151 – A verdade é que a peça foi escrita, musicada, ensaiada e levada à cena em pouco tempo. Os textos todos os sabiam de cor e salteado, as músicas eram as que passavam todos os dias na rádio e os atores e atrizes eram simples aprendizes de feiticeiro intentando disfarçar-se de revolucionários.
A peça era tão popular que tinha mais figurantes que atores, sendo que os figurantes, por artes do próprio mafarrico, passavam por verdeiros atores e os verdadeiros atores, por obra e graça da emergente revolução, eram encarados como figurantes. Em tempos de mudanças aceleradas, a arte é revolucionada pela própria verdade, sendo que a verdade para uns é a mentira para os outros. E vice-versa.
Por ali andavam citados excertos de todos os bons dramaturgos da cultura ocidental, só que as referências eram todas maneiristas. Quem estava por dentro era capaz de identificar citações de Shakespeare resumidas em um “não” do Rei Lear, num “sim” do Círculo de Giz Caucasiano de Brecht, ou numa interjeição burlesco-judaica do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Mas de boas intenções está a cultura portuguesa cheia. E o teatro também.
Podemos resumir a peça em alguns momentos basilares: um bom ator com cara de parvo a fazer disso mesmo, vários comunistas a fazer também deles mesmos, o José a atuar como drogado e filho da burguesia, o José a compor o papel de membro da mocidade portuguesa, o José a fazer de escravo angolano chicoteado pelos temíveis, e terríveis, colonialistas portugueses, e no momento mais celebrado do espetáculo, o Manuel António a cantar o “Povo que lavas no rio” enquanto em palco meia dúzia de atores desengonçados se arrastavam pelo chão fazendo gemer as velhas tábuas do palanque.
Podemos dizer que a peça foi um sucesso em Névoa, terra muito pouco habituada a espetáculos tão apelativos. Pena foi que os assistentes se resumissem apenas aos militantes de esquerda e respetivos familiares. Mas serviu, pelo menos, para dar calor aos convencidos da revolução de que o seu convencimento não era em vão.
Por exemplo, a mãe do José encheu-se de chorar baba e ranho quando viu o seu rebento em cena saudar Salazar e ser apupado pelo público presente; quando o avistou derreadinho de todo debaixo de um saco de café que transportava às costas, sendo chicoteado por um feroz colonialista que, curiosamente, usava o chapéu versão africana, ou indiana, da GNR que o guarda Ferreira resolveu emprestar à comandita a pedido do filho; ou quando o enxergou aos ziguezagues e aos tombos pelo palco fora fazendo-se de drogado e filho da burguesia. Claro está que só descobriu que o José estava a representar esse malfadado papel depois de dois camaradas operários o apelidarem disso mesmo, senão, pelo menos para a Dona Rosa, o José apenas representava o papel de bêbado, imitando na perfeição o guarda Ferreira quando chegava embriagado ao lar, depois de mais uma noite de afogamento das insónias existenciais em copos de vinho nas tabernas da cidade, que eram a modos como a sua via-sacra. É bem verdade que cada filho de Deus transporta a sua cruz.
Faltaríamos à verdade se não aclarássemos que até o guarda Ferreira verteu a sua lagrimazita vendo o seu filho fazer papel de parvo. O José, na visão do seu progenitor, podia não ser parvo nenhum, mas representava esse papel na perfeição. Cada um é para o que nasce, e o José era um ás a fazer papel de parvo. Por isso fazia papel de fascista parvo, fazia papel de preto parvo, fazia papel de drogado parvo. E de tão parvo que, por momentos, todos na sala se convenciam que era mesmo parvo rematado.
Por isso o espetáculo resultou na perfeição. O idiota atuava tão bem no seu papel de idiota que todos saíam do espetáculo convencidos que era mesmo idiota; os comunistas faziam tão bem disso mesmo que ninguém diria que eram mesmo comunistas, porque na vida real até os comunistas são incapazes de fazer de comunistas tão bem como os atores que, sendo comunistas, devem tentar não o aparentar para que o público consiga distinguir a realidade da ficção, pois, por muito que queiramos, a realidade é a realidade e a ficção é outra coisa diferente. Porquanto um ator comunista pode fazer de comunista, mas nunca conseguirá sê-lo verdadeiramente. Porque um comunista nunca atua, nunca faz de conta, nunca se disfarça. Por isso é que, voltamos a repetir, é extremamente difícil fazer de comunista, mesmo sendo-se comunista. Um comunista disfarçado dele próprio é quase um paradoxo. Ninguém, nem mesmo os comunistas, conseguem representar-se a si próprios sem se sentirem ridículos. Eu sei que isto é um pouco complicado de entender, mas todos temos de fazer um esforço acrescido para que a explicação resulte. E se mesmo assim não resultar, tentem a via da tolerância e sigam em frente.
Os irmãos do José foram postos fora da sala porque convencidos, pela sua atuação de negro escravizado, de que o terrível, e temível, colonialista, lhe assentava com o chicote a valer, romperam pelo palco fora e só não lhes deram o devido troco porque a Dona Rosa lhes gritou cá de baixo que aquilo era tudo a fingir, mesmo que não parecesse.
Claro está que este desempenho criou um mal-estar no grupo cénico que fez com que, numa reunião de emergência, se discutisse se era plausível continuar com a apresentação do espetáculo em Névoa, dado que a família do José, por muito que se lhe fizesse ver que o que se passava em cena era tudo a fazer de conta, assistia sempre à peça e participava nela através do choro convulsivo da Dona Rosa e das entradas de rompante em cena dos irmãos Ferreira, perante a total impavidez do guarda Ferreira, tentando salvar o José de mais umas chicotadas, pontapés e insultos de indolência e ignorância.
Aqui que ninguém nos ouve, o diretor e demais elementos do grupo, resolveram deixar de apresentar o espetáculo em Névoa porque, de repente, as pessoas já iam aos “Canários”, não para assistirem à representação da peça que se interpretava em palco, mas sim para presenciarem o desempenho da família Ferreira na plateia.
Temos de convir que o povo tem sempre razão, mesmo que não pareça. E identifica sempre o cerne da questão, que, neste caso, era o espetáculo. E o espetáculo não se desenrolava em cima do palco, mas sim na zona do público. E isso era a inversão do teatro, revolucionário ou não. Alguns dos elementos do grupo até acharam a ideia da transferência do espetáculo do palco para a plateia como boa. Só não admitiam era que aqueles pobres coitados da família Ferreira fossem considerados atores de primeira linha, eles que não representavam nada, apenas agiam primitivamente em defesa do irmão que julgavam ameaçado, isto apesar de estarem fartos de saber que era tudo a fingir.
Depois de um mês em cartaz, a peça levada à cena pelo grupo recreativo e cultural dos “Canários”, resolveu dar por terminada a temporada. Estava à vista de todos, até do José, que a sua família tinha dado cabo do espetáculo, pois conseguiram tirar o protagonismo aos verdadeiros atores e metamorfosear uma peça revolucionária num espetáculo de revista à portuguesa, o que era intolerável. Alguém sugeriu que se transformasse o espetáculo em itinerante, levando-o a várias vilas e aldeias dos arredores. Mas o José, também já ele farto do assédio constante da sua família, e sabendo quanto a casa gasta, lembrou que os Ferreiras eram gente para se deslocarem em grupo fazendo caravana como se fossem artistas de circo. E, ele, como era bom de ver, não os podia impedir de fazerem o que achavam por bem fazer. O 25 de Abril serviu para isso mesmo, para cada um ser livre.
Escusado será dizer que o desânimo tomou conta da rapaziada. Mas foi circunstância de pouco dura. O José disse, e bem, que existia uma maneira de resolver o imbróglio: o espetáculo tinha sim de se adaptar à itinerância, mas era necessário que rumasse a terras longe da nossa. Dessa forma, a família Ferreira, por falta de mobilidade, via-se, mesmo contra a sua vontade, privada de meios para se poder deslocar atrás da caravana nevoense dos “Canários”. Escutaram-se exclamações de contentamento na sala.
“Amigo Crispim”, ouviu-se aos de sempre na taberna próxima, “toca a trabalhar, pois a malta do teatro está de volta.” E o bêbado com a mania da filosofia tornou à sua teima: “A malta dos «Canários» é muito mais ligada à política, que é uma puta porca… do que ao teatro, que é uma porca puta, ou... o teatro é um pretexto para a porca… o que eles querem com todas estas macacadas sei-o eu bem…” e ia a fazer um gesto feio e obsceno na direção da porta, quando o quarteto do copo e das moelas (e também do pão e das azeitonas e dos ovos cozidos e das costelinhas fritas e das pataniscas de bacalhau e dos carapaus de escabeche e das iscas de fígado com cebolada e do polvo frito e dos rojões do redenho e do caldo de pedra e da feijoada e do rancho…) o avisou: “Cala-te mas é, pois estás bêbedo como um cacho”.