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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

08
Fev13

O Homem Sem Memória - 146

João Madureira

 

146 – O José foi formalmente dispensado das suas obrigações partidárias e compelido a cumprir uns meses de militância unitária, frente que andava muito descurada, quer pela deserção dos militantes mais sérios, que já não conseguiam disfarçar por mais tempo a sua militância comunista, quer porque a gente que por ali se encontrava ao deus dará era realmente sensaborona, titubeante e muito complicada de gerir, quer no espaço político propriamente dito, quer dentro do seu núcleo social.


O José detestava-os, não porque possuíssem a estranha mania da independência, mas porque faziam disso uma máscara para se protegerem especialmente dos ataques da esquerda e também para não serem hostilizados pela direita, onde tinham os amigos ou maior parte dos familiares. Afirmando-se de esquerda, davam-se bem com a direita e inclinavam-se para o centro.


Além da sua versão independente na associação de estudantes do Liceu, o José vestiu este seu novo fato unitário para conceder a si próprio um ar mais credível. E, de facto, cresceu em prestígio aos olhos da sua querida amiga Isabel, que, bem vistas as coisas, era o que mais lhe interessava no momento.


Por isso dedicou-se ao trabalho associativo com muito afinco, organizando principalmente sessões e eventos culturais. E cumpria as tarefas com satisfação. Quando calhava estar por perto a sua querida presidente, o prazer era redobrado. À falta de melhor tática, tornaram-se companheiros inseparáveis que estudavam emparelhados, passeavam muito e até se apalpavam e beijavam com tanto afinco que não era raro terem orgasmos simples e sinceros que lhes sabiam pela vida. No entanto, que nós saibamos, nunca chegaram a vias de facto, mas andaram lá muito perto. E foi isso que estragou tudo.


A Isabel, prudente como era, travava sempre a tempo. Ou melhor, refreava o José quando ele já estava tão empenhado no ato que nem dava conta que a Isabel fechava as pernas para lhe impedir a ousadia. Quando finalmente se apercebia da conjuntura, barafustava muito, mas sempre em vão. A Isabel prezava, e protegia, a sua virgindade com toda a perseverança de mulher de princípios. Não queria perder a sua independência, não queria ficar presa a alguém vítima de um ato irrefletido. Para casar ainda era nova e primeiro tinha de tirar um curso para poder escolher com quem queria viver a sua vida. E esse alguém, quando a levasse, “tinha de a levar inteira”, como gostava de afirmar.


O José porfiou e tornou a porfiar, chegando a confessar-lhe que a amava muito, que queria casar com ela, que mais isto e mais aquilo. Mas a Isabel, quando chegava o momento decisivo, fechava as pernas e dava por terminada a sessão. O José ficava colérico e, muitas das vezes, desorientado. Explicava que lhe custava sair daquele tipo de situações sem sofrer. Contava-lhe que sofria como um cão. Não terminar o ato deixava-o quase sem ar, vermelho e ofegante. Mas a Isabel não cedia, contrapondo que também ela sofria de um mal muito parecido, mas que nestas coisas do amor, quem fica com as marcas e as sequelas são sempre as mulheres. Ele disse-lhe que quando vinha ter com ela trazia sempre no bolso um preservativo, que por isso nada tinha a temer. A Isabel sorriu e disse-lhe que com ela o prazo de validade da camisinha ia ser ultrapassado, com toda a certeza. Ele explicou-lhe que tinha comprado não só um mas uma caixa deles. Ao que ela respondeu que ele era um rapaz com expectativas muito elevadas, mas que nestas coisas do amor carnal é preciso a concordância do par. Ele apelidou-a de conservadora e reacionária, que os tempos que viviam atualmente eram de liberdade, fraternidade e igualdade e que por isso mesmo estava na hora de destruir alguns tabus, nomeadamente esse da virgindade. Ela então perguntou-lhe se era virgem. Ele disse que não. Que não era homem para lhe dizer que a virgindade era um tabu e um mito reacionários sendo ele virgem. Ele era lógico. Ele aliava a teoria à prática. Ele era científico. Mesmo não parecendo, era um revolucionário coerente. A Isabel respondeu-lhe que também ela era coerente, mesmo não sendo revolucionária. Que para si a virgindade era como um escudo protetor. Era uma coisa que se partilha apenas com alguém muito especial. Era a prova de fogo do amor. Ele então perguntou-lhe se não o amava. Ela sorriu. Ele voltou a perguntar. E ela voltou a sorrir. Ele insistiu na pergunta mais uma vez. Ela então respondeu-lhe que sim, que o amava, mas que ainda não sabia se o amava o bastante para lhe dar o que pretendia. Ele beijou-a e tornou a beijá-la. Beijou-a copiosamente e com benefício. Ela respondeu na mesma moeda. Engalfinharam-se com muito empenho e com intensa loucura. E estiveram naquele enlevo de alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito tempo bastante para atingirem o ponto de ebulição. O José então pegou no preservativo, colocou-o como ensinavam as regras das boas práticas sexuais e mais uma vez tentou. E tentou. E voltou a tentar. Mas as coxas da Isabel, depois de fechadas, eram como as portas da gruta do Ali-babá, só uma palavra mágica as podiam desatravancar de modo a deixar que lá penetrasse quem devia penetrar. E, pelos vistos, nem o José era o Ali-babá e muito menos sabia a palavra mágica que abria o que devia abrir.


O José, vendo que mais uma vez dali não levava nada, foi-se embora prometendo que era um adeus definitivo. Que não estava para aturar mais atitudes preconceituosas da Isabel. Ela então encolheu-se dentro do seu desejo, e da sua desilusão, e disse-lhe que se fosse embora o mais rápido possível, que ali já não fazia nada. Que o seu amor era como uma ejaculação precoce. Quem declara que pensa em amor mas apenas pretende sexo, não passa de um animal vítima dos seus próprios instintos. Depois chorou. Ele então guardou o seu desejo no sítio recomendado às pessoas sensatas e tentou beijá-la de novo, mas foi parado com um grito tão intenso que até o cão da vizinha se pôs a ladrar com se tivesse visto um salteador. O José ficou sem pinga de sangue. E foi-se dali tão desgostoso como quando acabou de ler o livro de poemas “Só”, de António Nobre, que o próprio autor definiu como o livro mais triste de Portugal.


Escusado será dizer que o seu trabalho unitário na associação de estudantes acabou mesmo ali. E sem honra nem glória. 

06
Fev13

O Poema Infinito (132): delírio

João Madureira


Abre-se o vazio mesmo em frente das montanhas melodiosas. Eu sei calar a voz do amor. Aprendi-o de pequenino. Conheço quem amo pela cadência do pensar. Por isso, quando me inquieto, sobreponho a fala ao desejo. E eu desejo-te tanto que passo a noite a falar. Quando me calo tento pensar nas consequências desse delírio. Por isso cai-me das mãos a embriaguez do tempo, a insónia da noite e o trompete alucinatório de Miles Davis. E eu ali a olhar para os pedaços de grãos de luz com que o sol ilumina o teu olhar. E choro por sinais, como se quisesse enganar a distância que separa o meu corpo do teu corpo, o som do sangue que nos corre nas veias e a lucidez dos caminhos que avançam pelo meio das chamas como os lamentos dos felinos. E as nossas mãos cantam uma canção de embalar. E cantam ainda mais quando a lascívia regressa ao seu pânico solitário, lá onde a terra se enraivece, lá onde as raízes mortas ressuscitam, lá onde se transpira cada gota de desejo, onde ninguém recua perante as evidências, lá onde a memória fixa todo o amor suspenso como os jardins da Babilónia. Afinal o muro da indiferença move-se e os sentimentos dos néscios regressam em pânico ao seu lugar de origem. Mulheres arregaçadas dentro dos seus silêncios gozam a distância das nuvens e sibilam a metáfora dos seus cios e galopam cavalos memoráveis. Aos ciumentos ardem-lhes os olhos, aos loucos inflamam-se-lhes os vocábulos, por isso todas as palavras doces chegam dentro de naus carregadas de semântica. A multiplicação linguística é um milagre que mata a fome aos gigantes. Alguém grita dentro da sua rouca limpidez anunciando um parto delicioso com dor. Arde-nos a boca porque se alimenta de gestos suspensos. Todas as divindades sobram dentro da sua razão aparente. Dormimos no limiar do sonho. Acordamos no meio de uma ilha em chamas. O pânico tem o sabor da fruta do pecado. A febre é um incêndio que flutua dentro das nossas línguas. Voltamos ao caminho do medo. O sonho é uma máquina de contemplação onde o próprio medo se espanta com a voz fria das memórias. As palavras voam despedindo-se dos seus sentidos em busca da sua prometida liberdade. E choram quando ficam prisioneiras da ilusão. Os poemas são suturados com lágrimas copiosas e tornam-se impiedosos. Então choram gritando inclinados sobre os nossos corpos. As nossas bocas incendeiam-se com a mesma ternura com que se beijam. Por vezes repousam no seu riso. Por vezes fingem que descansam. Por vezes enrolam-se dentro das suas incertezas. A ternura nasce do chão e aponta na direção patética do infinito. A nossa fome de sexo fixa-se dentro da sua certeza de fresca ansiedade. A fé no tempo traz muito desperdício. Por isso as semanas se dobram umas nas outras. As almas confundem-se no mar. Está uma manhã de vento. As ondas invadem-nos o quarto. O sol torna-se vagaroso. O mar conquista tudo com a sua energia insólita. Comemos as palavras, moemos as sílabas, mastigamos os sonhos. Toda a gramática emerge dentro do seu pânico votivo. As árvores encolhem-se. O tempo soluça. Plantas novas nascem-nos nas mãos. Todo o trabalho que dá o amor aflora aos nossos olhos. Encontramo-nos na parte lírica da vida, por isso devoramos o silêncio e mudamos de cor como os camaleões. Aparecemos vindo da parte real da emoção com as louváveis maneiras dos amantes. Alguém semeia sorrisos nos campos. Uma chuva miudinha ajeita a água aos sonhos. Uma canção antiga enche-nos os sexos de ternura. Os nossos corpos bebem luz. Deitamo-nos em cima de palavras e adormecemos amando-nos devagar como quem chora baixinho de prazer. 

04
Fev13

Pérolas e diamantes (23): as pedradas do governo

João Madureira


O independente António Barreto, eminente sociólogo e presidente da prestigiada Fundação Francisco Manuel dos Santos disse, sem hesitar, ao Jornal I que o executivo de Pedro Passos Coelho, Vítor Gaspar, Miguel Relvas e Carlos Moedas “é um governo cobarde. O governo toma as medidas que tem de tomar, muitas delas terríveis e algumas justas, ainda por cima, e toma-as de supetão, manda para a rua, como quem atira pedras, bumba! Têm tido coragem para tomar medidas, mas era muito mais corajoso tornar as coisas públicas antes, discutir e envolver os parceiros sociais. Isso era coragem.”

 

Na mesma entrevista, sobre o relatório do FMI refere que “há muitas coisas que é o próprio governo que diz, mas faz com que seja o Fundo Monetário Internacional a dizer para não ter de ser o governo a fazê-lo. O que é ridículo. É de um altíssimo grau de cobardia.”

 

E a sua cobardia, dizemos nós sem hesitar, não se fica por aqui, pois este governo liberal (mas no mau sentido) montou uma insaciável máquina estatal de caça a todos os portugueses para lhes extorquir, através dos impostos, taxas e multas, os poucos tostões que lhes restam.

 

O executivo do PSD/CDS, é preciso que se diga, está a transformar o Estado num condomínio privado fiel às clientelas políticas e subserviente à gente dos negócios.

 

No relatório do FMI, que, como já foi demonstrado, é da autoria do governo português, há cortes para todos os gostos e feitios, mas apenas no Estado Social. A sua obsessão é destruir e arrasar tudo aquilo que dentro do Estado se reveste de preocupação com a sociedade.

 

O “menu” do governo, como muito bem qualificou Carlos Moedas, assenta apenas nos cortes na saúde, nas reformas, na educação e no aumento de impostos. Trocando isto por miúdos, podemos dizer que o executivo do PSD/CDS aponta unicamente num só sentido, no triste caminho do regresso à pobreza extrema, sem que o Estado tenha possibilidades de dar uma ajuda a quem precisa.

 

Mas a deslealdade não se fica por aqui, pois a divulgação do relatório do governo, que o próprio governo designa como sendo do FMI, tem subjacente uma estratégia saloia, a de desviar a atenção da questão essencial, que é o que vai fazer o Tribunal Constitucional com o Orçamento do Estado.

 

Para Pedro Passos Coelho, a inconstitucionalidade do seu Orçamento de Estado é apenas mais um entrave no prosseguimento dos altos desígnios do governo. Para os seus mais diretos colaboradores, e para algumas das pardas individualidades liberais que lhe dão apoio político e ideológico, o Estado de direito é, além de uma irrelevância maçadora, um empecilho que urge alterar, se não mesmo rasgar, e mandar para o caixote do lixo.

 

Todos nos damos conta de que este governo submete todo o país à sua gestão errática, espalhando pela sociedade um cardápio de medidas políticas avulsas e erráticas, provando todos os dias que não possui qualquer estratégia coerente e socialmente justa e equitativa para o país.

 

Pelo caminho que isto leva, cada vez há mais gente a pensar, e provavelmente bem, de que a profecia cínica do engenheiro Sócrates de que havíamos de ter saudades do PEC IV, é atualmente, uma evidência, mesmo que serôdia.

 

Daí, presumivelmente, Cavaco Silva ter dito na sua primeira mensagem do ano que sem crescimento económico, os sacrifícios por que estamos a passar não nos vão servir para nada, nem para coisa nenhuma.

 

Os economistas nacionais e internacionais também já vieram explicar que um processo de redução das contas públicas acompanhado por um negativo crescimento económico tende a tornar-se política e socialmente insustentável. E por várias e distintas razões.

 

Desde logo porque depois da austeridade vem a quebra de produção e a esta junta-se a quebra das receitas fiscais, produzindo a urgência de mais austeridade para atingir as metas do nosso défice, o que por seu lado gera novas quedas de produção e assim sucessivamente. É o que é apelidada de espiral recessiva. Isto está a originar uma perda de poder de compra que se aproxima dos 30%.

 

Ora toda esta estratégia por parte de Passos Coelho tem como objetivo voltar aos mercados. E, estamos em crer, será essa a altura para o primeiro-ministro cantar vitória. Mas é provável que essa seja a sua vitória de Pirro.

 

Mas mesmo que isso se verifique, importa saber o que é que o país fará depois de se libertar da troika. Porque se não existir uma mudança estrutural no tecido produtivo nacional, todos os sacrifícios foram em vão. Até agora, e no ano que se avizinha, a nossa estrutura produtiva enfraqueceu de tal maneira que agoniza entre o espanto e a incredulidade.

 

Os trabalhadores ou estão no desemprego, ou nos seus postos de trabalho, com o coração nas mãos, cansados e desmotivados, enquanto os nossos melhores e mais talentosos jovens foram literalmente obrigados a emigrar para poderem aspirar a virem a ter uma vida minimamente digna e estável. E esta, é bom que o lembremos, foi uma escolha e um ditame do governo e não da troika.

 

Como se isto fosse pouco, o governo conseguiu transformar um debate da sociedade civil num ridículo exercício de manipulação da opinião pública, onde o primeiro-ministro teve o atrevimento de fechar a porta da sala na cara dos portugueses, como se eles fossem parvos ou analfabetos.

 

Foi mais um truque, dos muitos que este governo é perito em engendrar. Na dita conferência, o executivo debateu consigo próprio a questão da reforma do Estado. Como se estivessem num lanche em família, discutindo entre um pastel de bacalhau, um camarão cozido, um golo de vinho branco e um sorriso maroto, o despedimento de 120 mil funcionários públicos, dos quais 50 mil são professores. O senhor primeiro-ministro, ladeado por Carlos Moedas, Vítor Gaspar e o inenarrável Relvas, sorria com o seu ar de raposo matreiro, enquanto acenava com a cabeça a dizer que sim, que sim. “Afinal foi para isso que fomos para o governo”, afirmava enquanto tornava visível a textura fina e branca do marisco que entretanto mastigava.

 

É já por demais evidente que este governo tem uma predisposição para o despropósito infantil e supérfluo. Mal sai de uma trapalhada, logo se mete noutra. Depois do disparate da fuga de informação sobre o falaz relatório do FMI, o executivo de Pedro Passos Coelho resolveu organizar o que denominou como uma conferência sobre o tema: Pensar Portugal – Um Estado para Uma Sociedade.

 

A entrada no local da sua realização, o Palácio Foz, foi controlada por uma militante do PSD, a mando do primeiro-ministro, para onde a senhora funcionária “social-democrata” apenas convidou pessoas que apoiam a política do governo, gente fiel, portanto. Fiel e acrítica, subserviente e anestesiada com o Estado da Nação. Calculo a originalidade das propostas discutidas e o seu sentido político e científico. Por isso é que a captação de imagens diretas foi proibida e a divulgação das doutas opiniões dos opinantes só poderem ser divulgadas após autorização dos citados. A verdade é que nenhuma delas apareceu noticiada nos órgãos de informação, o que nos leva a inferir do nível e da pertinência do que ali foi dito e discutido.

 

Esta foi a maneira como o governo mobilizou a sociedade civil para discutir os graves problemas do país. Por isso mesmo é que já nem consegue mobilizar a maioria da militância do PSD, porque a do CDS já nem se levanta da cadeira para cantar o Hino Nacional na companhia do seu parceiro de governo.

 

 

 

PS - Ao nível dos municípios, o presidente da Associação Nacional de Municípios, o autarca do PSD, Fernando Ruas, fez há uns dias atrás duras críticas à nova lei das finanças locais, chegando a classificar as intenções do governo como “uma machadada final na autonomia do poder local”.

 

Considerou ainda a nova legislação como uma “perfeita ingerência” na vida das câmaras, denunciando que na sua discussão não entraram os autarcas democraticamente eleitos.

01
Fev13

O Homem Sem Memória - 145

João Madureira


145 – Mas esta história de relatórios de crítica e autocrítica, de relatórios críticos sobre relatórios de crítica e autocrítica e ainda de relatórios críticos sobre os relatórios críticos de crítica e autocrítica deram lugar a uma espiral de relatórios críticos que ainda hoje estamos para perceber onde terminou.


Podemos no entanto afirmar que, pelo menos à escala dos nossos parcos conhecimentos, o camarada funcionário se viu na obrigação de escrever um relatório sobre os relatórios que lhe chegaram às mãos, bem assim como sobre os textos livres (ou não, mas não queremos entrar aqui em polémicas desnecessárias) dos camaradas pioneiros, coisa que muito tempo lhe ocupou e que muito sacrifício lhe exigiu, tendo mesmo pedido ao camarada José para lhe realizar um esboço que ele depois remataria com a ajuda do camarada Graça.


Ora, tão intricada tarefa criou um mal-estar na concelhia de Névoa que viria mais tarde a dar que falar e a definir algumas amizades e, sobretudo, a criar muitas e definitivas inimizades. Com a agravante de que, como todos sabemos, os marxistas-leninistas quando se zangam é para sempre.


O camarada funcionário, colocado pela direção regional do Norte entre as foices, os martelos e as estrelinhas do seu partido, resolveu distribuir o mal pelas aldeias. A fazer um relatório sobre a problemática da Escola dos Pioneiros tinha de chamar à pedra cada um dos intervenientes, pois eram todos ou culpados, ou inocentes, no problemático processo do seu encerramento. Ali não podia existir meio-termo. Essa era a estratégia.


A primeira coisa que fez foi reunir a Comissão Concelhia de Névoa e solicitar a cada membro efetivo, e também aos suplentes, como não podia deixar de ser dentro de um coletivo que baseava a sua razão de ser nos consensos mais alargados, um relatório sucinto, explícito e autêntico sobre a participação de cada camarada no processo.


Quando ouviram tal proposta, todos os camaradas ficaram com cara de caso. Muitos deles apenas tinham participado no assunto da Escola ao nível elementar de uma reunião onde se discutiu quem ficava responsável pela sua direção e quem lá ia ministrar aulas. Depois nunca mais tinham, sequer, pensado nisso. Aí o camarada funcionário foi aos arames.


“Por isso mesmo é que têm de fazer um relatório crítico e autocrítico sobre a vossa falta de disponibilidade e de terem encarado esta problemática com toda a leveza pequeno-burguesa que o nosso partido tanto critica”, disse sem se atrapalhar o camarada funcionário.


“Essa é que era boa!”, exclamaram, e repisaram, muitos dos presentes. “Tu vieste para aqui com a decisão tomada e agora queres que assumamos culpas no cartório numa coisa em que não fomos tidos nem achados? Era o que mais faltava. Se existiram coisas que correram mal na escola isso é da inteira, e exclusiva, responsabilidade do camarada José.”


“Ai é? Ai é?”, interpelou ironicamente o camarada funcionário para depois responder: “A culpa é de todos nós, camaradas. Se bem me lembro, aqui todos se eximiram de responsabilidades despachando tudo para cima dos ombros do camarada Graça, ou, o que ainda é mais grave, para cima dos meus. Ninguém teve a coragem de assumir qualquer tipo de responsabilidade ou tarefa na Escola. E como nem eu nem o camarada Graça tínhamos disponibilidade para juntar mais uma tarefa às milhentas que já desempenhamos, empurraram o assunto para o camarada José, mesmo sabendo que ele era criticista, ou lá o que é, e que, portanto, podia arranjar problemas no desempenho da sua tarefa.”


O camarada pai do camarada pioneiro João, vendo que as coisas tendiam a complicar-se resolveu atacar: “Vais-me desculpar, mas quem indicou o nome do camarada José não fomos nós, foi o camarada Graça.” “Desculpa-me lá camarada, mas deixa que te faça uma pergunta: Quem são os “nós”?” Ao que o camarada pai do camarada pioneiro João respondeu: “”Nós” somos todos aqueles que não participaram ativamente na Escola de Pioneiros.” “Vês, estás a dar-me razão. Vocês não participaram ativamente, e sublinho o “ativamente”, na Escola de Pioneiros, logo recusaram-se a aderir a uma iniciativa do Partido decidida pelo Comité Central, daí o serem culpados pelo seu encerramento”, disse o camarada funcionário já um pouco fora de si. “E é sobre isso que devem falar no vosso relatório de crítica e autocrítica. Ou, dito de outra forma, para ver se os camaradas entendem melhor, no vosso relatório deve apenas constar a autocrítica, pois, pelo que estou a ver, a crítica que fazem ao processo da Escola de Pioneiros é demagógica e…” “… Pequeno-burguesa…” “… Sim, pequeno-burguesa”… “… E de fachada socialista…” “… Sim, e de fachada socialista. Obrigado por mo lembrarem. Tem a palavra o camarada Graça.”


O camarada Graça tomou a palavra para lembrar que a decisão da escolha do nome do camarada José para dirigir, e dar aulas, na Escola de Pioneiros foi do coletivo e não dele. No que foi interrompido pelo camarada pai da camarada pioneira Lídia que lhe recordou o facto de ter sido ele quem teve a infeliz ideia de lembrar, e recomendar, o nome do seu amigo para desempenhar a tarefa.


Aí o camarada Graça deu um murro na mesa e disse que não admitia insinuações desse tipo, pois ele nunca confundiu as relações pessoais com as tarefas partidárias, ao contrário do camarada que tinha acabado de falar que travava dentro do partido uma guerra surda com outros camaradas para alcançar o desiderato de ser ele a dirigir a célula dos professores e não o camarada que atualmente desempenhava tal cargo.


Vendo que a discussão estava a entrar por um caminho nada recomendável, e muito pouco marxista-leninista, convenhamos, o camarada funcionário pediu licença para propor um pequeno intervalo pois tinha de fazer um telefonema para o Porto para contactar o seu camarada controleiro no sentido de receber diretivas mais precisas sobre o assunto em epígrafe (Perdão camaradas leitores, não, camaradas leitores não, leitores camaradas ou de outro tipo, desculpem-me a confusão. Por vezes os narradores também são vítimas da síndrome de Estocolmo, entre outras coisas.), em discussão.


Quando a comissão concelhia de Névoa do Partido Comunista se voltou a sentar à volta da mesa, o camarada funcionário estava ainda agarrado ao telefone e a escrever o que alguém lhe dizia do outro lado da linha. Foi com cara de poucos amigos que articulou o que a seguir relatamos.


“Camaradas, quero que saibam que liguei para o máximo responsável da Direção Regional no sentido de saber se existia alguma possibilidade de terminarmos com a problemática dos relatórios já aqui, pois, pelo que me apercebo, a questão pode trazer-nos vários e distintos problemas. As opiniões são muitas e diversas, mas a realidade objetiva é só uma: a Escola encerrou e, ao que parece, o Partido quer saber de quem é a culpa. E daqui não sai. Porque a responsabilidade política tem de ser de alguém. Não de uma pessoa só, mas de um organismo, já que aqui no Partido a responsabilidade, tanto nos êxitos como nos fracassos, é do coletivo, não das pessoas individualmente. Relativamente aos relatórios, infelizmente as notícias são más, todos vão ter de fazer o seu e nele vão ter de assumir a sua cota parte de responsabilidade. Disseram-me que no Partido a culpa não pode morrer solteira. E daí não saem. Daí ninguém os tira. Além disso, o camarada com quem falei disse-me que também ele, coitado, foi incumbido de elaborar um relatório que tem de entregar ao camarada que o controla para, também ele, elaborar o seu relatório que tem de entregar na sua secção que, por seu lado, vai ter de elaborar um relatório conclusivo que vai ser entregue em mão ao camarada Secretário-Geral que elaborará um relatório final para o Comité Central discutir e aprovar, para depois serem tomadas as convenientes decisões. E por agora é tudo.”


Para terminarmos o assunto da Escola de Pioneiros, informamos os estimados leitores, e os distintos companheiros de luta, que da análise do relatório do camarada Secretário-Geral resultou a destituição do camarada do Comité Central com a pasta da organização dos pioneiros, que passou a suplente da direção de um organismo regional; a transferência do camarada da direção regional do Norte para os Açores e também a deslocação do camarada funcionário do Partido em Névoa para o Minho. Ao Graça foi-lhe negada a inscrição, e participação, numa turma de militantes que iam para a URSS frequentar a Escola de Quadros e aí aprenderem a ser funcionários comunistas de primeira.


Aos restantes intervenientes no processo, o Partido resolveu não aplicar nenhuma sanção especial, limitando-se a mandar elaborar uma pequena ficha secundária, para apensar à principal, com a indicação da prática de trabalho fracionário em pequena dimensão. A princípio ainda foi aventada a hipótese de expulsar do Partido todos os elementos da Comissão Concelhia, mas isso era o mesmo que acabar com o Partido em Névoa, pois, apesar de poucos e maus, isto segundo as conversas informais dos dirigentes nacionais, eram eles que davam corpo ao Partido. Era preferível poucos e maus do que nenhuns

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