvens e de estudar os seus domínios. As palavras atrapalham-se na sua circulação fixa. Paramos dentro do nosso vagar e assustamo-nos. As cheias vêm do poente, lá onde as cores se eternizam. Passam os dias sobre as águas e sobre as árvores. Afinal os verbos também se abatem. Os verbos e as casas e os lugares e os olhares e os gestos e o júbilo da extensão e a razão e o doce retraimento da poesia e a brancura sobrenatural dos teus seios. A noite atrapalha-se na sua lucidez de gaivota vaga e goza o seu júbilo solitário. A felicidade não tem razão, por isso nos absorve. Sou conforme a tua brisa e por isso me deixo entusiasmar pela tua longínqua figura. Lá onde se move a natureza das figuras impetuosas. Vivo nesses lugares sem sítio, sem poiso, sem tempestades. Sinto a doce solidão do apocalipse quando te possuo. Lentamente voo com a nitidez dos pássaros de inverno. Com a mesma esperança de vida. Hoje o mar devolve-me o tempo antigo. E o meu passado nítido. E o sossego dos teus olhos de esmeralda. O calor do desejo instala-se no interior do sexo com a mobilidade dos arcanjos. E Deus brinda à vida pegando no cálice do seu único filho, celebrando o ser pai único e indivisível e indiscritível e inamovível e esplendoroso e renovado em cada morte. Deus entra nas palavras crescendo como as marés vivas. E brilha com o seu esplendor redundante. O mundo acorda despontando dentro do seu enigma. Os frutos lúcidos caem das árvores como se fossem cegos e enigmáticos e claros e vingativos. O amor constrói-se dentro da sua paciência iluminada e faz os seus cálculos alucinogénios. Começa a erguer-se o halo decisivo da minha velhice. Eu prometo-lhe indulgência e paciência. Eu prometo-me. Eu prometo-lhe um enxame de luz que contamina o espaço. Eu prometo-lhe o fausto do silêncio. Eu prometo-lhe incêndios de volúpia. Eu prometo-lhes Feud ao ritmo do chachachá. E verbos unificados. E toda a paciência dos pastores. Eu já guardei rebanhos com toda a indiferença do Álvaro de Campos e rezei com a mesma ausência de nudez. Por isso é que eu sou a imagem que sobra do desejo e do sofrimento. O infinito tem-me assim: em partes de memória. Lá fora as imagens passam para outra eternidade. Os relâmpagos transformam-se numa negrura abstrata. Eu sou a tua dúvida metódica. Perto da tua face abro o sorriso triste ao júbilo da minha idade. Vou-me embora penitenciando-me para a viagem. O mundo volta a entrar no seu espanto de movimento sacramental.  O vento é um vestígio que magoa. A sua dádiva é uma narração de movimento. O vento é o espírito da melancolia. Tu és a minha fecunda explicitação. Eu sou cada vez mais distância. Cresço dentro do teu silêncio que me escuta. Cresço como quem minga. Deslumbro-me com o espantoso silêncio da infância. A luz repousa agora na tua harmonia de água incandescente. A luz deixou de ser um obstáculo. A luz pressente o fim. Somos o seu vagar incessante.

11
Fev13

Pérolas e diamantes (24): a lenta agonia da zona história de Chaves

João Madureira


Aos domingos, depois do almoço, eu e a Luzia costumamos ir tomar a bica ao Sport e a seguir passeamos pela cidade. No café encontramos sempre as mesmas pessoas. Quase todas elas idosas. Invariavelmente falam umas com as outras ou, então, olham para a praça sempre vazia onde até o tanque e o repuxo deixaram de cumprir com a sua obrigação, pois estão secos e inoperantes. Sinais dos tempos. O quiosque está sempre fechado e o Aurora também. Aos domingos parece que o centro da cidade fecha para balanço.

 

Depois do café tomado descemos a rua de Santo António e, ou viramos à esquerda caras à rua do Olival, ou, então, infletimos à destra para subirmos a rua Direita. Raramente nos cruzamos com mais do que meia dúzia de pessoas.

 

No passado domingo, virámos à direita. Quem diria. O dia estava cinzento e soprava um vento arisco com todo o aspeto de ser galego. Encolhemo-nos dentro dos nossos casacos e lá fomos pelo lajedo fora.

 

Nós já nos habituámos à desolação, mas, mesmo assim, quase sempre subimos a rua em silêncio remordendo a nossa tristeza.

 

Muitas das casas ameaçam ruína, dezenas de estabelecimentos comerciais encontram-se vazios e outros estão de tal maneira protegidos por portas de metal que mais parecem garagens.

 

A tristeza que nos invade não tem fim. Grande parte dos edifícios está habitada por sombras, fantasmas, ratos ou aranhas. Desta vez chegámos mesmo a ouvir o silêncio. Aqui e ali ainda eram visíveis copos de plástico e algumas garrafas de cerveja. São alguns dos vestígios das noites atribuladas na zona histórica da nossa cidade.

 

Vieram-me logo à memória as palavras do senhor Marcolino ao DN: “Vivo nesta rua há mais de 60 anos e nunca vi tal coisa. É um pandemónio. Então à noite é demais, consumo e venda de droga, de álcool por menores na via pública e filas de homens a entrar nas casas onde estão as prostitutas.”

 

Foi este estado de coisas que levou a que alguns dos “heróis resistentes”, que ainda teimam em morar no centro histórico da nossa cidade, elaborassem uma petição pública online onde acusam o executivo camarário de ter pouca, ou nenhuma, sensibilidade para a limpeza da zona, declarando que “nas ruas do centro histórico, por todo o lado se veem dejetos humanos e garrafas de bebidas alcoólicas partidas, as casas estão degradadas, afastando não só a população residente mas também os comerciantes ali instalados há dezenas de anos”.

 

Uma moradora colocou o dedo na ferida: “Como é que se pode morar na zona histórica se atualmente é só droga e prostituição?”

 

O que vai proliferando por ali é a droga e a prostituição, negócios que são ilegais, perigosos e confrangedores. O DN dá conta de que uma senhora de 52 anos que, após ter morado durante quarenta anos na zona, acabou por sair dali devido ao medo. E desabafou: “Dantes só tínhamos a «Z…», mas agora esta tornou-se empresária do ramo e são às dezenas as prostitutas.»

 

E a fama está em crescendo, porque o negócio da droga e da prostituição não tem deixado de aumentar. Mas a agiotagem também se vai governando com a miséria humana, pois ainda há gente que negoceia a cedência de casas degradas para a troca de serviços.

 

As mulheres são de diversas origens. Além das portuguesas, passeiam-se por ali africanas, brasileiras e romenas. Convém talvez dizer que a prostituição por aquelas bandas não é prática recente, desde que Chaves é Chaves sempre existiu esse hábito na zona, só que em pequena escala.

 

Ao DN, curiosamente, nem o senhor presidente da Câmara, nem o senhor vice se atreveram a dar um arzinho da sua graça. Para dar a cara, desculpando a autarquia da situação, o executivo PSD destacou desta vez o senhor vereador Penas que declarou à comunicação social que as situações referidas na petição são da competência da PSP, adiantando que a autarquia está a regularizar o horário do funcionamento dos bares.

 

Pelos vistos, a culpa morre sempre solteira. Mas é importante que se lembre que a responsabilidade pela requalificação urbana é da autarquia, a dinamização das políticas de urbanização é da inteira responsabilidade da autarquia, a defesa do património é da responsabilidade da autarquia e a defesa do bom nome da nossa cidade é da responsabilidade da autarquia. A não ser assim, para que raio serve a Câmara? Para cobrar a conta da água e do saneamento e fazer propaganda ilusória sobre a Eurocidade?

 

O problema é que a nossa Câmara apenas se preocupa com a gestão do dia-a-dia e da dinamização de projetos, ou megalómanos, ou ridículos. António Cabeleira em vez de atuar em defesa da sua cidade e das suas gentes, entretém-se a tecer loas à Eurocidade e a gastar dinheiro em projetos que nada nos trazem, nem nada adiantam.

 

Em vez de requalificar a zona histórica da cidade, que, bem vistas as coisas, é o coração da nossa urbe, esta gestão autárquica consome o tempo a dizer que vai fazer o que não faz, prometendo fundações e outras fantasias que apenas vão contribuir ainda mais para que o buraco financeiro atinja proporções alarmantes.

 

Quando a Câmara remete as culpas da degradação da Zona Histórica para os ombros da PSP só pode ser num ato de profundo cinismo, ou, então, de má-fé. A gestão da nossa urbe está entregue a desistentes, a gente que não ama a sua cidade, que despreza as suas gentes, que maltrata a nossa memória, que colocou em ruínas o coração da nossa velha cidade e que é incapaz de ter uma atitude de dignidade para com os seus concidadãos.

 

Por isso é que a petição põe o dedo na ferida ao acusar os responsáveis autárquicos de “desinteresse” e de prestarem “uma pouco cuidada atenção social e urbanística” à zona compreendida entre a rua Direita e a Rua do Poço, incluindo as ruas de Santa Maria Maior, General Sousa Machado até ao largo da Câmara de Chaves.

 

Os signatários exigem, a quem de direito, uma cidade mais segura e uma mais atenta atuação policial. Jorge Machado, proprietário de um bar na zona, disse à Voz de Chaves que “há um abandono das forças policiais e autárquicas ao contrário do que se passa nas outras cidades, que tentam reavivar e tornar os centros mais atrativos.”

 

Os signatários, e já agora os subscritores, entre os quais eu me incluo, solicitam à Câmara um plano simples de pintura de paredes, colocação de caixotes do lixo nas ruas principais, tomada de medidas para acabar com a degradação dos edifícios que transbordam lixo para as ruas e outras que se venham a mostrar urgentes e adequadas.

 

Mas, estamos em crer, que depois de a autarquia ter gasto todo o dinheiro que tinha, e não tinha, em foguetório e festas e festas e foguetório, o que vai restar é o conhecido gesto do senhor presidente em falar com as pessoas e nada fazer.

 

Os dois primeiros subscritores foram já apanhados nessa estratégia, pois, e passo a citar novamente a Voz de Chaves, “chegaram a reunir com a autarquia flaviense, mas apesar do «interesse» e da «conversa positiva», até hoje nenhuma medida foi tomada”.

 

Enquanto o consumo de álcool, as drogas, a prática de prostituição e as ruas se enchem de lixo na zona histórica da nossa cidade, a autarquia ignora ostensivamente o problema e faz como Pilatos, lava dali as suas mãos.

 

Por isso é que urge devolver a identidade aos flavienses, porque Chaves necessita urgentemente de ser de novo colocada na senda da centralidade e do desenvolvimento, pois, ao contrário do que a gestão de João Batista e António Cabeleira propagandeou aos quatro ventos, a nossa cidade não se modernizou, antes se descaracterizou, não se desenvolveu, estagnou, fruto de uma administração imobilista e apriorística, esbanjou dinheiro à tripa forra, daí a sua dívida real ultrapassar os 50 milhões de euros.

 

É urgente renovar as nossas potencialidades, criar condições de atratividade, fazer com que grande parte dos nossos jovens regressem, motivar os flavienses e acreditar de novo na sua capacidade de trabalho, apostar na criatividade e pugnar pela melhoria de serviços e não pela sua degradação, desqualificação ou extinção.

 

Esta gestão autárquica é, definitivamente, um atraso de vida. E quando for embora já vai tarde. 

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