147 – Mais uma vez o José foi ter com o seu amigo, e camarada, Graça para lhe dar conta do sucedido. Ele perguntou-lhe o que tinha acontecido. O José contou-lhe tudo. Vai daí, o Graça comentou: “Vejo que és o protótipo do Marialva comunista. Primeiro o sexo, depois o pão, perdão, a revolução. Visto que já não há volta atrás, apenas te resta o trabalho unitário… a tempo inteiro. E vem-te mesmo a calhar, pois acabou de chegar uma exposição sobre a União Soviética e tu, como membro da Associação de Amizade Portugal-URSS, vais ficar com a responsabilidade de a ires montar nos Canários.”
“Mas eu não faço parte dessa associação!”, exclamou o José. “Qual delas?”, questionou o amigo, e camarada, Graça. “Da primeira”, respondeu o camarada unitário, e amigo, José. Ao que o camarada, e amigo, Graça retorquiu: “Mas desde este momento passas a fazer. E lembro-te que o seu presidente é o General Costa Gomes.”
“Sim, um independente como eu. Vá, não brinques com coisas sérias”, verbalizou o desatento jovem bolchevique nevoense José. “Tu bem sabes que eu não brinco com o Partido, pois o Partido não é para brincadeiras. Que te fique de exemplo a Escola de Pioneiros”, rematou o camarada, e amigo, Graça.
Para transportar e desembalar as caixas com as fotos, a secção de Informação e Propaganda ainda deu uma mão, mas foi sol de pouca dura, pois mal a noite arribou, cada um foi para seu canto e não mais apareceu para o que quer que fosse. Mas, em boa verdade, o José até gostava mais assim. Não estar ali alguém que o incomodasse, para ele era um alívio. Aos poucos, foi desembalando as fotografias e, uma a uma, lá as foi colocando na parede seguindo as instruções escritas que superiormente lhe forneceram.
A exposição era enorme e a sala dos Canários era pequena, originando que os quadros ficassem uns em cima dos outros, como camaradas num comício. Mas se num comício fica bem aos camaradas estarem aglomerados para exibirem unidade e força, numa exposição já o mesmo não se passa. Mas o ótimo é inimigo do bom (princípio filosófico presumivelmente marxista versão soviética); quem não tem cão caça com um gato (princípio filosófico presumivelmente marxista versão chinesa); ou mesmo com um rato se ele for leiranco (princípio filosófico presumivelmente marxista versão portuguesa).
As caixas de papelão e os plásticos onde vieram embrulhados os quadros foram amontoadas no palco onde se mantiveram até ao final da exposição, sempre com o pano de cena corrido para não dar nas vistas.
Depois de montada, seguindo a numeração estipulada, o José foi o primeiro a admirá-la com um sorriso estampado no rosto e, porque não dizê-lo sem rodeios, com a pele arrepiada, o que nele era sinal de grande emoção.
Tudo nas fotos era apologético. Os blocos de apartamentos que celebravam a modernidade eram enormes e de uma geometria verdadeiramente científica e marxista-leninista. E sucediam-se uns aos outros como uma floresta de betão armado, tão armado como a pátria do socialismo comunista, ou do comunismo socialista. As fábricas eram imensas, limpas, repletas de máquinas espantosas e de operários que transpiravam felicidade e boa disposição. Fossem homens ou mulheres, jovens, velhos ou gente de meia-idade, todos sorriam com um sorriso tão natural que até parecia artificial. Mas de artificial não tinha nada. Na URSS, a Pátria do socialismo científico e de Lenine, Estaline e Brejnev, nada havia de artificial, tudo ali era fruto do trabalho de operários e camponeses, fossem homens ou mulheres, militantes ou simpatizantes do Partido Comunista da União Soviética, e do engenho dos seus dirigentes que eram os melhores comunistas do mundo. Razão tinha o camarada Alberto Punhal, a URSS era o sol da Terra, era quem iluminava o mundo, quem lhe abria os horizontes, quem apontava o rumo a seguir a todos os explorados da humanidade. A altura dos edifícios estonteava-o, as fotografias onde se via o camarada Brejnev, a sorrir e a acenar às massas na Tribuna da Praça Vermelha durante o desfile do 1º de Maio, enchiam-no de entusiasmo revolucionário. Em várias fotografias aparecia o camarada Punhal a ser cumprimentado e beijado pelo camarada Brejnev. Alberto Punhal sorria, Brejnev sorria, os camaradas da delegação portuguesa ao congresso do PCUS sorriam, os camaradas da comissão de receção do PCUS aos convidados ao congresso do PCUS sorriam, os polícias sorriam, as estátuas sorriam, até Lenine sorria em várias fotografias que enquadravam o camarada Brejnev, enquanto discursava, brilhava ou acenava. As cores do Palácio de Inverno eram tão intensas que resplandeciam, enchendo os olhos de quem as observava. Então que dizer da Praça Vermelha. A Praça Vermelha era tão vermelha, mas tão vermelha, que toda a gente percebia logo à primeira observação porque lhe chamavam assim. As filas para visitar o mausoléu de Lenine davam várias voltas ao edifício e ainda se estendiam por centenas, senão mesmo milhares, de metros de empedrado. Militares do exército vermelho sorriam enquanto tiravam fotografias às namoradas e às mulheres, ou eram fotografados por elas, ou por algum camarada que por ali passava. Os filhos sorriam para os pais, os pais sorriam para os filhos, os avós sorriam para os filhos e para os netos, os netos sorriam para os avós e para os pais, os polícias sorriam para as pessoas, as pessoas sorriam para os polícias e a guarda de honra do mausoléu de Lenine marchava como se os seus elementos fossem incríveis ginastas com pernas quase até ao pescoço, enquanto as pessoas os admiravam sorrindo. Nos hospitais os médicos sorriam para os doentes e os doentes sorriam para os médicos como se não tivessem maleita nenhuma. Nos concursos de ginástica, os ginastas sorriam quando ganhavam medalhas, mas também quando não as ganhavam.
O verdadeiro socialismo era assim, a todos punha bem-dispostos, quer estivessem a trabalhar ou a descansar, a ler ou a dormir, a correr ou parados, nas bichas para o pão ou nas filas para o cinema, na bicha para o sabão ou na fila para o teatro, na bicha para a carne ou na fila para o balé. Até a cadela Laika sorria à sua maneira dentro da cápsula que a levou para o espaço. Podem não acreditar, mas na pátria do socialismo científico até os animais tinham outro comportamento. Não é que sorrissem, mas quase. Não é que falassem, mas quase. Não é que fossem gente, mas quase. Gagarin também sorria a bom sorrir e a camarada Valentina Tereshkova, a primeira mulher no espaço, também ria com toda a sua simplicidade proletária, filha de proletários.
Viver na URSS era como habitar no paraíso. Ou quase, pois nem tudo ainda era perfeito. Mas para lá marchava. Até nisso o camarada Brejnev e o camarada Alberto Punhal eram sinceros e verdadeiros, honra lhes seja feita: a URSS ainda não era uma sociedade comunista, mas para lá caminhava a passos largos.
Quando chegou ao fim da exposição, o camarada José, de tão entusiasmado, voltou ao início. E admirou mais uma vez aquela realidade toda. As fotografias não enganavam. Tudo ali era o testemunho de que o socialismo no mundo inteiro só podia triunfar. Na URSS não se via pobreza e respirava-se liberdade. Não se viam muitos carros, mas em contrapartida os transportes púbicos abundavam e o metro de Moscovo, o melhor e o mais belo do mundo, estava sempre cheio, mas nunca a abarrotar. E as mulheres eram lindas e loiras e bem proporcionadas. E sorriam sempre. Os homens também não eram desengraçados. As crianças tinham um ótimo aspeto e via-se logo que eram inteligentes. Falavam sempre ajuizadamente, esperavam a sua vez, não diziam disparates e comiam sempre nas cantinas uma comida cientificamente preparada para as tornar fortes, espertas e sadias. Por isso eram sempre os melhores atletas do mundo e também os melhores cientistas. Lá não existiam igrejas, nem padres, nem beatas. Os templos tinham dado lugar a museus ou tinham pura e simplesmente sido arrasados. Lá ninguém se ajoelhava perante Deus. Lá não existia Deus, só homens e mulheres de boa vontade. Lá ninguém se drogava, ninguém se prostituía, nem ninguém passava fome. Lá o que havia mais era fartura. Mas não havia desperdício. Isso é que era bom! Tudo o que lhes sobrava, os camaradas soviéticos distribuíam pelos povos necessitados do mundo: máquinas, medicamentos, roupa, calçado, armas, muitas armas, e mesmo sanitas, mas, e voltamos a repetir para que conste, sobretudo armas, muitas armas, mas também calçado, roupa, medicamentos, máquinas e até sanitas. Tudo, mas mesmo tudo o que lhes sobrava, eles, os camaradas soviéticos, distribuíam aos povos explorados e oprimidos do mundo, para se libertarem do jugo imperialista e capitalista.
Se todas as fotografias eram impressionantes na sua realidade reveladora, então o que dizer das que retratavam os desfiles comemorativos da Revolução de Outubro. Tudo nelas era de uma beleza arrepiante. A disposição geometricamente perfeita das pessoas que desfilavam com passos perfeitos dentro das suas roupas, ou das suas fardas, perfeitas, a perfeição dos gestos, a perfeição dos sorrisos, a perfeição dos acenos, a perfeição da pose dos dirigentes do PCUS na tribuna, a perfeição do alinhamento das medalhas que o camarada Brejnev ostentava no peito e que demonstravam, até à exaustão, a sua bravura, a sua dedicação e a sua sábia liderança que tinham levado a URSS a ser a maior e a mais digna nação do mundo.
Duplamente arrepiante eram as fotos onde se via o poderio militar soviético. Os exércitos desfilavam de tal forma perfeitos e arrumados que até pareciam de chumbo. Os carros de combate eram aos milhares. Lá nas alturas de Moscovo esquadrilhas de aviões rasgavam os céus deixando impressas no seu azul linhas de fumo tão perfeitas que até pareciam pintadas. E então que dizer dos mísseis! Bem, os mísseis intercontinentais eram impressionantes. E eram tantos que podiam destruir o mundo de um momento para o outro. Por isso é que as potências ocidentais tinham medo da URSS. Por isso é que ainda não a tinham atacado para destruir o socialismo que lá se construía com toda a sabedoria comunista. Ai de quem tivesse o atrevimento de se meter com a pátria de Lenine. Era atrevimento para nunca mais. Por isso é que o camarada Brejnev ria com aquele seu sorriso de urso polar. Um abraço seu e era a morte do artista.
Tão excitado ficou o camarada José com mais esta segunda ronda, que lhe apeteceu masturbar-se. Mas conteve-se. Uma exposição da URSS não era propiamente um filme com a Sofia Loren. Mais respeito, rapaz. Mais respeito. Ainda olhou mais uma vez para uma ginasta que fazia umas acrobacias a modos que provocantes. Mas quando olhou na outra direção deu de caras com uma foto onde o camarada Alberto Punhal estava com uma expressão tão séria e marxista-leninista que fez com que do entusiasmo e da excitação passasse à circunspeção.
O comunismo pode ser excitante, como muita coisa na vida, mas não é para aí que apontam as suas armas. Cada coisa a seu tempo, cada coisa no seu lugar. Assim é que é.