O Poema Infinito (151): incansável imperfeição
Toda a arte é arte nenhuma. E eu sou o seu número mais imperfeito. Passaram mil anos e outros mil irão ainda passar-se para que chegue o momento exato em que nos encontremos de novo na dimensão das crisálidas. Sim, nós somos esses seres humildemente extraordinários que saem da terra e penetram no desaparecimento. Erguemo-nos nas guerras e em todos os momentos únicos do vento que erode o silêncio. Todos os povos contam os seus deuses pelos dedos das suas mãos calejadas pelo infortúnio. A morte vem sempre depressa de mais. E a argila de que somos feitos toma a forma do desespero. Os guerreiros da terra ceifam a obstinação da sua má sorte. Nós respiramos a perseverança dos sentidos. E dançamos. Dançamos em cima do desejo e do nosso espanto. Dançamos em cima das palavras e no sonho das coisas bravias. E dentro dos nomes dos jardins que fogem das pedras. Afundamo-nos nas águas que brilham na solidão dos astros e na sua luz que tudo arrasa. Todos os momentos são imperfeitos. Mesmo quando são nítidos. Ai esta fragmentação da memória! Somos momentos líquidos. Custa-nos viver a desordem da matéria, com essa incansável imperfeição. Com essa união desagregada. Com essa densa gravitação. As manhãs fingem-se frias. As manhãs e as vaginas apócrifas. E os pénis de pedra. E as deusas da infertilidade. Tudo se afunda na emergência do dia. E na brancura da memória. E no brilho heráldico da solidão. A luz arrasa toda a igualdade fingida. Amamos todos os fragmentos do apocalipse, a nitidez dos sentidos e ainda os momentos subtis da nossa paixão que emergem entre a fluidez lenta do céu. Todas as estrelas estão prisioneiras do seu esplendor. Com a nossa pequena voz enfrentamos o tempo de desilusão. Unimo-nos quando nos querem separar. Já não nos abandonamos aos monstros da perfídia. Os seus labirintos de palavras são agora para nós sorrisos de tristeza. Tudo o que ergueram vão ter de o destruir. Tudo. Nós sabemos pôr em marcha o motor dos sonhos. Sabemos renascer das cinzas e da sua enorme voz de fogo consumido. Da desordem nasce a ordem que escalda a memória. Nós aquecemos as palavras com o nosso corpo. E deixamos que a poesia cresça dentro de nós como um mar de ressonâncias de corais poderosos. Toda a poesia é uma dilatação do mundo. Toca-nos enlouquecer secretamente como a sombra que nasce da luz. Nós somos o lugar onde tudo se cria e nada se transforma. Os poetas cantam as suas guerras singulares. Apesar de fingirem que mentem, dizem toda a verdade. E murmuram diademas como se fossem mágicos do silêncio. Toda a infância será ressuscitada. E a sua luz. E a sua epiderme de árvore dos milagres. O tempo, apesar do seu sossego, é um movimento que magoa. E mata. É impossível navegar em tanto mar. Em tanta emissão de luz. Em tanta fascinação oculta. Os homens e as mulheres cantam dentro da sua própria explosão sossegada. E dizem palavras intrínsecas. E palavras essenciais. E carregam e descarregam o seu tempo de inocência e sangue. E agitam a sua desordem e bebem a sua turbulência e partem para longe das suas casas sossegadas. Tentam esquecer-se das regras da violência e do abandono. E emitem a sua voz assustada carregada de palavras desaparecidas. O tempo agita-se. O dia e a noite não suspeitam ainda que hão-de morrer. Todos os sonhos serão dissolvidos em areia e transformados em vidro. E nós seremos duas crianças abandonadas aos seus monstros secretos. É esse excesso de luz que nos afogará no infinito.