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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Mar13

O Poema Infinito (138): insinuação

João Madureira


Adivinho-te pela insinuação do corpo, pelo devagar do teu amor, pela vista jubilosa do teu olhar e pela frescura verde da tua luz. Junto aos pinheiros desafetamos os pensamentos com a lentidão clamorosa do entardecer. Perto do rio, as sombras estendem o seu sono pelo susto breve do adormecimento. O pensamento recupera o seu vagar. A infância imensa ainda se agita dentro de nós. E nós dentro dela. O tempo move-se na ordem singular da sua glória eterna. Com o declinar da tarde, as palavras exultam na sua nova grafia acústica. Os bosques prolongam-se nos seus dédalos eficazes de verdura. Os faunos andam por aqui. E despertam dentro do seu ócio pesado e da sua nitidez surda. Os animais do bosque fundem um novo tempo e um outro espaço. As nuvens do poente saturam-se de luz e paciência. E a noite começa a expandir-se próxima do seu lume. Os nossos olhos recuperam as representações do dia. E brilham entrando pela razão da alma. As imagens sofrem o trabalho invisível dos enigmas e recuperam a terra antiga e os anos de paciência iluminada. A eternidade do entardecer é frágil por isso se desenha no sossego jubiloso das águas. E o silêncio traz mais silêncio e este mais silêncio ainda. Alguém fala dentro do seu procedimento de entrega. Também o vagar é eterno, como eterna é a nostalgia e o sossego abstrato dos objetos. Identificamos o amor pelo seu uso e deixamos que a noite nos narre a eternidade do mundo. Todo o espaço irradia o seu tempo. A golpes de alma se subverte a evidência da morte. O mundo oferece-se aos homens. A idade do tempo desassossega-nos. O mesmo aconteceu a Noé quando as suas pombas sacramentaram as águas que engoliram as montanhas e as palavras. Toda a glorificação consome a obra e o esplendor da ordenação e a uniformidade oferecida das flores. Por isso Deus se consuma dentro da sua tepidez divina. Tudo o que é divino se reduz à sua eternidade estancada. Aproximo-me da idade diáfana da lucidez. Por isso sinto o afeto doloroso do alheamento a invadir-me com a sua insondável invisibilidade de exílio. Nos campos brilham os frutos na sua evidência vegetal. Ouve-se uma música imóvel. O mundo volta a iluminar-se dentro da sua abstração de borboleta caótica. Da nossa janela vê-se o mundo todo e também o eixo imperfeito das estações. O horizonte torna-se invisível. Ruminamos a brisa prodigiosa da lucidez do pinheiral. As folhas das árvores iluminam-se com a lucidez impetuosa das lágrimas. O mundo move-se no seu profundo júbilo expansivo. Este é o início de mais uma diegese antiga. E as nuvens prolongam-se ao ritmo da narração. A noite transporta consigo novas imagens enigmáticas. O universo é uma extensão de silêncio. Por isso o teu corpo é um alicerce de surpresa. E a surpresa fixa-se na previsibilidade dos sexos. A noite sobe por nós. A imensidão do céu aproxima-se do nosso sono. O prazer torna-se azul. Devolvemos as estrelas à sua própria graça. A chuva ilumina as ruínas. A madrugada trará a brisa húmida e a luz paciente da humildade. O vento varre as portas e as janelas das casas. As aves cicatrizam-se nos seus voos. Eva volta a ser pecadora. Por isso sinto um infinito respeito pela estupidez do Adão. Todo o rigor contemporâneo me abandona. 

18
Mar13

Pérolas e diamantes (29): o protocolo e as coisas

João Madureira

 

A arte existe porque a vida não chega, lembra-nos o poeta brasileiro Fernando Gullar.

 

Observo diferentes fotos antigas de Chaves e penso que esta terra já foi berço de excelentes artistas e também de bons estadistas. Homens que entendiam o exercício da política como uma arte. Mas atualmente, Deus meu, tocamos mesmo no fundo. O que temos em termos de ciclo político autárquico é mau e o que se aproxima não será, quase de certeza, melhor. Que Deus nos ajude, se puder.

 

Eu agnóstico me confesso, mas deixo que o materialismo e a metafísica convivam dentro de mim em afetuosa tensão. Nisso acompanho Fernando Gullar. Não sou religioso, nem acredito em Deus. Mas, apesar de o não ser, considero que o Universo é inexplicável.  

 

Inexplicável é também o que os responsáveis atuais fizeram à nossa cidade e ao nosso concelho. Não sei porquê, mas vem-me à memória o título do livro de Arthur Koestler, “O Zero e o Infinito”.

 

Talvez um dia me inspire a escrever um conto intitulado “O Infinito e o Zero”.

 

A cada dia que passa fico mais estupefacto em relação ao mundo. Porque é que existe a matéria em vez do nada? Dizem que o mundo teve um começo. Falam do Big Bang, dessa enorme explosão de energia e matéria. Mas como é que do nada surge uma deflagração dessa magnitude? É um mistério sem decifração.

 

Também o poder autárquico desta última década continua a ser para mim um mistério sem explicação. Como é que gente com tanta falta de talento para a política foi capaz de se impor no seu partido e de ganhar eleições? Eu gostaria de conseguir entender o enigma, porque considero que é melhor ter uma resposta explicativa das coisas do que não a ter. Afinal estamos sujeitos ao acaso, à Teoria do Caos. Em política, particularmente na nossa cidade, tudo pode acontecer.

 

Foi a ler “O Bom Soldado Svejk”, de Jaroslav Hasek, que descobri uma possível resposta, não para a explicação da origem do Universo, pois isso era pedir demais a um livro humorístico, mas sim para a vitória do atual poder autárquico. Que também pode ser extensível a anteriores executivos camarários e de algumas juntas de freguesia.

 

O bom soldado Svejk conta, a dado momento, a história de um homem que num interrogatório, quando lhe perguntaram se tinha alguma objeção ao protocolo, disse: “Independentemente da forma como se passaram as coisas, sempre se passaram de alguma forma, até à data não houve vez nenhuma em que não se tivessem passado de alguma forma.”

 

De facto, em Chaves, depois de tanto esforço por parte das autoridades civis e militares, depois de tantos presidentes de câmara, vereadores, presidentes de junta, assessores, secretários, doutores, arquitetos, engenheiros, deputados, deputadas, governadores civis e marechais, até à data não houve vez nenhuma em que as coisas não se tivessem passado de alguma forma. E nós somos testemunhas de que nunca ninguém pôs em causa o protocolo, independentemente da forma como se passaram as coisas, pois elas, as coisas, sempre se passaram, e passam, de alguma forma.

 

Também nós flavienses, à imagem e semelhança do valente soldado Svejk, perante os absurdos colossais e insondáveis dos nossos políticos, e das suas políticas, resistimos oferecendo a mais veemente cooperação.

 

Foi Montesquieu, nas suas Cartas Persas, que deu origem a uma tradição humorística que pretendia demonstrar quão ridículo é o mundo se observarmos os seus princípios civilizacionais com olhos de um extraterrestre.

 

Estamos em crer que os discursos da gente que nos governa são todos inspirados no coronel Salzburgo, um dos muitos personagens do livro de Hasek. O militar padece da mania de definir enciclopedicamente qualquer objeto que lhe apareça ao alcance da mão, ou do discurso: “Um livro, meus senhores, é um conjunto de folhas de papel de recorte diferente e formato diverso que é coberto de carateres impressos e depois agrupado, cosido e colado. Pois. Sabeis, meus senhores, o que é a cola? A cola é um preparado glutinoso para fazer aderir papel, madeira e outras substâncias.”

 

E perante a nossa teimosia em não querermos ser tratados como imbecis, esses nossos dirigentes de certeza que olham para nós com os olhos, e as intenções, do catequista violento do delicioso livro de Hasek, que “pretendia aproximar toda a gente de Deus” à força de porrada. Pois, como conta o bom soldado Svejk, ele esbofeteou um aluno porque apresentara determinadas dúvidas relativamente à Santíssima Trindade. “Recebeu três estalos. Um por Deus Pai, o segundo pelo Filho de Deus, e o terceiro pelo Espírito Santo.”

 

Estimados leitores, pelo que vou lendo, escutando e observando, cada vez mais me convenço que Mark Twain tem toda a razão: “A Humanidade tem apenas uma arma eficaz: o riso.”

 

E é bem verdade que cá por Chaves também nos rimos… para não chorar. 

15
Mar13

O Homem Sem Memória - 151

João Madureira


151 – A verdade é que a peça foi escrita, musicada, ensaiada e levada à cena em pouco tempo. Os textos todos os sabiam de cor e salteado, as músicas eram as que passavam todos os dias na rádio e os atores e atrizes eram simples aprendizes de feiticeiro intentando disfarçar-se de revolucionários.


A peça era tão popular que tinha mais figurantes que atores, sendo que os figurantes, por artes do próprio mafarrico, passavam por verdeiros atores e os verdadeiros atores, por obra e graça da emergente revolução, eram encarados como figurantes. Em tempos de mudanças aceleradas, a arte é revolucionada pela própria verdade, sendo que a verdade para uns é a mentira para os outros. E vice-versa.


Por ali andavam citados excertos de todos os bons dramaturgos da cultura ocidental, só que as referências eram todas maneiristas. Quem estava por dentro era capaz de identificar citações de Shakespeare resumidas em um “não” do Rei Lear, num “sim” do Círculo de Giz Caucasiano de Brecht, ou numa interjeição burlesco-judaica do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Mas de boas intenções está a cultura portuguesa cheia. E o teatro também.


Podemos resumir a peça em alguns momentos basilares: um bom ator com cara de parvo a fazer disso mesmo, vários comunistas a fazer também deles mesmos, o José a atuar como drogado e filho da burguesia, o José a compor o papel de membro da mocidade portuguesa, o José a fazer de escravo angolano chicoteado pelos temíveis, e terríveis, colonialistas portugueses, e no momento mais celebrado do espetáculo, o Manuel António a cantar o “Povo que lavas no rio” enquanto em palco meia dúzia de atores desengonçados se arrastavam pelo chão fazendo gemer as velhas tábuas do palanque.


Podemos dizer que a peça foi um sucesso em Névoa, terra muito pouco habituada a espetáculos tão apelativos. Pena foi que os assistentes se resumissem apenas aos militantes de esquerda e respetivos familiares. Mas serviu, pelo menos, para dar calor aos convencidos da revolução de que o seu convencimento não era em vão.


Por exemplo, a mãe do José encheu-se de chorar baba e ranho quando viu o seu rebento em cena saudar Salazar e ser apupado pelo público presente; quando o avistou derreadinho de todo debaixo de um saco de café que transportava às costas, sendo chicoteado por um feroz colonialista que, curiosamente, usava o chapéu versão africana, ou indiana, da GNR que o guarda Ferreira resolveu emprestar à comandita a pedido do filho; ou quando o enxergou aos ziguezagues e aos tombos pelo palco fora fazendo-se de drogado e filho da burguesia. Claro está que só descobriu que o José estava a representar esse malfadado papel depois de dois camaradas operários o apelidarem disso mesmo, senão, pelo menos para a Dona Rosa, o José apenas representava o papel de bêbado, imitando na perfeição o guarda Ferreira quando chegava embriagado ao lar, depois de mais uma noite de afogamento das insónias existenciais em copos de vinho nas tabernas da cidade, que eram a modos como a sua via-sacra. É bem verdade que cada filho de Deus transporta a sua cruz.


Faltaríamos à verdade se não aclarássemos que até o guarda Ferreira verteu a sua lagrimazita vendo o seu filho fazer papel de parvo. O José, na visão do seu progenitor, podia não ser parvo nenhum, mas representava esse papel na perfeição. Cada um é para o que nasce, e o José era um ás a fazer papel de parvo. Por isso fazia papel de fascista parvo, fazia papel de preto parvo, fazia papel de drogado parvo. E de tão parvo que, por momentos, todos na sala se convenciam que era mesmo parvo rematado.


Por isso o espetáculo resultou na perfeição. O idiota atuava tão bem no seu papel de idiota que todos saíam do espetáculo convencidos que era mesmo idiota; os comunistas faziam tão bem disso mesmo que ninguém diria que eram mesmo comunistas, porque na vida real até os comunistas são incapazes de fazer de comunistas tão bem como os atores que, sendo comunistas, devem tentar não o aparentar para que o público consiga distinguir a realidade da ficção, pois, por muito que queiramos, a realidade é a realidade e a ficção é outra coisa diferente. Porquanto um ator comunista pode fazer de comunista, mas nunca conseguirá sê-lo verdadeiramente. Porque um comunista nunca atua, nunca faz de conta, nunca se disfarça. Por isso é que, voltamos a repetir, é extremamente difícil fazer de comunista, mesmo sendo-se comunista. Um comunista disfarçado dele próprio é quase um paradoxo. Ninguém, nem mesmo os comunistas, conseguem representar-se a si próprios sem se sentirem ridículos. Eu sei que isto é um pouco complicado de entender, mas todos temos de fazer um esforço acrescido para que a explicação resulte. E se mesmo assim não resultar, tentem a via da tolerância e sigam em frente.


Os irmãos do José foram postos fora da sala porque convencidos, pela sua atuação de negro escravizado, de que o terrível, e temível, colonialista, lhe assentava com o chicote a valer, romperam pelo palco fora e só não lhes deram o devido troco porque a Dona Rosa lhes gritou cá de baixo que aquilo era tudo a fingir, mesmo que não parecesse.


Claro está que este desempenho criou um mal-estar no grupo cénico que fez com que, numa reunião de emergência, se discutisse se era plausível continuar com a apresentação do espetáculo em Névoa, dado que a família do José, por muito que se lhe fizesse ver que o que se passava em cena era tudo a fazer de conta, assistia sempre à peça e participava nela através do choro convulsivo da Dona Rosa e das entradas de rompante em cena dos irmãos Ferreira, perante a total impavidez do guarda Ferreira, tentando salvar o José de mais umas chicotadas, pontapés e insultos de indolência e ignorância.


Aqui que ninguém nos ouve, o diretor e demais elementos do grupo, resolveram deixar de apresentar o espetáculo em Névoa porque, de repente, as pessoas já iam aos “Canários”, não para assistirem à representação da peça que se interpretava em palco, mas sim para presenciarem o desempenho da família Ferreira na plateia.


Temos de convir que o povo tem sempre razão, mesmo que não pareça. E identifica sempre o cerne da questão, que, neste caso, era o espetáculo. E o espetáculo não se desenrolava em cima do palco, mas sim na zona do público. E isso era a inversão do teatro, revolucionário ou não. Alguns dos elementos do grupo até acharam a ideia da transferência do espetáculo do palco para a plateia como boa. Só não admitiam era que aqueles pobres coitados da família Ferreira fossem considerados atores de primeira linha, eles que não representavam nada, apenas agiam primitivamente em defesa do irmão que julgavam ameaçado, isto apesar de estarem fartos de saber que era tudo a fingir. 

  

Depois de um mês em cartaz, a peça levada à cena pelo grupo recreativo e cultural dos “Canários”, resolveu dar por terminada a temporada. Estava à vista de todos, até do José, que a sua família tinha dado cabo do espetáculo, pois conseguiram tirar o protagonismo aos verdadeiros atores e metamorfosear uma peça revolucionária num espetáculo de revista à portuguesa, o que era intolerável. Alguém sugeriu que se transformasse o espetáculo em itinerante, levando-o a várias vilas e aldeias dos arredores. Mas o José, também já ele farto do assédio constante da sua família, e sabendo quanto a casa gasta, lembrou que os Ferreiras eram gente para se deslocarem em grupo fazendo caravana como se fossem artistas de circo. E, ele, como era bom de ver, não os podia impedir de fazerem o que achavam por bem fazer. O 25 de Abril serviu para isso mesmo, para cada um ser livre.


Escusado será dizer que o desânimo tomou conta da rapaziada. Mas foi circunstância de pouco dura. O José disse, e bem, que existia uma maneira de resolver o imbróglio: o espetáculo tinha sim de se adaptar à itinerância, mas era necessário que rumasse a terras longe da nossa. Dessa forma, a família Ferreira, por falta de mobilidade, via-se, mesmo contra a sua vontade, privada de meios para se poder deslocar atrás da caravana nevoense dos “Canários”. Escutaram-se exclamações de contentamento na sala.


“Amigo Crispim”, ouviu-se aos de sempre na taberna próxima, “toca a trabalhar, pois a malta do teatro está de volta.” E o bêbado com a mania da filosofia tornou à sua teima: “A malta dos «Canários» é muito mais ligada à política, que é uma puta porca… do que ao teatro, que é uma porca puta, ou... o teatro é um pretexto para a porca… o que eles querem com todas estas macacadas sei-o eu bem…” e ia  a fazer um gesto feio e obsceno na direção da porta, quando o quarteto do copo e das moelas (e também do pão e das azeitonas e dos ovos cozidos e das costelinhas fritas e das pataniscas de bacalhau e dos carapaus de escabeche e das iscas de fígado com cebolada e do polvo frito e dos rojões do redenho e do caldo de pedra e da feijoada e do rancho…) o avisou: “Cala-te mas é, pois estás bêbedo como um cacho”.

13
Mar13

O Poema Infinito (137): viagem

João Madureira


Seguindo na direção de Chaves, encontrar-me-ás sempre em todas as estações de serviço, como se fosse um marinheiro fazendo escala em todos os portos onde se completam festas livres aonde não entram nem os abutres nem se ouvem os sinos do pânico. Procuro-te sentindo-me afogar num cais clássico onde as mulheres tristes ensaiam gestos apavorados e acenam com lenços aos faroleiros das luzes eróticas onde as flores douradas se espalham pelos passeios. Em qualquer lugar onde me procures encontrarás fruta, uma fruta masculina que atravessa o âmbar. No mar alto navegaremos por cima da escrita pornográfica sonhando como é bom ter os pés assentes em terra. Nas nossas mãos ficarão as marcas do sal. Os deuses então sucumbirão ao incesto e à calamidade. O mundo conduz-nos e celebra os novos mandamentos do apocalipse. Os versos opulentos inundam as robustas fortalezas e abrem caminho para dentro da cabeça das estátuas. E as estátuas tombam como se fossem náufragos dos velhos tempos e saúdam-nos com as suas bocas inchadas de veludo. As aves aquecem o céu e inundam o mar de voos suspensos. O medo desfaz-se de encontro aos pensamentos. Escutamos as criaturas que gritam dentro dos indefesos túneis da História. A cidade inclina-se para os versos e os versos inclinam-se para os espelhos e os espelhos inclinam-se para os corpos e os corpos enganam-se e deixam-se despir com a memória irrigada pela água dos rios de sombra. Os teus olhos são pequenas flores de medo. Alguém profere um sopro selvagem dentro da tarde transparente. O tempo torna-se acústico e emite murmúrios de pranto que se tornam obscenos em contacto com o ar. Os pássaros sossegam escutando as ventanias rústicas que lhes chegam vindas do mar. E o próprio mar naufraga entre a flora salgada das marés. E as marés escutam o sol e deambulam pelas ameias do castelo do tempo. A terra grita a sua própria idade e o chão abre-se de espanto. Nada se acrescenta à incúria dos seres humanos a não ser os versos passageiros do tempo. A tua mão convoca-me. O fogo incendeia as grutas da memória. Desperto próximo do teu olhar. Reparo no incêndio que alastra na tua boca. Já os poemas ardem como se fossem uma linguagem de fios de fogo. E acordam as almas que deslizam agarradas às coisas. Está longe o sol. E os meus lábios marcam o chão onde o teu coração vive. O silêncio volta a rodear-te os braços. E o horizonte desenha-te com uma fina geometria doirada. Estamos no limiar de mais um dilúvio onde os homens ganham barbatanas e almas de pássaros longos. A terra tem de novo sede de bichos. Os corpos celestes incendeiam-se de mistérios. O mundo volta a ser uma ilha requintada onde o medo dá lugar ao medo. Transformo-me num bloco denso de ternura. As horas constroem a solidão. Essa solidão doméstica que se debruça sobre mim e me talha o sonho. O sonho que é uma pista de tristeza paciente. Sou de novo uma coisa transparente que teme a loucura doce do encontro. Já sabes, seguindo na direção de Chaves, encontrar-me-ás sempre…

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