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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Mai13

O Homem Sem Memória - 162

João Madureira


162 – Um pouco contra o que pensava serem as suas inclinações e preferências, e sempre que a ocasião se proporcionava, o José começou a participar e a achar alguma piada aos sínodos comunistas, também conhecidos como congressos; às missas coletivas marxistas-leninistas, também identificadas como comícios; às novenas revolucionárias, também denominadas de sessões de esclarecimento; e ao terço comunitário, também designado como reuniões de célula.


Não é que a ideologia lhe interessasse muito, nem a ele nem a ninguém seu conhecido, valha a verdade. Tudo no Partido era feito como uma obrigação que se executava para não colocar em causa o trabalho organizativo. Tudo era imposto, ou autoimposto. Depois de se colocar o motor da revolução a trabalhar, não existiam mais questões a discutir. Tudo fazia parte de um todo que não se dividia em partes. Tudo ia do zero ao infinito, como escreveu Arthur Koestler, ou até mais além, como muito bem lembrou Buzz Lightyear no seu voo iniciático. Quando se passava a integrar um coletivo comunista já não havia volta atrás. As partes diluíam-se no todo e nada podia restar do anquilosante individualismo que cada um transportava às costas como uma cruz reacionária.


Ao terço ia repetir, e ouvir repetir, a ladainha que lia no órgão oficial do Partido. Sentados em volta de uma mesa, todos diziam o mesmo, e repetiam-no até à exaustão, para deixarem bem claro que tinham lido o editorial da voz da classe operária e até tinham decorado as frases tintim por tintim. Os militantes de base pronunciavam as ave-marias e o camarada dirigente da célula atacava com o pai-nosso. No final, sorriam uns para os outros e lembravam aos mais distraídos que tinham de pagar as quotas, vender A Verdade e recrutar novos camaradas.


As novenas realizavam-se em períodos que podiam variar entre um e três meses. Faziam-se preferencialmente em salas pequenas para onde se convidavam militantes e familiares de militantes, simpatizantes e familiares de simpatizantes, amigos dos militantes e familiares dos amigos dos militantes e um que outro simpatizante de um partido mais à esquerda ou mesmo de outro um pouquinho mais à direita. Isto para que a ladainha não azedasse. Nestas sessões replicavam-se as reuniões de células e as reuniões das organizações concelhias. O camarada esclarecedor, quase sempre um funcionário concelhio, distrital ou regional, atacava com o pai-nosso da Verdade e os camaradas a esclarecer tentavam alinhavar as ave-marias do Combatente. Quando algum dos presentes se atrevia, por esquecimento ou distração, a rezar outra oração qualquer, era de imediato chamado à razão e aconselhado a ler A Verdade para ficar a saber da infalibilidade do catecismo. Se teimava, chamavam o exorcista, isolavam-no, e atuavam em conformidade. No final, sempre alguém se mostrava interessado em preencher a ficha de militante. O processo podia ser lento, mas era seguro. Uma vez comunista, comunista para sempre. E quem afirmar o contrário, mente.


O José, por indicação dos camaradas organizadores, fazia sempre o papel de inquiridor, colocando as perguntas mais pertinentes, agitando as massas e animando as sessões. Nada era deixado ao acaso, pois na revolução nada pode ser dado ao improviso. Tudo encaixa no determinismo histórico e na dialética revolucionária. Pois o sol tem de brilhar para todos nós, ou então não brilhará para ninguém. Alberto Punhal nisso era inflexível: revolucionários, ou vitoriosos ou mortos.


As missas, ou comícios, eram as reuniões de comunistas, ou simpatizantes, de que o José mais gostava. Nos comícios apenas rezavam, perdão, discursavam os padres, perdão, os dirigentes mais destacados, os que possuíam mais dom de palavra e os que conseguiam expressar sempre a mesma coisa dando a impressão de que afirmavam sempre algo de distinto.


Nas missas, perdão, nos comícios não se explicava fosse o que fosse, repetia-se o ritual de sempre e, lá pelo meio, o camarada mais graduado soltava o seu sermão com a plena convicção de que iria pôr a gritar a populaça. O tema principal era invariavelmente o demónio, perdão, a reação, que era sistematicamente acusada de praticar o mal e de tentar contrariar os ventos da História. Clamavam então bem alto as palavras de ordem eternas, gritavam o sagrado nome do Partido a plenos pulmões e davam punhadas no ar. E agitavam bandeiras. E gritavam abaixo a reação. E davam mais murros no ar, enquanto vociferavam novamente as iniciais do sagrado nome do Partido a plenos pulmões. E agitavam as bandeiras vermelhas. E cantavam. E tornavam a gritar as iniciais do sagrado nome do Partido. Depois calavam-se um bocadinho, enquanto mais um camarada rezava mais umas ave-marias e uns pai-nossos. E de seguida voltavam a dar socos no ar enquanto apregoavam as iniciais do sagrado nome do Partido a plenos pulmões e agitavam as bandeiras vermelhas, como nos filmes. No final, berravam alto as palavras de ordem de sempre, gritavam o sagrado nome do Partido a plenos pulmões, davam punhadas no ar e no fim entoavam a Hossana, perdão, A Internacional. E iam para casa alegres e sorridentes como se a revolução estivesse ali mesmo ao virar da esquina. Só que não estava. Mas isso não os impedia de sonhar com ela. Além disso, a revolução sonhada é sempre mais linda do que a realizada.


Apesar de admirar estes gestos repetitivos como se fizessem parte de um filme de Godard, o José era manifestamente incapaz de gritar fosse o que fosse, de cantar A Internacional (ele que se tinha sempre recusado a entoar o Hino Nacional por ser belicista e reacionário) e de dar murros no ar, como se fosse um chimpanzé animado e movido a pilhas.


Não sabemos ainda bem a causa, mas, por incrível que pareça, o José, após a leitura crítica de alguns livros, um pouco reacionários, convenhamos, começou a sentir uma certa repulsa pelos conclaves comunistas.


Os congressos do Partido pareciam-lhe pouco democráticos. Apesar de serem muito participados. E sentia uma certa repulsa pelo unanimismo que se verificava em cada escrutínio. Punha-se uma moção à votação do conclave e era logo aprovada de braço no ar, por unanimidade. Colocava-se uma outra moção ao sufrágio da assembleia e era logo aprovada de braço no ar, por unanimidade. Uma organização distrital punha um documento à votação e era imediatamente aprovado de braço no ar, por unanimidade. No congresso não existia a mínima polémica, a mínima divergência, a mais mínima dúvida fosse sobre o que fosse. Todas as intervenções eram aplaudidas de pé com os congressistas aos gritos e aos murros no ar, numa sintonia impressionante. Mal aparecia nova moção, logo os camaradas puxavam dos seus cartões de delegados e exibiam-nos no ar, como baionetas, aprovando-a por unanimidade e aclamação. Nova moção, nova votação unânime. Mais punhos no ar dando socos na atmosfera e mais gritos invocando o sagrado nome do Partido a plenos pulmões. Depois de tudo aprovado por unanimidade e aclamação, era chegado o momento da intervenção do camarada convidado em representação Partido Comunista da União Soviética.


Mal se ouvia o seu nome, repleto de “ires” “iches” e “oves”, o concílio entrava em delírio. Gritava-se o sagrado nome do Partido Irmão a plenos pulmões, davam-se punhadas ainda mais vigorosas na atmosfera e durante cinco minutos todos os militantes do PC entravam em transe coletivo. Muitos deles até conseguiam ver a figura de Lenine, qual Divino Espírito Santo, descendo sobre as cabeças dos membros do Comité Central para lhes apontar o caminho da revolução proletária mundial. Depois, o camarada soviético falava em russo – sendo por isso mesmo interrompido muitas vezes com palmas, cânticos e palavras de ordem –, e comunicava aquilo que lhe apetecia, numa total concordância com o que acabava de ser dito, não importando para nada o continente, o país ou a língua. Afinal a revolução era mundial, pois se não fosse mundial não era revolução. Mal o camarada soviético acabava o discurso, a sala vinha abaixo. Berrava-se, cantava-se, gritava-se, batiam-se palmas e até se chorava como se de novo Nossa Senhora de Fátima tivesse aparecido em cima de um chaparro, desta vez a três pioneiros alentejanos.


Logo depois, ainda com a sala em transe, era a vez do camarada Secretário- geral, Alberto Punhal, se dirigir ao sínodo. Ele, de novo eleito por unanimidade, aclamação e estupefação, informava os camaradas congressistas que o Comité Central tinha sido igualmente eleito por aclamação, unanimidade e estupefação, e que a revolução sim senhor e que o país tal e coisa e que o Partido coisa e tal. E avante camarada avante. E que a vitória podia ser difícil, mas era deles. E a sala só não desabava porque estava bem provida de betão armado. Nos últimos quinze minutos apenas se ouviam palmas, gritos, ululações e choros. E viam-se grossas lágrimas escorrendo pela face daqueles intrépidos guerreiros comunistas que choravam como crianças.


Todos saíam dali como se a revolução estivesse à sua espera mesmo ali ao virar da esquina. Só que não estava. Mas não importava. Talvez estivesse logo ao virar da outra. Na revolução, como na vida, a esperança é a última a morrer. E esquinas há imensas. Por muito que isso custe ao reacionários. 

29
Mai13

O Poema Infinito (148): porque morrem os pássaros

João Madureira


Antes que me perguntes por que morrem os pássaros, responder-te-ei esculpindo frases litigiosas e sentindo dentro de mim a esplêndida manipulação da antiguidade. Através de ti homenageio as cidades inesperadas, a ordenação íntima dos desvios, a limitação das memórias, a interioridade exposta do amor, a voz milenar da morte. Todo o amor é uma desordem absurda, uma curva de tempo. Deixo que os dedos aflorem no teu olhar e que todo o ritual de destruição se torne lógico. Em mim floresce a raiva e o voo resoluto dos milhafres. Pudesse eu navegar-te e os meus lábios haveriam de celebrar o hábito fecundador do incómodo. Reinicio o silêncio selvagem da rutura, reconstruindo vulgaridades, reinventando a longa métrica das aflições, o divino refluxo da reconstrução, a incómoda herança do desespero, o elogio paranoico da civilização reinventada. Quando os teus lábios se fecham, as imagens dos idiomas outonais são de novo metáforas antropológicas. Os cultores da celebração incendeiam as figuras e experimentam voos indicativos. Cumpre-se assim o destino: os invernos tornam-se definitivamente estéreis e resignam-se à verdadeira arte da linguagem. És agora um pretexto, um poema paciente, uma biblioteca efémera, um atalho metafísico. Pertencemos à geração nostálgica da geometria dos gritos e da crença absurda nas estradas. Por isso traçamos na obscuridade a nobreza maravilhosa dos paradoxos. Também eu sou o absurdo, o teu absurdo, o ousado absurdo do lirismo, a crença nas árvores indecisas, a linguagem obediente dos filhos, a indecisão lúcida da filosofia, a disponibilidade íntima do sofrimento e a fragmentada segurança das dúvidas, de todas as dúvidas que nos transformam a alma. O tempo cansa-nos o olhar e joga connosco a sua solitária fluidez. E enraíza-se nos dedos da memória com se fosse uma distância evasiva. Tu dizes: Todos os idólatras são obscuros. E sorris como se morresses. Falas numa corrente enumerativa de silêncios formais. O lirismo. Sim, o lirismo! Esse injusto equilíbrio da frivolidade. Esse tormento evocado por deus e que frutifica nos estultos. Sinto-me partir todas as manhãs, apesar de ficar ao pé de ti. Por isso recuso a compreensão do mundo. A sua ascese crepuscular, o seu brilho indeciso, o seu tormento nomeado, a sua belíssima imagem morta no quadro da parede. Eu sou a tua distância. Tu és a minha distância. Por isso domino a vontade de te amar ainda mais e de filtrar o esquecimento. As palavras que não te digo incendeiam os lugares longínquos que evocam a atenta celebração das planícies. Iluminas-me as tardes enquanto eu esboço as virtudes dos manuscritos. As frases ficam agora à distância das lágrimas. O esquecimento mexe e limita a crença, a linguagem desobediente, a devoradora harmonia dos corpos e da sua respiração. Tu és todo o meu universo erótico, o meu lugar abrigado onde ouço os gritos de todos os coitos do mundo. O mundo tem novamente o sabor amargo da tragédia. Vivemos numa época em que se sacrificam os poemas como se fossem assombramentos desnecessários. Já nem as vozes divinas cantam ao amanhecer. As tuas dúvidas ficam suspensas nos jardins aguardando o orvalho da alvorada. Olhamos todo o horizonte com o rosto chovido de lágrimas completas. Recordo o teu corpo nas ondas que rebentam na praia, sob o próprio peso das marés. Junto às falésias, gaivotas religiosas lançam-se em imprecisos voos de loucura. Amanhece o inverno na indefinição da terra. Os movimentos naturais da paisagem procuram a mobilidade da água. O céu fica rápido e nele desenha-se a ausência. Toda a liberdade é uma técnica de contrastes violentos. A solidão volta a descer como se fosse nevoeiro. Recuso o desígnio da melancolia. Transformo-me na fúria tranquila da escrita. E desenho a tua ausência na minha alma aflita.

27
Mai13

Pérolas e diamantes (39): roleta russa seguida de inauguração

João Madureira


E os factos caíram-nos em cima como uma peste negra. Os factos, não as dez pragas do Egipto. Mas os factos. Os cortes nos salários, nas pensões e nas despesas sociais. Cortes e mais cortes para fazer frente ao que o PM apelidou de emergência nacional, ou seja, para sermos simples e claros, o estado a que o país chegou pela sua mão e pela do inenarrável Gaspar.

 

São os tais 4,8 mil milhões de euros que Passos fingiu querer discutir, mas vai impor sem apelo nem agravo. Sem diálogo. E sobre o desemprego, nem uma palavrinha. Sobre retoma nada vezes nada. E outro tanto sobre esperança e futuro. PPC apenas foi capaz de embrulhar o seu miserabilismo num preâmbulo vergonhoso relativo ao Documento de Estratégia Orçamental, vulgo DEO.

 

Sem o menor pudor, ou sequer respeito pelos portugueses e pelos sacrifícios que lhes tem imposto de forma despudorada, o líder do Governo, e do PSD, diga-se de passagem, nada diz sobre a agiotagem dos mercados financeiros e sobre a roubalheira dos bancos respaldada pelos seus consórcios internacionais.

 

Por isso é que o DEO é um enorme embuste. Porque assenta em pressupostos errados e objectivos inatingíveis, mas, sobretudo, porque o documento ignora de forma deliberada a nossa realidade social, mesmo à beirinha da rutura.

 

Por isso é que hoje o país está tolhido pelo medo, pelo desalento e pela humilhação. O medo de se perder o emprego, de se regredir de forma definitiva na escala social, de se ver de um dia para o outro sem um mínimo rendimento que permita manter um nível de vida digno.

 

Todos já percebemos que os últimos anos da vida ativa que nos vai tocar viver serão sempre a piorar.

 

Mas, como se isso fosse pouco, o Governo resolveu praticar a política do terrorismo de Estado. E se Bin Laden odiava judeus e americanos, PPC odeia, com a mesma fé fundamentalista, os reformados e os funcionários públicos. Por isso os persegue, humilha e vilipendia, acusando-os de serem os responsáveis pela crise das finanças públicas e pelo desemprego dos jovens, tentando, dessa forma deplorável, colocar uma geração contra outra.

 

No fundo, trata-se de lançar o pânico sobre os reformados e os funcionários públicos e incutir o ódio geracional nos jovens.

 

Aos funcionários públicos propõe-lhes o jogo da roleta russa, que é a tão propalada mobilidade especial, apontando-lhes um revólver à cabeça e dizendo-lhes que têm de apertar o gatilho e esperar que a bala não esteja nessa câmara do tambor.

 

Nicolau Santos tem toda a razão quando afirma que o que pretende PPC, e o inenarrável Gaspar, mais não é do que reduzir o Estado a uma função meramente assistencialista, declarando dessa forma guerra aos portugueses.

 

Mas eu acompanho-o no desígnio de que há de chegar a altura de os portugueses varrerem o Governo para o caixote do lixo da História.

 

Por falar em Governo, não quero terminar esta crónica sem me referir à inauguração do comicamente apelidado “Centro de Artes Criativas de Chaves” pelo secretário de Estado do Desporto e Juventude e desde já afirmar que a propaganda política deste jaez deve envergonhar quem dela se serve de forma tão despudorada.

 

Mas o que mais me indignou (e eu, apesar de tudo, ainda me indigno com coisas destas, coitado de mim) foi o dandy governativo, que puxando de um provocador e postiço sorriso “pepsodente”, ter afirmado que o Estado gastou na recuperação do edifício mais de um milhão de euros e que de imediato fez uma coisa que não é habitual, entregando a gestão deste património a uma associação juvenil.

 

Mas o senhor secretário de Estado esqueceu-se de dizer toda a verdade: é que a referida associação pode ser juvenil, mas também é, e por inteiro, constituída e dirigida exclusivamente por militantes e simpatizantes da JSD.  O líder da dita associação é líder da JSD e foi candidato pelo PSD à CMC. E, até aposto, que vai sê-lo de novo e num lugar tido como elegível.

 

E isso é indigno de um Estado de Direito que deve tratar todos os jovens por igual. Lembram-se dos “jobs for the boys”? Bem prega Frei Tomás! 

24
Mai13

O Homem Sem Memória - 161

João Madureira


161 – Depois do seu contributo para ajudar a enfrentar, e a vencer, a reação, na aliança sagrada entre o povo e o MFA, o nosso herói ascendeu uns degraus na consideração dos dirigentes do seu partido. Afinal o camarada José não era só bazófia, crítica e intelecto. Era também povo, marxismo-leninismo, armas e corpo às balas. E para lhe demonstrarem a sua estima, e o seu apreço, resolveram destacá-lo para o serviço de segurança. A planificação, o incentivo e a emulação são, como todos bem sabemos, os principais atributos dos revolucionários bolcheviques. Nisso os revolucionários são mesmo chiques. Rima e é verdade.


Principiaram logo com uma prova de fogo: incluíram-no na equipa de segurança do camarada Alberto Punhal. E não o fizeram de ânimo leve, nem para dar nas vistas, pois destacaram-no para ir proteger o Secretário-geral do Partido em Bragança, cidade que tinha a fama, e o proveito, convenhamos, de ser considerada a mais anticomunista de Portugal.


O José conhecia mesmo um camarada que tinha sido expulso dessa cidade e a quem incendiaram o carro com ele lá dentro. O valoroso camarada conseguiu escapar, à justa, de morrer carbonizado dentro do seu automóvel e a tempo de se pôr em fuga sem ser alvejado pelos muitos tiros de caçadeira com que os reacionários o brindaram na hora da despedida. Pode parecer um nadinha estranho, mas os reacionários também possuem o seu sentido de humor.


Portanto, ele e restante equipa de camaradas de Névoa destacados para tão honrosa missão, já sabiam dos perigos que corriam. Muito provavelmente, por motivos de segurança partidária e de sigilo revolucionário, mandaram-nos para Bragança sem uma única arma. Também a revolução tem razões que a própria revolução desconhece.


Quando perguntaram a que se devia tão arrojada estratégia – pois a não ser com armas, o contributo da brigada na segurança do camarada Secretário-geral só se podia realizar através da força física e para isso eles eram de pouco préstimo –, responderam-lhes que não estavam autorizados a emprestar-lhes armas e que se sentissem verdadeiramente necessidade delas era favor colocar essa questão aos dirigentes locais ou à própria brigada permanente de segurança do Comité Central, especificamente à do camarada Alberto Punhal.


Não é que aos camaradas nevoenses lhes escasseasse a determinação, a coragem, o arrojo e a disciplina. Isso até lhes sobrava. Ó se sobrava! O que lhes faltava era planta física, pois dois dos camaradas eram altos, mas esguios como lareiros, e os outros eram um par de rodas baixas, gorditos e com uma destreza física muito próxima do desalento e da abdicação.


A única coisa que fizeram questão em lhes disponibilizar foi um automóvel, pois as carreiras entre Névoa e Bragança realizavam-se fora de horas, o que punha em causa o cumprimento de horários compatíveis com o acomodar do comício e o desmobilizar dos camaradas.   


A viagem até foi divertida, pois encheram-se de contar anedotas uns aos outros. E, diga-se de passagem, algumas delas bem machistas, racistas e, o que era ainda pior, tão reacionárias que até alguns reacionários mais sensíveis e cultos teriam sérias dificuldades em as contar, mesmo que estivessem numa reunião de fogosos e intrépidos anticomunistas.


Além da do busto de Napoleão, já conhecida de todos nós, duas ou três nos ficaram na memória. Aquela em que um alentejano entra numa carruagem de comboio, olha para um negro e diz: “Com que então preto, hem?” Ao que o negro, incrédulo com tanta sagacidade, responde perguntando: “E como é que descobriu assim logo à primeira?” Ao que o camarada alentejano respondeu: “Pelos bêços.” Ah, ah, ah! Perdão. Outra: “Sabes porque é que o Alentejo é plano? Porque os calhaus foram todos para Trás-os-Montes.” Ah, ah, ah! Perdão. Ah, ah, ah! Perdão. E ainda aquela de dois canibais que estão no jardim a ver passar umas miúdas e um deles diz: “Olha, vês além aquela boazona. Apesar de já não ter um braço, mesmo assim comia-a toda. Ao que o outro responde: Alto lá e para aí com a brincadeira, aquela já eu ando a comer. É a minha namorada.” Ah, ah, ah! Perdão. Ah, ah, ah! Perdão. Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Perdão. Perdão. Perdão.


Temos ou não razão. As anedotas eram mesmo de baixa cultura e de um primarismo doentio. As mais reacionárias não as… Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Perdão… contamos porque ferem a nossa sensibilidade democrática e… Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Perdão… podem introduzir na narrativa níveis preocupantes de uma polémica escusada com os nossos leitores que ainda acreditam na… Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Perdão… revolução e no triunfo do marxismo-leninismo e, por isso mesmo, do comunismo. E fartos de polémicas andamos nós há muito tempo.


Chegados a Bragança, dirigiram-se ao Liceu onde ia decorrer o comício com o camarada Alberto Punhal. Encontraram lá alguns camaradas a decorar a sala e perguntaram-lhes onde podiam apresentar-se para cumprirem com as tarefas que lhes tinham sido destinadas. Eles responderam-lhes que sobre segurança o melhor era falarem com os camaradas encarregues dessa tarefa. Vendo-os indecisos, indicaram-lhes onde estavam e voltaram à decoração. 


Os camaradas seguranças encontravam-se nas traseiras do Liceu a descansar. Tinham chegado há pouco de Braga, de um outro comício. Dois deles dormiam e ressonavam como bons e dedicados comunistas que eram. Os outros dois jogavam à bisca e fumavam cigarros com muita tenacidade. Para acamaradarem convenientemente, o quarteto de Névoa puxou dos seus paivantes e apresentou-se: “Somos a brigada de Névoa destacada para colaborar na segurança do camarada Secretário-geral. Temos orientações para nos colocarmos à vossa disposição.” Ao que um camarada lhes respondeu: “Sejam bem-vindos. Nós estamos a descansar para mais tarde montarmos o perímetro de segurança ao comício.” E o camarada José: “A que horas chega o camarada Punhal?” E o camarada segurança: “Dentro de duas horas.” E o camarada José: “Qual é o nosso papel?” E o camarada segurança: “Então não vos disseram qual era?” E o camarada José: “Não.” E o camarada segurança: “Isso é uma falha organizativa grave.” E o camarada José: “Pois, se calhar é. Mas nós não temos culpa.” E o camarada segurança: “Alguma culpa devem de ter. Pois se aceitaram fazer parte da segurança do camarada Punhal têm de saber qual é rigorosamente a vossa função. Com a vida do camarada Secretário-geral não se brinca. Ele é o nosso melhor estratega, o nosso timoneiro, o nosso grande líder. Alberto Punhal só há um. Depois deste filho adotivo da classe operária ser feito, o molde foi destruído.” E o camarada José: “Ao menos dê-nos armas e diga-nos onde nos devemos colocar.” E o camarada segurança: “Armas? Quais armas? Aqui cada um anda com as suas. Se não têm armas, o problema é vosso. A tropa manda desenrascar.” E o camarada José: “Mas nós não somos tropas, somos militantes comunistas que foram destacados para…” Neste momento, o camarada Joaquim, o tal das bombas, disse: “Armas? Eu tenho um canivete que é bom para limpar as unhas, mas também pode servir para capar grilos…” E o camarada segurança: “Não te armes em esperto comigo senão levas duas estaladas nessas fuças de aprendiz de comunista que nem vais conseguir atinar com o sítio onde te encontras. Se foram destacados para Bragança devem falar com quem vos destacou. Eu não fui informado de nada.” E o camarada José: “Podemos ficar por aqui?” Mas o camarada segurança nem se dignou responder-lhe. No entanto ficaram. Sentaram-se no chão e puxaram, também eles, por um baralho de cartas e puseram-se a jogar uma suecada.


Passadas duas horas, chegou, sem se fazer notado, o camarada Alberto Punhal. Chegou de mansinho. Todos se levantaram e puseram-se em sentido. Ele olhou-os com o seu rosto sorridente de líder querido e estimado e deu-lhes as boas tardes. Eles reponderam baixinho. Ele cumprimentou-os um a um. A seguir falou do tempo. A seguir dissertou sobre a natureza. E ainda se referiu à viagem e à qualidade do mercedes em que se deslocava. Ele era assim: simples e generoso.


O José ficou quase sem palavras. Ter ali o camarada de cristal na sua frente era uma experiência revolucionária fora do comum. Ele olhava para o amado líder como se fosse quase um deus. E era-o de facto. Tudo em si era luz, serenidade e sapiência. E se isso se via ao longe, observado de perto ofuscava.


Depois dos cumprimentos, e das poucas palavras trocadas com os camaradas que tinham por missão defendê-lo, mesmo que fosse apenas, como era o caso paradigmático da brigada de Névoa, com determinação, coragem, arrojo e disciplina, o camarada Punhal deu alguns passos em frente, na direção de umas giestas, desapertou e breguilha e, sob o olhar atento e compenetrado dos camaradas seguranças, sacou do pénis e pôs-se a urinar como o mais vulgar dos mortais. Fora do comum foram os olhares dos camaradas seguranças, especialmente dos camaradas de Névoa, que se puseram a observar o pénis do camarada Alberto Punhal como se ele fosse a própria “flauta mágica” do próprio Mozart. O camarada Secretário-geral pôs-se a olhar para a linha do horizonte enquanto urinava e disse novamente que o dia estava lindo e que a revolução portuguesa estava prestes a triunfar. O José, tal e qual os restantes camaradas, bem queria olhar para outro lado, mas não conseguia, estava obcecado com o pénis do camarada Secretário-geral, com a maneira revolucionária como ele lhe pegava, com a beleza um pouco anacrónica do jato de urina e, sobretudo, com o primoroso jeito da mão com que o camarada Secretário-geral pegava no pénis sem mostrar a mais leve insegurança, vergonha ou timidez. Porra, Alberto Punhal até no mijar era um verdadeiro líder da classe operária, pois só um verdadeiro marxista-leninista era capaz de mijar daquela forma e feitio. José lembrou-se, naquele momento, da pilinha do menino Jesus que tinha visto em alguns presépios ou também na pilinha dos meninos que decoram as fontes de alguns jardins das casas senhoriais ou em certas praças públicas. Sim, aquele pénis tinha esse mesmo aspeto puro e angelical.


No final da micção, o camarada Secretário-geral sacudiu o seu órgão genital para o libertar de alguma pinga incómoda e recolheu-o com toda a calma e sensibilidade do mundo. Sim, Alberto Punhal, como muito bem diz o povo na sua infinita sabedoria, até no mijar tinha graça. No fundo, os sábios estão carregados de razão quando afirmam que são os pequenos gestos, o que distingue as grandes personalidades.


Resta comunicar aos nossos estimados leitores, para que possam dormir em paz, que o comício correu bem e que não foi necessária nenhuma outra intervenção da segurança do camarada Secretário-geral. 

22
Mai13

O Poema Infinito (147): a cegueira de Zeus

João Madureira


As deusas cantam coléricas precipitando-se na direção da multidão dos homens-pássaros. E choram porque ficaram prisioneiras dos mastins e da vontade de Zeus. Zeus cegou recentemente cumprindo o seu destino de pai liquidado. As rochas fenderam-se e delas sobrevieram flores contínuas que assombraram a multidão. Várias espécies de aves com pescoço longo baixam sobre a planície exibindo as suas asas. Na praia, uma multidão orgulhosa solta o seu grito de espanto. Os deuses lançaram ao mar as suas naus repletas de gente de todas as raças e credos. O chão ressoa intensamente debaixo das patas dos cavalos dos guerreiros que se vieram despedir dos prisioneiros. Os pastores colhem as flores nos lameiros e enchem os tarros com o leite das fêmeas. O vento arrasta o orgulho e o desejo pelas eiras sagradas. As mulheres e as crianças separam a palha do grão e sorriem. E cantam. E sorriem de novo, contemplando o silêncio dos seus esposos que hoje descansam da guerra. É aos loucos que a coragem mata. Nunca para eles existirá outro destino que não seja o de perderem as suas famílias, como se esse desgosto fosse um novo início. A cidade fica inacessível. Os exércitos vão novamente para fora de muralhas. Junto a uma figueira-brava, os espíritos repousam a sua loucura. E choram pelo sofrimento futuro. Eles sentem o sofrimento dos homens, das mulheres e dos seus filhos. As deusas começam a tecer armaduras e a inscrever nelas palavras de guerra, de paixão e morte. Dentro das tendas, os meninos gritam e os pais enlaçam as suas esposas e encostam a cabeça nos seus regaços à procura de carinho. Mais tarde as mulheres perfumarão os seus seios para moldar o amor e para espantar o extermínio. O chão resplandece. Zeus, imaginando enxergar dentro da sua própria cegueira, pronuncia que nenhum homem escapa ao seu destino, seja covarde ou valente, seja rei ou escravo. Os guerreiros fazem corridas de cavalos e chamam pelo nome das suas amadas. Elas apanham lenha, transportam o mel e o vinho, poem o pão e os frutos nas mesas. E esperam. Os ventos conduzem as planícies aos seus deuses. Os deuses mergulham nos seus pensamentos de guerra e triunfo. No campo de batalha acendem-se fogueiras e sente-se um odor a carne grelhada. As estrelas brilham no céu. Os jovens dançam olhando para a lua brilhante. Todos aguardam pela aurora. Os homens são clarões de orgulho e raiva e prometem combater sem descanso contra o inimigo. As naus navegam agora para longe. Aproximam-se novos deuses para devorarem a expectativa que ainda resta. E montam nos seus cavalos alados. São eles os que agora perseguem os homens e as suas esperanças. Os homens tiram as mãos das suas espadas e choram. Os deuses insultam-nos e lançam-lhes a maldição dos sacrifícios incitando-os à batalha, falando-lhes do valoroso heroísmo dos seus antepassados. Eles olham o vale e prometem lutar ardentemente para cobrirem de sangue as nuvens e as montanhas. E o tempo. E dizem que amam a luz, a mesma luz que cegou Zeus e que os há de cegar a eles. Os guerreiros prometem voltar à sua terra gritando bem alto os nomes dos companheiros que morreram para afastarem a maldição da paz. E admiram as suas armas. E permanecem estáticos perante a inutilidade do amor. E aceitam a morte para que os deuses sejam imortais. Agora sentem ainda mais o peso dos seus membros. E a sede. E a fome. Mas não deixam de lutar. E ajoelham-se exortando os seus deuses a que os devorem e espalhem o seu espírito guerreiro pela terra e pelo mar. E galopam com as suas espadas em riste abraçando o medo, devorando a angústia dispersa pelo ar. As mulheres aflitas ardem dentro do seu desespero e penteiam-se enquanto choram. E prometem beijar e lamber as feridas dos seus amados se voltarem vivos da guerra. Mas a terra tornou-se negra e dela só jorra o medo. O medo do futuro.  

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