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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

19
Jun13

O Poema Infinito (151): incansável imperfeição

João Madureira


Toda a arte é arte nenhuma. E eu sou o seu número mais imperfeito. Passaram mil anos e outros mil irão ainda passar-se para que chegue o momento exato em que nos encontremos de novo na dimensão das crisálidas. Sim, nós somos esses seres humildemente extraordinários que saem da terra e penetram no desaparecimento. Erguemo-nos nas guerras e em todos os momentos únicos do vento que erode o silêncio. Todos os povos contam os seus deuses pelos dedos das suas mãos calejadas pelo infortúnio. A morte vem sempre depressa de mais. E a argila de que somos feitos toma a forma do desespero. Os guerreiros da terra ceifam a obstinação da sua má sorte. Nós respiramos a perseverança dos sentidos. E dançamos. Dançamos em cima do desejo e do nosso espanto. Dançamos em cima das palavras e no sonho das coisas bravias. E dentro dos nomes dos jardins que fogem das pedras. Afundamo-nos nas águas que brilham na solidão dos astros e na sua luz que tudo arrasa. Todos os momentos são imperfeitos. Mesmo quando são nítidos. Ai esta fragmentação da memória! Somos momentos líquidos. Custa-nos viver a desordem da matéria, com essa incansável imperfeição. Com essa união desagregada. Com essa densa gravitação. As manhãs fingem-se frias. As manhãs e as vaginas apócrifas. E os pénis de pedra. E as deusas da infertilidade. Tudo se afunda na emergência do dia. E na brancura da memória. E no brilho heráldico da solidão. A luz arrasa toda a igualdade fingida. Amamos todos os fragmentos do apocalipse, a nitidez dos sentidos e ainda os momentos subtis da nossa paixão que emergem entre a fluidez lenta do céu. Todas as estrelas estão prisioneiras do seu esplendor. Com a nossa pequena voz enfrentamos o tempo de desilusão. Unimo-nos quando nos querem separar. Já não nos abandonamos aos monstros da perfídia. Os seus labirintos de palavras são agora para nós sorrisos de tristeza. Tudo o que ergueram vão ter de o destruir. Tudo. Nós sabemos pôr em marcha o motor dos sonhos. Sabemos renascer das cinzas e da sua enorme voz de fogo consumido. Da desordem nasce a ordem que escalda a memória. Nós aquecemos as palavras com o nosso corpo. E deixamos que a poesia cresça dentro de nós como um mar de ressonâncias de corais poderosos. Toda a poesia é uma dilatação do mundo. Toca-nos enlouquecer secretamente como a sombra que nasce da luz. Nós somos o lugar onde tudo se cria e nada se transforma. Os poetas cantam as suas guerras singulares. Apesar de fingirem que mentem, dizem toda a verdade. E murmuram diademas como se fossem mágicos do silêncio. Toda a infância será ressuscitada. E a sua luz. E a sua epiderme de árvore dos milagres. O tempo, apesar do seu sossego, é um movimento que magoa. E mata. É impossível navegar em tanto mar. Em tanta emissão de luz. Em tanta fascinação oculta. Os homens e as mulheres cantam dentro da sua própria explosão sossegada. E dizem palavras intrínsecas. E palavras essenciais. E carregam e descarregam o seu tempo de inocência e sangue. E agitam a sua desordem e bebem a sua turbulência e partem para longe das suas casas sossegadas. Tentam esquecer-se das regras da violência e do abandono. E emitem a sua voz assustada carregada de palavras desaparecidas. O tempo agita-se. O dia e a noite não suspeitam ainda que hão-de morrer. Todos os sonhos serão dissolvidos em areia e transformados em vidro. E nós seremos duas crianças abandonadas aos seus monstros secretos. É esse excesso de luz que nos afogará no infinito. 

17
Jun13

Pérolas e diamantes (43): objetos políticos em movimento

João Madureira

 

Pacheco Pereira tem razão: “Estamos a chegar a uma situação em que tudo é melhor do que isto.” E nós queremos referir-nos tanto ao que se passa no país como ao que se passa no nosso concelho.

 

Sim. Tudo é melhor do que a situação atual.

 

A situação é tão grave que está mesmo posto em causa o próprio sistema democrático. Então na província, o clima que se vive é de cortar à faca. Está instalado nos partidos políticos, e na sociedade em geral, o medo do confronto de ideias, do debate, da discussão livre e séria.

 

Será que todos somos bons? Os que gerem mal e os que gerem bem, os que intimidam e as vítimas da intimidação, os que falam e os que calam, os que mentem e os que dizem a verdade, os que perseguem e os perseguidos? Será?

 

Nestes tempos de triunfo da nulidade e do incremento da arbitrariedade, Ruy Barbosa está mais atual do que nunca. Foi ele que escreveu uma frase tremenda em tudo, até na sua atualidade: “Um homem chega a ter vergonha de ser honesto.”

 

Pregar a honestidade, comportar-se com um mínimo de dignidade, apelar à alternância, parece ser uma atitude quase insultuosa. E todos os que se indignam com este estado de coisas acabam por passar por estúpidos, ou por radicais.

 

Mas tem de existir lugar para a decência, sobretudo na política e, especialmente, na gestão autárquica.

 

Os partidos políticos tradicionais, sobretudo os que se alternam no poder, capturaram o sistema político democrático. A nível nacional, ficando reféns dos grandes interesses económicos, sobretudo da banca. A nível autárquico deixando-se encurralar entre as clientelas partidárias e os interesses das denominadas forças vivas, que muita das vezes são “vivas” apenas de nome, pois todos as sabemos defuntas há muito tempo. 

 

A gente que se sucede no poder é sempre a mesma. Sentam-se na mesa do partido e esperam que a sorte lhes venha bater à porta. Não discutem uma ideia, não se interessam pelos outros, não discutem nada, apenas se limitam a apregoar a putativa cartilha ideológica, a obedecer ao chefe e a conspirar por grupos de amigos ou de interesses instalados.

 

Se pensarmos bem, em Chaves, desde há muito tempo a esta parte, não há Câmara, nem existe presidente. Há apenas um grupo de pessoas que se fecha nos seus gabinetes no edifício da Praça de Camões e se entretém a tratar da sua carreira política.

 

Esta gente anda literalmente a gozar connosco. Trata-nos como se fossemos seus súbditos. E isso é uma afronta a todos nós.

 

Pelo que vamos assistindo, tudo nos leva a concluir que os partidos políticos são incapazes de produzir, ou de chamar para as suas fileiras, pessoas capazes. Ou, quando elas aparecem, afastam-nas rapidamente, não vão elas contaminar a militância apática e subserviente.

 

A paranoia, tal, como o barro, é moldável.

 

Os nossos chefes autárquicos, quando se aproximam os ciclos eleitorais, fazem-nos sempre lembrar aqueles jovens a tentarem parecer mais velhos, ou os pobres a tentarem parecer ricos, ou aqueles mentirosos a tentarem passar por gente que apenas diz a verdade. 

 

Imaginam-se indiferentes às opiniões dos outros. Tentam zombar dos movimentos políticos de base independente. Só que não é possível desvirtuar um objeto em movimento. Cada um leva consigo o seu próprio caminho. Isso é o que engrandece os homens e as mulheres livres. 

14
Jun13

O Homem Sem Memória - 164

João Madureira


164 – Foi sentado numa cadeira do FAOJ, em frente ao televisor, que o nosso querido e estimado herói deu de caras com a realidade que o havia de projetar para o centro da sua dramática história. E ele ali especado, sem se dar conta de nada. Sem saber que os pormenores são o que definem a vida dos homens, das mulheres e dos revolucionários. Ele a olhar para aquele militar de barbas em frente a um cartaz do MFA e a não pensar em nada, a não ser que raio de posto ocupava o oficial, pois ele não sabia entender as divisas que os tropas usavam em cima dos ombros. Lá oficial era, disso não tinha qualquer dúvida, agora, de que patente é que não conseguia descortinar. Apesar da barba comprida, dava para perceber que ainda era jovem. O que disse não interessou ao José. Ele não ligava a essas coisas. Não conseguia dar à política a devida atenção, apesar de aparentar o contrário.


De repente, o militar desapareceu da televisão, como muitas vezes desapareciam as imagens por causa de uma qualquer avaria da emissão. Ele não ligou. Estava abstrato. O José tinha esse defeito, não conseguia pensar e sentir como o comum dos mortais. Estava sempre um pouquinho ao lado. Não gostava da música que os outros gostavam, não lia os mesmos livros, não apreciava as iguarias que faziam as delícias dos demais, não se comportava da mesma maneira, não falava da mesma forma. Tinha até uma certa repulsa pela vulgaridade. Ele que era vulgar. Lastimava-a. Lastimava-se.


Reparando que a televisão não saía da mira técnica, foi até à biblioteca e pôs-se a ler um livro. Mas não conseguiu progredir na leitura. Lia e tornava a ler, sem perceber. Ele que tudo lia e compreendia. Foi passear para o jardim. Sentou-se num banco e pôs-se a olhar para o rio. E para os pássaros. E para as folhas das árvores. E para os troncos das árvores. E riu-se sozinho. Como se fosse parvo. Sentiu-se estranho, como se adivinhasse algo de mau. Mas o que é que de mau lhe podia acontecer? Sentiu-se triste e melancólico. Como se estivesse apaixonado. Depois foi para casa. Estava estranhamente vazia. Ligou a televisão e pôs-se a ver o telejornal.


Inteirou-se então de que afinal o militar do MFA, que durante a tarde tinha aparecido nos ecrãs da TV, o tinha feito para anunciar um qualquer golpe das esquerdas no país. Lisboa e toda a Margem Sul tinham sido tomadas pelas forças fiéis ao MFA e ao Partido Comunista. Só que a norte, os militares não alinhados tinham interrompido a emissão para não criarem alarme entre o povo, e também tinham tomado de assalto os quartéis e colocado à sua frente militares da esquerda moderada, ou mesmo de direita arrependida.


O país estava dividido em dois. Com a sua linha de fronteira definida pelo leito do Mondego. O que queria significar que a guerra civil estava iminente. Os comunistas apelaram à calma revolucionária e os direitistas apelaram à calma reacionária. Os socialistas apelaram à calma entre todos. O José não sabia o que pensar. Isto só podia ficar feio. A norte ia abrir a caça aos comunistas e a sul ia iniciar-se a caça aos reacionários. Pensou em fugir sozinho para o sul, onde os seus tinham tomado o poder. Mas não possuía meios que lhe permitissem intentar a fuga com êxito. Pensou então ir ao encontro dos seus camaradas. Passou no Centro de Trabalho, mas viu que estava fechado. Foi ter com o Graça, mas também não estava em casa. A avó disse-lhe que há uma semana que não lhe punha a vista em cima e começou a chorar. Passou novamente pelo Centro de Trabalho, mas reparou que continuava fechado. Deambulou pela cidade e viu poucas pessoas na rua. Tudo se tinha metido entre quatro paredes a ouvir a rádio ou a ver a televisão. Foi para casa, encontrou lá apenas o pai, que lhe disse que procurasse os seus camaradas e fugissem todos para bem longe, onde não os reconhecessem, até conseguirem passar o Mondego. Informou-o de que a mãe e os irmãos tinham ido para a aldeia, para casa dos avós.


O José mostrou-se determinado a defender a liberdade e a revolução no norte de Portugal. O pai disse-lhe para não ser parvo, que no norte quem mandava era a reação. E que os comunistas eram em Névoa meia dúzia de gatos-pingados. O José ripostou dizendo que a sua obrigação era de defender os seus ideais. O pai riu-se, puxou de um cigarro, deu-lhe outro e puseram-se a fumar.


Ouviu bater à porta. Foi abrir. Era o Graça a convocá-lo para uma reunião em casa de um camarada clandestino já antes do 25 de Abril e que se tinha mantido clandestino para poder ser utilizado numa ocasião como esta. Partido prevenido vale por dois. Despediu-se do pai com um sentido abraço e seguiu o seu controleiro. O Graça continuava o mesmo camarada seguro e confiante. Até sorriu como se nada de grave estivesse a acontecer no país.


Num sítio escuro e ermo foram vendados e metidos dentro de uma carrinha. E andaram às voltas e às voltas, para despistarem os reacionários e também para baralharem os camaradas. As normas de segurança impunham esse tipo de procedimento. Para bem de todos.


Enquanto andaram às voltas, o José teve tempo para colocar as ideias em ordem. Até aqui a revolução tinha sido como uma festa de aldeia. Mas agora as coisas tinham todo o ar de que se iam tornar sérias. O arraial da democracia, do faz de conta, estava no fim. Isto podia transformar-se num jogo perigoso. Mas quem não arrisca, não petisca. E ele também já começava a ficar farto de uma revolução feita à base da colagem de cartazes, manifestações, comunicados e abaixo-assinados. Isso não era revolução nem era porra nenhuma. Uma revolução sem sangue, suor e lágrimas não presta. Não presta, nem serve para nada.


Por causa do rodízio, vomitou. Mas a carrinha não parou, nem deixou de andar às voltas. O Graça tentou encorajá-lo, pensando que estava com medo. Mas o José não tinha medo, apenas se sentia enjoado. Pararam ainda algumas vezes para recolherem outros camaradas. Apesar de pequena, a carrinha levava ali a nata dos comunistas de Névoa. Os mais intrépidos, os mais corajosos. Os mais tenazes.


Por fim lá pararam. Ajudaram-nos a sair e foram enfiados, ainda vendados, dentro de uma casa no meio da serra. De seguida retiraram-lhes as vendas e conduziram-nos a um andar térreo. Deram-lhes alguma coisa para comer e para beber e deixaram-nos ouvir a rádio.


Ficaram a saber que as sedes do Partido tinham sido assaltadas, saqueadas e incendiadas. Que alguns camaradas que lá se encontravam foram presos e torturados para confessarem para onde a maioria dos militantes tinha ido. Foram exibidas algumas armas, bombas e dinheiro encontrados dentro das sedes. O que era falso, como todos bem sabemos.


Logo após a ceia, foi lido a todos os camaradas um comunicado do Partido, assinado pelo camarada Alberto Punhal, apelando à resistência revolucionária em nome dos sagrados princípios da liberdade, do progresso e também do futuro de Portugal, uno e indivisível.


O José voltou a vomitar. Mas não de medo, apenas porque estava mal disposto. O Graça também vomitou e igualmente não por medo, mas porque viu vomitar o amigo.


Depois ficaram à espera do que se ia seguir. Por fim apareceu o camarada do Comité Central para a reunião que iria decidir o futuro da República Livre do Norte de Portugal. 

12
Jun13

O Poema Infinito (150): essas mulheres oxidadas

João Madureira


Há mulheres que se sentam em bancos de jardim como se fossem meninas que se sentam em bancos de escola. Apesar dos sorrisos, têm a mesma cara de desalento. Essas mulheres cruzam as pernas como se fossem princesas desesperadas e por isso deixam descair as mãos sobre as suas ancas redondas ou sobre os seus joelhos devotos ou sobre o lugar do seu sexo envergonhado e deprimido. E abandonam-se como se deixassem cair os seus véus de noivas envelhecidas. Apetece-lhes chorar, mas já não são capazes. Contentam-se em fazer renda, em rezar o terço e em abrir os seus olhos como se fossem janelas oxidadas. Apetece-lhes chorar, mas já não possuem essa coragem. Nas suas casas sombrias, essas mulheres penteiam-se como se fizessem tricô e comem pão seco baixando os olhos como quando os seus maridos lhes ralham enquanto elas lhes cosem um botão no bolso da camisa que fica por cima do coração. Os seus pensamentos abrem por vezes as asas de pássaros engaiolados e voam da cadeira à janela, da janela à cama e da cama à porta. Por vezes apetece-lhes fugir, mas já nem sequer conseguem sonhá-lo. Por vezes olham para as suas unhas e veem-nas a arranhar a pele dos homens que as lastimam. E bebem chá. E tornam a pegar nas agulhas do tricô para fazerem uns peúcos para os seus netos, como os que fizeram para os seus filhos. E bebem mais um pouco de chá. Apetece-lhes chorar, mas já não conseguem. Depois pensam em lavar as mãos. E lavam-nas. E depois pensam em perfumar os sovacos. E perfumam-nos. E depois pensam em lavar o sexo. E lavam-no. E acariciam-no como se fosse um órgão externo ou um pequeno pássaro ferido. E apetece-lhes de novo chorar, mas já não têm essa coragem. E ficam com os lábios secos por falta de beijos. E passam os lençóis onde se deitam como se já estivessem mortas ao pé de homens que são pedras tumulares durante a noite e chimpanzés de zoo durante todo o santo dia. Ensinaram essas mulheres a distinguir o bem do mal, a engomar aventais floridos, a comungar a hóstia consagrada, a aquecer o ferro de engomar para vincar uma calças e a serem cegas no amor. Por isso, essas mulheres rebentam por dentro, implodindo em frente do fogão, mexendo nas panelas, queimando as mãos na água gelada dos tanques enquanto lavam a roupa, espalhando o seu sangue menstrual pelos caminhos imitando Cristo na sua via crucis. E matam as pombas que criaram como se fossem memórias da juventude. E rangem os dentes quando vestem a camisa de dormir e os seus maridos ressonam como animais pré-históricos. E exprimem a sua dor com a surdez dos seus gritos. E de novo lhes apetece chorar, mas já não têm essa coragem, nem essa força interior. Agora, os seus olhos são punhais. Sabem que as suas pernas se tornaram ásperas, que os pés lhes doem, que os seios lhes descaem, que o sexo é uma gruta de silêncio e abandono. Sentem-se noivas envergonhadas que não chegaram a despontar, mulheres que foram sempre fustigadas pelo vento do desejo e pelo esforço do abandono. Têm saudades de quando vomitavam por causa da gravidez. Até esse fel lhes é agora um sabor agradável. Já nem se importam de ter os cabelos sujos e sem brilho. Já lá vão os tempos das cerejeiras e das macieiras em flor. E dos partos de sangue, de raiva e de amor. Agora adormecem-lhes as pernas antes da cabeça e a barriga avança centímetro a centímetro até lhes encobrir toda a cintura. Agora aquecem-se na sua própria febre e no seu desalento. E enrolam-se na sua primitiva forma de serpentes do pecado. Agora beijam-se a si próprias enrolando a língua nos dentes, nos lábios e no céu-da-boca. A sua dor transforma-se em luz e sobe-lhes da vagina até ao cérebro. Apetece-lhes chorar, mas já não possuem essa coragem amorosa. O amor transformou a Julieta no seu frasco de veneno. 

10
Jun13

Pérolas e diamantes (41): Jogos e disfarces

João Madureira


Nós vamos descobrindo aquilo que sentimos através daquilo que fazemos. Ao longo da vida, a empatia vai assentando permanentemente em sítios e em situações renovadas e também em outras pessoas. É isso o que nos permite reavivar, e reafirmar, a confiança nos outros e em nós próprios. Eu sei que o que acabo de afirmar não é linear, nem simples. Mas é assim a vida, como muito bem diz o meu filho João Vasco.

 

E quando as circunstâncias em que nos encontramos são adversas temos que nos considerar melhor do que elas para podermos erguer a cabeça.

 

Por exemplo, o poder autárquico da nossa terra diz que nos está a conduzir por um caminho de progresso, quando, efetivamente, o que pretende é livrar-se das suas promessas mal passem as eleições.  Vai-nos enchendo os ouvidos com a necessidade de críticas aceitáveis, feitas por pessoas aceitáveis, sabendo nós, que os conhecemos de ginjeira, que esses cavalheiros apenas aceitam as criaturas que concordam com eles. Essa é a base do fundamentalismo.

 

Os muçulmanos acreditam que não faz mal mentirem para converterem as pessoas à sua verdade.

 

Há por aí alguma gente que nos acusa de pretensiosos, mas eu respondo-lhes que escarnecer da pretensão também pode ser pretensioso. As pessoas de fé são tolerantes. Alguns dizem que são estúpidas por causa disso. Mas o preconceito é que é estúpido.

 

Explicam que é a sorte o que leva as pessoas ao poder. Para nós, a sorte é algo que se conquista, ou se cria por meio da força de caráter. Ao poder tem que se chegar de forma honesta e não através de estratagemas e intrujices.

 

O último parágrafo que escrevi está baseado numa passagem do interessante livro de Patrick De Witt, Os Irmãos Sisters, um romance com todos os bons ingredientes de um western à boa moda antiga, que nos conta uma história irresistivelmente picaresca, fundamentada num retrato mordaz e acutilante da delicada e perversa condição humana.

 

Ao lê-lo senti-me muitas vezes como se estivesse na enorme sala do Cineteatro de Chaves a assistir a uma coboiada das antigas. E senti saudades, muitas saudades, desse tempo, das coboiadas e do Cineteatro.

 

Foi a partir daí que me chegou a vontade de partilhar convosco mais uma trapalhada protagonizada pela Câmara Municipal de Chaves.

 

Foi há mais de uma década que a CMC, então presidida por Altamiro Claro, resolveu adquirir, por umas boas dezenas de milhares de contos, o Cineteatro ao seu proprietário para ali instalar um espaço cultural que trouxesse de novo o cinema, o teatro, e outras atividades culturais, ao coração da cidade.

 

Outra equipa autárquica, entretanto, ganhou as eleições. Apesar do espaço, apesar das múltiplas carências de atividade cultural e, apesar, também, das promessas sucessivas de intervenção e requalificação do imóvel para funcionar como sala multiusos destinada a mostrar cinema, teatro e exposições de pintura, escultura e fotografia ao público, ali só se reproduziram, e continuam a reproduzir, ratos e se acumulou, e acumula, poeira, humidade, frustração e desalento.

 

Eis senão quando, a meia dúzia de meses das eleições autárquicas, a CMC abre concurso para atribuição de arrendamento do citado imóvel. E a regra principal foi que a adjudicação fosse feita segundo o critério da proposta mais vantajosa. Houve um único concorrente. Parece de propósito.

 

A renda proposta, e aceite, pois a autarquia não estabeleceu aluguer mínimo, foi de 150 euros mensais. Que, estamos em crer, deve ser menos do que o aluguer de um aviário de pavões de média dimensão numa qualquer aldeia do concelho.

 

A empresa vencedora, que, afirmamos desde já, não tem culpa nenhuma no cartório, comprometeu-se a fazer obras no imóvel no valor de centenas de milhares de euros (os números em Portugal valem o que valem), num prazo de 18 meses e a criar alguns postos de trabalho: 3 de início e 22 no prazo de dez anos (as promessas de emprego em Portugal valem aquilo que valem).

 

As atividades previstas para o edifício “deverão enquadrar-se nas áreas da cultura, lazer e… restauração e bebidas”. Na área da cultura está previsto um “Piano Bar”, na área do lazer está previsto um “Parque Temático e de Diversões”. Nas atividades complementares está previsto… um “Piano Bar”, não sabemos se é o mesmo se é um outro, e ainda uma loja para comercialização de artigos relacionados com… o Parque de Diversões.

 

A empresa que venceu o concurso chama-se “Jogos e Disfarces”. Não, não é ironia. É mesmo verdade.

 

De facto, o centro da nossa cidade pode muito bem prescindir de um centro cultural multiusos, pois não tem nenhum. Mas o que não pode dispensar é ter mais um bar, no meio de dezenas, e de outra discoteca, ou coisa do género. Era mesmo disso que estávamos necessitados como de pão para a boca.

 

Dizem que cada povo tem o que merece. Será que nós merecemos esta gente?

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