O Homem Sem Memória - 162
162 – Um pouco contra o que pensava serem as suas inclinações e preferências, e sempre que a ocasião se proporcionava, o José começou a participar e a achar alguma piada aos sínodos comunistas, também conhecidos como congressos; às missas coletivas marxistas-leninistas, também identificadas como comícios; às novenas revolucionárias, também denominadas de sessões de esclarecimento; e ao terço comunitário, também designado como reuniões de célula.
Não é que a ideologia lhe interessasse muito, nem a ele nem a ninguém seu conhecido, valha a verdade. Tudo no Partido era feito como uma obrigação que se executava para não colocar em causa o trabalho organizativo. Tudo era imposto, ou autoimposto. Depois de se colocar o motor da revolução a trabalhar, não existiam mais questões a discutir. Tudo fazia parte de um todo que não se dividia em partes. Tudo ia do zero ao infinito, como escreveu Arthur Koestler, ou até mais além, como muito bem lembrou Buzz Lightyear no seu voo iniciático. Quando se passava a integrar um coletivo comunista já não havia volta atrás. As partes diluíam-se no todo e nada podia restar do anquilosante individualismo que cada um transportava às costas como uma cruz reacionária.
Ao terço ia repetir, e ouvir repetir, a ladainha que lia no órgão oficial do Partido. Sentados em volta de uma mesa, todos diziam o mesmo, e repetiam-no até à exaustão, para deixarem bem claro que tinham lido o editorial da voz da classe operária e até tinham decorado as frases tintim por tintim. Os militantes de base pronunciavam as ave-marias e o camarada dirigente da célula atacava com o pai-nosso. No final, sorriam uns para os outros e lembravam aos mais distraídos que tinham de pagar as quotas, vender A Verdade e recrutar novos camaradas.
As novenas realizavam-se em períodos que podiam variar entre um e três meses. Faziam-se preferencialmente em salas pequenas para onde se convidavam militantes e familiares de militantes, simpatizantes e familiares de simpatizantes, amigos dos militantes e familiares dos amigos dos militantes e um que outro simpatizante de um partido mais à esquerda ou mesmo de outro um pouquinho mais à direita. Isto para que a ladainha não azedasse. Nestas sessões replicavam-se as reuniões de células e as reuniões das organizações concelhias. O camarada esclarecedor, quase sempre um funcionário concelhio, distrital ou regional, atacava com o pai-nosso da Verdade e os camaradas a esclarecer tentavam alinhavar as ave-marias do Combatente. Quando algum dos presentes se atrevia, por esquecimento ou distração, a rezar outra oração qualquer, era de imediato chamado à razão e aconselhado a ler A Verdade para ficar a saber da infalibilidade do catecismo. Se teimava, chamavam o exorcista, isolavam-no, e atuavam em conformidade. No final, sempre alguém se mostrava interessado em preencher a ficha de militante. O processo podia ser lento, mas era seguro. Uma vez comunista, comunista para sempre. E quem afirmar o contrário, mente.
O José, por indicação dos camaradas organizadores, fazia sempre o papel de inquiridor, colocando as perguntas mais pertinentes, agitando as massas e animando as sessões. Nada era deixado ao acaso, pois na revolução nada pode ser dado ao improviso. Tudo encaixa no determinismo histórico e na dialética revolucionária. Pois o sol tem de brilhar para todos nós, ou então não brilhará para ninguém. Alberto Punhal nisso era inflexível: revolucionários, ou vitoriosos ou mortos.
As missas, ou comícios, eram as reuniões de comunistas, ou simpatizantes, de que o José mais gostava. Nos comícios apenas rezavam, perdão, discursavam os padres, perdão, os dirigentes mais destacados, os que possuíam mais dom de palavra e os que conseguiam expressar sempre a mesma coisa dando a impressão de que afirmavam sempre algo de distinto.
Nas missas, perdão, nos comícios não se explicava fosse o que fosse, repetia-se o ritual de sempre e, lá pelo meio, o camarada mais graduado soltava o seu sermão com a plena convicção de que iria pôr a gritar a populaça. O tema principal era invariavelmente o demónio, perdão, a reação, que era sistematicamente acusada de praticar o mal e de tentar contrariar os ventos da História. Clamavam então bem alto as palavras de ordem eternas, gritavam o sagrado nome do Partido a plenos pulmões e davam punhadas no ar. E agitavam bandeiras. E gritavam abaixo a reação. E davam mais murros no ar, enquanto vociferavam novamente as iniciais do sagrado nome do Partido a plenos pulmões. E agitavam as bandeiras vermelhas. E cantavam. E tornavam a gritar as iniciais do sagrado nome do Partido. Depois calavam-se um bocadinho, enquanto mais um camarada rezava mais umas ave-marias e uns pai-nossos. E de seguida voltavam a dar socos no ar enquanto apregoavam as iniciais do sagrado nome do Partido a plenos pulmões e agitavam as bandeiras vermelhas, como nos filmes. No final, berravam alto as palavras de ordem de sempre, gritavam o sagrado nome do Partido a plenos pulmões, davam punhadas no ar e no fim entoavam a Hossana, perdão, A Internacional. E iam para casa alegres e sorridentes como se a revolução estivesse ali mesmo ao virar da esquina. Só que não estava. Mas isso não os impedia de sonhar com ela. Além disso, a revolução sonhada é sempre mais linda do que a realizada.
Apesar de admirar estes gestos repetitivos como se fizessem parte de um filme de Godard, o José era manifestamente incapaz de gritar fosse o que fosse, de cantar A Internacional (ele que se tinha sempre recusado a entoar o Hino Nacional por ser belicista e reacionário) e de dar murros no ar, como se fosse um chimpanzé animado e movido a pilhas.
Não sabemos ainda bem a causa, mas, por incrível que pareça, o José, após a leitura crítica de alguns livros, um pouco reacionários, convenhamos, começou a sentir uma certa repulsa pelos conclaves comunistas.
Os congressos do Partido pareciam-lhe pouco democráticos. Apesar de serem muito participados. E sentia uma certa repulsa pelo unanimismo que se verificava em cada escrutínio. Punha-se uma moção à votação do conclave e era logo aprovada de braço no ar, por unanimidade. Colocava-se uma outra moção ao sufrágio da assembleia e era logo aprovada de braço no ar, por unanimidade. Uma organização distrital punha um documento à votação e era imediatamente aprovado de braço no ar, por unanimidade. No congresso não existia a mínima polémica, a mínima divergência, a mais mínima dúvida fosse sobre o que fosse. Todas as intervenções eram aplaudidas de pé com os congressistas aos gritos e aos murros no ar, numa sintonia impressionante. Mal aparecia nova moção, logo os camaradas puxavam dos seus cartões de delegados e exibiam-nos no ar, como baionetas, aprovando-a por unanimidade e aclamação. Nova moção, nova votação unânime. Mais punhos no ar dando socos na atmosfera e mais gritos invocando o sagrado nome do Partido a plenos pulmões. Depois de tudo aprovado por unanimidade e aclamação, era chegado o momento da intervenção do camarada convidado em representação Partido Comunista da União Soviética.
Mal se ouvia o seu nome, repleto de “ires” “iches” e “oves”, o concílio entrava em delírio. Gritava-se o sagrado nome do Partido Irmão a plenos pulmões, davam-se punhadas ainda mais vigorosas na atmosfera e durante cinco minutos todos os militantes do PC entravam em transe coletivo. Muitos deles até conseguiam ver a figura de Lenine, qual Divino Espírito Santo, descendo sobre as cabeças dos membros do Comité Central para lhes apontar o caminho da revolução proletária mundial. Depois, o camarada soviético falava em russo – sendo por isso mesmo interrompido muitas vezes com palmas, cânticos e palavras de ordem –, e comunicava aquilo que lhe apetecia, numa total concordância com o que acabava de ser dito, não importando para nada o continente, o país ou a língua. Afinal a revolução era mundial, pois se não fosse mundial não era revolução. Mal o camarada soviético acabava o discurso, a sala vinha abaixo. Berrava-se, cantava-se, gritava-se, batiam-se palmas e até se chorava como se de novo Nossa Senhora de Fátima tivesse aparecido em cima de um chaparro, desta vez a três pioneiros alentejanos.
Logo depois, ainda com a sala em transe, era a vez do camarada Secretário- geral, Alberto Punhal, se dirigir ao sínodo. Ele, de novo eleito por unanimidade, aclamação e estupefação, informava os camaradas congressistas que o Comité Central tinha sido igualmente eleito por aclamação, unanimidade e estupefação, e que a revolução sim senhor e que o país tal e coisa e que o Partido coisa e tal. E avante camarada avante. E que a vitória podia ser difícil, mas era deles. E a sala só não desabava porque estava bem provida de betão armado. Nos últimos quinze minutos apenas se ouviam palmas, gritos, ululações e choros. E viam-se grossas lágrimas escorrendo pela face daqueles intrépidos guerreiros comunistas que choravam como crianças.
Todos saíam dali como se a revolução estivesse à sua espera mesmo ali ao virar da esquina. Só que não estava. Mas não importava. Talvez estivesse logo ao virar da outra. Na revolução, como na vida, a esperança é a última a morrer. E esquinas há imensas. Por muito que isso custe ao reacionários.