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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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07
Jun13

O Homem Sem Memória - 163

João Madureira


163 – Mas a revolução, essa amante que tudo nos rouba, até o amor e a razão, não se encontrava nem na outra esquina, nem nas que foi descobrindo pela cidade e pelo país fora. A revolução socialista era como uma sombra, que sempre nos acompanha mas à qual nunca conseguimos alcançar. E ele bem que a procurou. E fê-lo por vezes sozinho e outras vezes acompanhado. Bem ou mal, isso não interessa para o caso. O que sim importa é a intenção. E a sua intenção era generosa e perseverante quanto baste. Se todos os revolucionários fossem como o José, ela, a Revolução, além de triunfar em todo o lado, poderia passar a ser como a inauguração do paraíso na terra. E que inauguração. Era a modos como o sonho de Charlot no seu filme O Garoto, onde até os polícias se transformam em anjos voadores de asinhas brancas.


Começou a ler ainda mais do que aquilo que lia, sublinhando as passagens mais interessantes e anotando os pensamentos mais pertinentes, numa sebenta escolar. Não é que tivesse em mente tornar-se escritor, mas, como todos sabemos, o escritor faz-se de manias, de acasos e de ocasiões. Ninguém é escritor por vontade própria. Ser escritor acontece.


Lia e dormia de dia e vadiava à noite. Não abandonou as tarefas revolucionárias, mas deixou de lhes dedicar tanto tempo. Tornou-se evidente para todos, até para ele próprio, que a sua adesão à revolução estava refém de uma dúvida metódica e de uma desconfiança permanente. Ora, como todos sabemos, quem não tem certezas absolutas não pode ser um verdadeiro comunista. O marxismo-leninismo não admite dúvidas, nem incertezas, nem hesitações. Em plena revolução, revolucionário que hesita é revolucionário morto, ou pela reação ou pelo seu próprio exército. Por isso é que se diz que a revolução, quando se põe em marcha, é como um comboio que ninguém consegue travar.


O seu ciclo notívago fez-se na companhia do Joaquim, das bombas, e na do Pinto, da eletrónica. Os seus compinchas podiam não ser bons revolucionários, mas eram, com toda a certeza, excelentes companhias para as tainadas, para as caminhadas e para as conversas intermináveis. Tanto jogavam às cartas, como ouviam música, como faziam longos passeios até o sol raiar. Em Névoa, além dos cães vadios, somente três comunistas desiludidos faziam a ronda das pontes. Fizesse, frio ou calor, estivesse luar ou céu escuro, ou o nevoeiro submergisse a cidade com o seu manto de escuridão húmida e trágica.


Tanto falavam de coisas triviais como de assuntos sérios. Lembravam as suas brincadeiras de rapazes travessos, recordavam tempos de escola, namoradas verdadeiras ou fictícias, livros lidos e histórias do arco-da-velha. De rapazes que, quando se portavam mal, continuavam a levar bofetadas castigadoras dos seus falecidos pais; de raparigas que, em noites de luar, quando se atreviam a olhar para trás, viam fantasmas a correr e a voar na sua direção; de bêbados que mesmo às portas da morte pediam aos familiares para lhes trazerem garrafas de vinho, que ainda meadas teimavam em fugir do quarto pelas frinchas das portas; ou de lobos que acompanhavam sempre os homens mancos quando iam defecar ao monte. Todas as semanas percorriam a calçada romana de Névoa a São Lourenço invocando, na brincadeira, as almas dos soldados que por lá passaram antes e depois das batalhas. E urinaram nas encruzilhadas, nos cruzeiros das aldeias, pintaram paredes com palavras de ordem revolucionárias ou com frases estupidamente anarquistas.


Muitas da vezes, iam a meio da noite até à panificadora comprar pão fresco que comiam besuntado de manteiga que se derretia sozinha. E bebiam leite. E fumavam cigarros feitos com uma máquina de bolso propriedade do Joaquim, das bombas. E tossiam muito e até se engasgavam com o fumo forte do tabaco negro que compravam em Espanha. Por vezes tocavam nas campainhas das casas dos burgueses a altas horas da noite e, de seguida, punham-se em fuga como se fossem crianças travessas sem educação e sem pai, nem mãe, nem partido.

 

Desdenharam do Partido, do funcionário do Partido, dos camaradas do Partido e do jornal do Partido. Deixaram de ir às reuniões ordinárias da sua organização estudantil revolucionária, deixaram crescer a barba e o cabelo e passaram a usar botas alentejanas e calças de ganga coçadas como se fizessem parte de um grupo rock inglês ou americano.


Andaram nisto vários meses. Desistiram de estudar. Não sabiam o que pretendiam fazer na vida. Apenas o José teimava ainda em dizer que queria ir estudar para a universidade. Mas a mãe disse-lhe que a falta de dinheiro era um obstáculo difícil de ultrapassar.


Numa noite de intenso luar, enquanto fumavam cigarros mal feitos e jogavam uma lerpinha a feijões no Jardim das Freiras, veio-lhes à cabeça a peregrina ideia de que tinham de seguir o exemplo de Che Guevara e irem fazer a revolução para outro país, pois a portuguesa não deixava de se mover a passo de caracol. Depois de estudarem vários cenários, o Joaquim, das bombas, sugeriu que o melhor destino, por ser o mais exigente em termos de luta revolucionária, era Angola, pois era lá que se digladiavam as forças do capitalismo e do imperialismo contra as forças revolucionárias do socialismo científico. A ideia foi aceite de imediato.


Resolveram então que no dia seguinte tinham de ir até Vidago, ou às Pedras Salgadas, comprar aos retornados, que vivam nos hotéis, angolares para poderem rumar caras à pátria de Agostinho Neto com dinheiro para as primeiras despesas.


O José, porque não possuía tostão, teve de pedir à sua mãe dinheiro emprestado. Ela disse-lhe que deixasse de ser parvo, pois Angola estava em guerra civil. “Revolucionária”, lembrou-lhe o José. “Ou isso”, concordou a Dona Rosa. “Mas tal não invalida aquilo que te digo. Os pretos andam aos tiros uns aos outros e tu queres ir lá meter-te no meio? Não deves estar bom da cabeça. Agora que a nossa tropa veio embora porque Angola já não é nossa, tu queres ir para lá fazer a revolução? É isso? Tu queres ir morrer numa terra que não é tua, a defender aquilo que não é teu?” “A revolução é de todos”, lembrou-lhe, e bem, o José. “Ai isso é que não é”, respondeu-lhe a mãe. “Olha, minha não é com toda a certeza. Os pretos nem se governam, nem se deixam governar.” Ao que o José respondeu: “Isso é a adaptação de uma frase que um governador romano deu ao seu imperador quando este lhe perguntou como corriam as coisas na Lusitânia.” “Ai sim…” “Sim senhora, minha mãe. O governador terá dito: Lá na Lusitânia vive um povo que não se governa nem se deixa governar.” “Não me mintas. Olha que mentir é muito feio. Foi Salazar quem assim falou. Os comunistas ensinaram-te a mentir. Foi isso o que te ensinaram. Tu que quando dizias uma mentira até choravas… Valha-me Deus. Àquilo a que chegaste.” “Ó mãe…” “Ó mãe, não. Tu que foste o meu orgulho agora és o meu pecado e o meu pesadelo. Ficaste louco. Queres que eu te dê dinheiro para ires para Angola. Mas não dou. Era o que mais faltava. Preferia com esse dinheiro comprar uma pistola, matar-te, enterrar-te no nosso chão e depois matar-me a mim com o remorso e com o desgosto. Não me peças uma coisa dessas, José. Isso não.”


No dia seguinte, quando o trio reuniu, o Pinto, da eletrónica, já tinha desistido de tentar exportar a revolução para Angola com o argumento de que a sua mãe era viúva e que por isso não a podia deixar sozinha, pois era filho único. O Joaquim, das bombas, ainda lhe disse que ontem, aquando da decisão, é que tinha sido o tempo certo para se lembrar da sua mãe e da respetiva viuvez. Agora essa atitude podia pôr em causa a decisão do grupo. Lembrou então que a deliberação ainda podia ser levada a cabo, pois, do grupo, ainda restavam dois revolucionários firmes e decididos a rumarem caras a Angola para combater o imperialismo, o capitalismo e o racismo. Mas o José, a muito custo, lá teve de confessar, que também ele ia ter de desistir da ideia, pois a sua mãe tinha-se categoricamente recusado a emprestar-lhe dinheiro para adquirir angolares, mesmo que fosse ao preço da uva mijona, como era o caso.


O Joaquim, das bombas, olhou primeiramente para o Pinto, da eletrónica, e depois para o José, da Dona Rosa, e lamentou-se: “E eu que até já tinha solicitado ao Partido para pedir ao MPLA três autorizações de emigração em nosso nome. O que não irão pensar os camaradas angolanos destes três Guevaras de trazer por casa.”


Passaram toda a noite a andar de um lado para o outro. De Névoa para São Lourenço, de São Lourenço para Névoa. Novamente de Névoa para São Lourenço. E outra vez de São Lourenço para Névoa. E nem uma única palavra proferiram. 

05
Jun13

O Poema Infinito (149): densidade e liquidez

João Madureira

 

Tão opacas estão hoje as minhas palavras. E densas. Têm uma luz que cega por dentro. Por isso as vou pronunciando em voz alta até que não digam nada. Que nada exprimam acerca do amor. E da esperança. E do tempo. E da vida. E dos desejos. E das ideias. E dos aromas. E da distância do mar. E da… Mas elas dizem tudo. São metáforas que desencadeiam outras metáforas e que falam da agonia dos brinquedos no sótão e dos estilhaços das manhãs frias e do sofrimento ardente das estrelas e da translúcida escuridão do mundo e do teu corpo vestido de espelhos e da nossa absoluta necessidade de lágrimas para apagarem as labaredas do desejo e da pureza insone dos sonhos. Eu naufrago dentro dos meus sonhos onde apareço disfarçado de destino. Tenho no rosto uma máscara com sinais de paixões antigas. Sou um extenso alfabeto de incertezas. Aprendi de pequenino, com os anjos e com os demónios, a terrível arte da angústia. Este coração que sofre dentro do meu peito não me pertence. Sinto que os dias se vão desvalorizando com o passar do tempo. E no meu jardim, na parte mais soalheira, respiro o perfume obsceno das “flores do mal”. A poesia superior alimenta-se de sangue, da perfídia dos sentimentos, da infidelidade da alma. Alimenta-se do pecado da pureza e da verdade. Alimenta-se do fascínio da transgressão. E da mágoa de Deus. E das suas máscaras eternas. E do seu perpétuo remorso de nos ter feito velozmente do barro e de não se ter dado conta de que a nossa vida são apenas dois dias. Parto para as viagens já cansado. Passo as noites à espera que o sono me faça perguntas. Os precipícios estão agora dentro de mim. Atravesso o medo. Olho-o de frente. As palavras impacientam-se. Também elas estão destinadas a desaparecer. Algumas, as mais envergonhadas e frágeis, morrem-me dentro da boca. Sentado no sofá, começo a entender a sombra dos teus olhos. Outras vezes fixo-me no seu fogo impaciente. Dentro destas quatro paredes estou eu mais a minha angústia perpétua. O amor é unicamente uma imagem fixa. As pessoas que mais amamos são como uma espécie de vento que acumula os gestos do mundo dentro de si. O meu poema abre-se e engole as paisagens vazias. O calendário transformou-se no meu diário íntimo. A minha caligrafia tornou-se sonâmbula. Tão veloz é agora o nosso amor, como se fosse uma ferida que arde na impaciência da própria dor. Todos os dias nos exigem uma atitude, uma confissão, uma censura. As pessoas atiram umas às outras frases lancinantes e aguardam pela noite para propagarem o vírus mortal do seu amor contaminado. E não leem os livros, escutam-nos como se eles fossem capazes de guardar o segredo da vida eterna. O mundo entusiasma-as com adivinhas. Esse é o seu vício solitário, o seu abandono erigido com frases amarelecidas. Babel é agora uma pirâmide de cadernos retirados de gavetas esquecidas. Já não sei sorrir como dantes. Já não sei reverter os anos. Vivo suspenso na tua distância. Como se o mar fosse cego. Somos vítimas da verdade: o amor tem de compensar. Temos de aprender a brincar com o fascínio, com o brilho do orgulho, com o valor dos dias, com a necessidade vital da arte, com as labaredas do desejo, com a estranha aprendizagem dos sonhos, com os vícios da decifração, com o cansaço da espera pela beleza das manhãs. Temos de cantar como Salomão que os olhos de quem amamos são como pombas por trás do véu e que os seus lábios são feitos de um fio escarlate e que temos de nos sentar lado a lado como dois deuses que saboreiam as vozes e as delícias dos risos. Por isso é que os nossos corpos se tornam líquidos como o desse delirante rei de Israel. 

03
Jun13

Pérolas e diamantes (40): a importância da memória

João Madureira


Aqui há uns tempos atrás, não sei bem por que razão, apeteceu-me imenso voltar a ouvir o disco de Wim Mertens, Strategie De La Rupture. Depois percebi, o subconsciente prega-nos destas partidas. Mas para uma partida existe sempre um cais de chegada. Engana-se sempre quem pensa que um homem, ou uma mulher, é uma ilha isolada. A esperança aguarda sempre pelo momento certo. Todos sabemos que um olho não vê o outro. Mas os dois vêem tudo.

 

Li algures uma frase que me ficou na memória: “Na vida há muita coisa demasiado boa para ser verdade e os triunfos duram sempre menos que a deceção.”

 

 Esperar em vão é adiar a vida. E eu já esperei tanto que já é tarde para voltar atrás.

 

O escritor dissidente cubano, infelizmente já falecido, Guillermo Cabrera Infante, tem razão: “O homem não inventou a cidade, a cidade é que criou o homem e os seus costumes.”

 

No novo ciclo que se aproxima, vamos ter de inverter o processo de construção de uma nova esperança. Até aqui os políticos, porque vazios de ideias, fabricavam a canção autárquica ao contrário, começavam pela música e só depois escreviam a letra. Mas para as propostas serem consistentes tem de se atuar de forma inversa: primeiro a letra e só depois a música.

 

Nada está mais necessitado de política do que a própria política. Até porque, como também escreveu Guillermo Cabrera Infante, “a política não é mais do que a religião por outros meios”.

 

Foi na Grécia, onde surgiu a cidade-Estado ou polis, que a ideia de cidade atingiu o seu auge com o que Aristóteles apelidou de “uma vida comum para um fim nobre”. É pois a esse desígnio que temos de voltar. Apesar de mesmo os nossos destroços possuírem uma estranha beleza, devemos pensar de forma diferente de Horácio, a quem as ruínas encontravam sempre impávido.

 

Houve tempos em que a independência era encarada como uma ameaça. Mas nos tempos que correm é nela, e nos seus movimentos, onde reside a esperança.

 

Afinal, o que é que na realidade temos nós a ver com os lugares? Nomeadamente com a nossa cidade?

 

Agora já sabemos responder: Ela faz-nos inteiros. Sim, os lugares que amamos fazem-nos inteiros. Por isso é que temos de ir ao encontro da nossa memória, da nossa identidade, do nosso coração. Por isso é que temos de reconstruir o Jardim das Freiras. Custe o que custar, doa a quem doer.

 

Não é aquilo que vemos o que é importante. Importante é aquilo que pensamos que vemos. Aquilo com que sonhamos. Quantas vezes é que nos mentiram até acreditarmos neles? Quantas, santo Deus? Quantas? Por isso é que não há perdão que lhes assista.

 

Esta gente só é grande numa coisa: na pobreza de espírito. E porque mentem o tempo inteiro, por vezes acabam por acertar na verdade. Mas é sol de pouca dura. 

 

Dizem-nos que esta gente que nos governa estava, quando para lá foi, cheia de boas intenções. Mas a maioria das pessoas está sempre repleta delas. E aí é que reside o mal. Pois de boas intenções está o inferno cheio.

 

A minha avó, depois de um longo inverno, pegava na roupa, ia até ao rio, fazia-lhe uma barrela e estendia-a ao sol a corar. A que estava em estado de ser recuperada cerzia-a ou remendava-a. À outra cortava-a, fazia dela panos de cozinha ou então rodilhas para utilizar no amanho da casa. Aquela que não tinha préstimo algum deitava-a ao lume para que as bruxas não a recolhessem e lhe fizessem algum feitiço. 

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