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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Jul13

O Poema Infinito (157): sinais

João Madureira


Os ramos das árvores começam a espalhar solidão. O vento embala o crepúsculo dos meus olhos. A água sobe pelos juncos. Os espíritos suspiram embalados pela tua voz. As flores escutam os pássaros e choram. Sonhamos com a aurora e com a sua luz dançando nas clareiras verdes. Sou a minha própria imagem ancorada num barco solitário. As terras tornam-se inquietas. As asas dos pássaros-anjos cintilam e dardejam. O meu coração não tem método. Antes de anoitecer a sombra do silêncio vagueará pelos caminhos. A margem do lago adormecerá e as estrelas caminharão na superfície das suas águas. Tu dizes: A paixão também cansa. O amor é um contínuo adeus. As horas ficam serenas. Sonhamos com a beleza do orgulho, com a esperança dos prodígios, com a perfeição imortal da chuva, com olhos repletos de luz, com quem desenhou os céus, com ilhas iluminadas de paz, com a exaustão das horas, com a inclinação fresca das fontes, com a felicidade cansada das avós, com o declínio tranquilo da satisfação, com os jardins brancos de neve, com o amor que cresce calmo nas macieiras, com as lágrimas jovens da paixão. Os homens vacilam dentro do seu orgulho, fatigados pela esperança. Os seus pés caminham errantes pelos atalhos. Tentam esquecer o céu e o inferno, as hostes divinas, os anjos que tecem as estrelas, as velas desfraldadas das naus que flutuam silenciadas pelo medo da morte. Regressam as almas dos mártires das guerras inúteis. E gritam com a sua dor exposta. Por isso não conseguem descansar em paz. Alguém canta canções de ar. Alguém lança silêncio sobre a culpa. As vozes eternas são doces. Os chefes enchem-se de júbilo enquanto os deuses suspiram. O mar fica impregnado do sorriso triste dos navegantes. A guerra consagra a paz passageira. Eu chego até ti carregado de distância. O tempo é o cais do infortúnio. A beleza fica triste na sua efemeridade. Leio devagar os sinais do desaparecimento. As sombras ficam profundas como as rugas. Todas as almas são peregrinas. A tristeza altera-nos o rosto. Todas as meditações pertencem ao tempo e por isso se conservam na memória. Alguém ordena que partamos trilhando o caminho do fogo. Outros gritam a sua vontade de ficar. O tempo chora a sua decadência. As fogueiras ardem nas montanhas e nos bosques alimentadas pelos espíritos do desespero. Os homens censuram-nos com palavras amargas. Cada qual tem a sua razão. Os mais jovens cavalgam o fogo semicerrando os seus olhos de relâmpago. As águias espectrais voam empurrando a amargura da alma dos homens. O tempo fica ainda mais cansado. Os olhares das mães cintilam como estrelas velando o sono dos seus amados filhos. O bem e o mal amanhecem com o orvalho. Os corações recuperam a sua esperança. As borboletas voam e cintilam aos primeiros raios de sol. Trutas prateadas ondulam no lago. Caminhamos descalços pela erva escutando os ligeiros ruídos das pequenas criaturas. Alguém chama por nós e foge. Beijamo-nos. Os nossos lábios queimam com se estivéssemos com febre. Alguém passa por nós cavalgando um ginete de aurora. Tem o cabelo em chamas e chora a sua raiva imortal.  

29
Jul13

Pérolas e diamantes (48): o Tribunal de Chaves entre a farsa e a tragédia

João Madureira


A minha avó dizia-me muitas vezes: Nunca te esqueças que és transmontano, que vens de gente do campo, tanto do lado do teu pai como do lado da tua mãe. Os Madureiras e os Ferreiras são gente do campo, têm os seus defeitos, mas ninguém os convence a fazerem aquilo que não querem. Lá teimosos somos nós. Ninguém nos obriga a fazer uma coisa que não queremos. E se alguém não gostar, não tens de lhe dar explicações. Basta lembrar-lhes que não fazemos nada por obrigação. Eles hão de respeitar-te por isso.

 

Lembrei-me destas palavras após a leitura da declaração de voto da deputada do PSD, Manuela Tender, relativa à aprovação do novo mapa judiciário que desqualificou vergonhosamente o Tribunal de Chaves, tentando justificar o injustificável e ensaiando explicar o inexplicável. Mas os atos ficam sempre com quem os pratica.

 

A presidente da delegação da Ordem dos Advogados, Márcia Teixeira, curiosamente militante do mesmo partido da senhora deputada e também candidata nas mesmas listas do PSD à autarquia flaviense, afirmou numa reunião realizada há poucos dias que “o modelo de mapa judiciário preconizado não defende os interesses das populações do Alto Tâmega”.

 

Para Márcia Teixeira, os argumentos de Paula Teixeira da Cruz, curiosamente militante do PSD e ministra de um governo chefiado por um militante do PSD e apoiado incondicionalmente pelo mesmo partido, “são falsos”, sendo em tudo “idênticos aos da integração do Hospital de Chaves no CHTMAD, sabendo todos nós quanto perdemos com a ausência de serviços de qualidade e proximidade”.

 

Na sua perspetiva, esta medida visa ir mais longe, pois pensa ser o princípio para o fecho, “a médio prazo”, do Tribunal de Chaves. Isto perante o silêncio cúmplice das estruturas políticas dirigentes da organização local do seu partido e das manobras de diversão (tipo agarrem-me senão eu bato-lhe) do presidente em exercício da autarquia flaviense, o candidato António Cabeleira. Ele é doutro mundo.

 

Atrapalhada com os acontecimentos, e com o entorno da tragédia anunciada, esta militante do PSD local apela para que os políticos tomem medidas, pois, nas suas doutas palavras, “eles foram eleitos para defenderem os interesses dos cidadãos”.

 

Márcia Teixeira, num gesto de indignação, resolveu chamar os bois pelos nomes e por isso considerou, e passamos a citar, “um ato de traição a atitude da deputada do PSD eleita por Vila Real, e indicada por Chaves, Manuela Tender, que, num verdadeiro ato de traição aos flavienses, votou favoravelmente a proposta de lei.”

 

Mas, caros leitores, como se tudo isto fosse pouco, João Batista, o “ex”-presidente da Câmara de Chaves, e candidato a presidente da Assembleia Municipal de Chaves pelas listas do PSD, em jeito de farsa, veio para os jornais dizer que o Tribunal de Chaves mantém os quadros de Magistrados, pois a senhora Ministra garantiu-lhe que o TC manterá os quatro juízes e que o número de Oficiais de Justiça irá passar de 26 para 27. “Neste sentido”, avisa, “o Tribunal de Chaves, apesar de perder formalmente o título de Comarca, manterá os mesmos serviços, como anteriormente”.

 

Ora isto é brincar com as palavras e com a inteligência dos flavienses. O senhor “ex”-presidente quer fazer de nós parvos.

 

O ato da deputada Manuela Tender ficará para sempre associado à votação que determinou o triste desfecho para o Tribunal de Chaves, isto por mais justificações esfarrapadas que dê, por mais declarações de voto que faça e por mais disciplinas de voto que invoque.

 

Já as palavras do senhor “ex”-presidente João Batista ficarão para sempre inscritas no anedotário da nossa terra. 

 

Pelo meio foram até invocadas questões económicas e financeiras. Mas a Justiça, tal como a Saúde e a Educação, não tem preço.

 

A verdade é que o Tribunal de Chaves, apesar das inverdades do senhor “ex”-presidente João Batista, apenas vai ter competência para julgar ações cíveis até 50.000 € e, nos processos criminais, só poderão correr nele aqueles a que, dito de forma corrente, não corresponda uma pena superior a 5 anos de prisão.

 

Entretanto o poder autárquico nada fez, ou faz, e nem sequer se interessa minimamente em sensibilizar a população do concelho. E pior, os atuais autarcas, em vez de defenderem os interesses dos flavienses e da autarquia, colocaram-se, sem pudor algum, ao lado da lamentável e vergonhosa posição do governo.

 

Por outro lado, a oposição política nacional e local, também nada fez, a não ser proferir alguns lamentos, outros tantos desabafos e, ainda, serôdios comentários nas redes sociais.

 

É cada vez mais claro que a nossa cidade governada pelos partidos políticos, como os que nós conhecemos, é um desastre. É pura perda de tempo. E, sabemo-lo agora, mais do que nunca, é também uma perda de direitos. A alternância entre o PSD e o PS é o jogo do gato e do rato.

 

Precisamos de eleger uma autarquia que não tenha pejo em defender a nossa terra e os nossos direitos. Mesmo que para isso tenhamos de colocar de lado as simpatias partidárias ou, até, pessoais.

 

Quem tem de mandar em Chaves são os flavienses, não os mesquinhos interesses partidários.   A nossa terra tem de estar sempre primeiro. E quando uma disciplina de voto tem mais força do que os direitos inalienáveis de uma população inteira, a democracia transforma-se numa farsa. 

26
Jul13

O Homem Sem Memória - 169

João Madureira


169 – Quando estamos presos, alguns momentos que vivemos entre grades são particularmente trágicos. E o mais trágico de todos é quando recebemos a visita da mulher que nos trouxe ao mundo. Aquilo não é muito bonito de se ver e não é nada, mesmo nada, fácil de viver. Uma mãe banhada em lágrimas a olhar para nós como se estivéssemos prestes a morrer, é desolador. E a cena torna-se ainda mais dramática quando nela entra a Dona Rosa.


Mal a colocaram frente ao seu filho preferido tratou logo de desmaiar. E todos nós sabemos como a Dona Rosa é poderosa no momento do desfalecimento. Desmaiou devagar, mas com um estilo muito próximo do teatro da mais alta qualidade. Se William, o Shakespeare, tivesse mesmo existido, e fosse contemporâneo da Dona Rosa, temos a certeza absoluta de que não se atreveria a morrer sem antes escrever uma peça pensando única e exclusivamente no desempenho dramático de uma atriz com o génio, o talento e o carisma da mãe do José.


Todos os que assistiram à cena ficaram espantados, menos o nosso terno herói que já sabia dos dotes dramáticos de sua mãe. Todos quantos puderam, correram a tentar amparar a pobre senhora em grandioso pranto e estudado desalinho. Os mais sensíveis condescenderam mesmo em deixar correr espontaneamente uma lágrima mais atrevida e afetuosa. O José, temos de reconhecer, mesmo comovido quase até às lágrimas, segurou-as com muito empenho e audácia. Os reacionários não podiam ter o prazer de o ver chorar. Um revolucionário não chora, mesmo que se encontre em processo de dissidência. E desesperar jamais.


Devido a esse facto, muitos dos guardas prisionais acharam-no insensível, o que não acrescentou nada ao conhecimento deles sobre os comunistas, pois todos os reacionários lhes reconhecem a frieza e o desprezo pelos sentimentos próprios, e alheios, como uma das suas principais características.


Quando se recompôs, a Dona Rosa começou logo a ralhar ao filho como se ele fosse um rapazinho da escola primária. O José ficou ainda mais frágil e triste. E lembrou-lhe que ela bem o tinha avisado de que as más companhias o haviam de conduzir à desgraça. Os comunistas não dão nada a ninguém, nem sequer bons conselhos. Pelo contrário, tiram tudo a uma pessoa: a vontade, a educação, a fé e a alma. São uns danados.


O José perguntou-lhe pelos irmãos e pelo pai. Ela informou-o de que o pai não a quis acompanhar com o pretexto de que estava de serviço, mas ela sabia bem o porquê de desculpa tão esfarrapada. Ela bem sabia que o guarda Ferreira a achava choramingona e espalhafateira. Além disso, pensava a mãe do José com alguma propriedade, tinha vergonha de ser militar da GNR e ter um filho preso por motivos políticos. Confessou, no entanto, que ainda se estava a habituar à ideia, mas mandou-lhe cumprimentos e cigarros e algum dinheiro para despesas correntes.


A Dona Rosa: “Com um pai destes, tinhas de sair herege. E logo tu que foste bafejado pelo Espírito Santo, que te pôs a falar na minha barriga. Não soubeste aproveitar o dom, agora estás para aí na companhia do Demónio e desses seus filhos.”


“Mas, mãe, o Graça é bom rapaz, um bom camarada…” “Não te iludas, meu filho. Foi o Graça quem te trouxe para esta desgraça. Foi ele quem te meteu essas más ideias na cabeça. Foi ele quem te enfiou na cadeia.” “Por favor, mãe, não digas isso, porque não é verdade. Eu sou um homem livre…” “Livre? Mas estás preso!” “Sou livre no pensamento que é como o vento que podem prendê-lo, matá-lo não…” “Tu és mesmo parvo. Sempre com as tuas toleimas, com essas rezas mentirosas, com esses falares enganadores.” “Não são rezas mãe, é poesia. Há lá coisa mais bonita do que a poesia!” “Há sim senhor, as orações a Nosso Senhor…” “Pois!” “Não existe por aqui um padre?” “Claro que sim.” “Então confessa-te e volta ao caminho de Deus. Por favor José, desta vez faz a vontade à tua mãe que te quer mais do que a qualquer outra coisa no mundo.” E começou a chorar copiosamente.


Ao José, mesmo contra sua vontade, também os olhos se lhe marejaram de lágrimas pequeninas, mas sensíveis. Ficaram os dois em silêncio. O José não podia contar à sua mãe que, à sua maneira, estava a seguir os seus conselhos, estava a cortar as amarras que o ligavam ao Partido e aos seus antigos camaradas.


Todas as suas decisões foram tomadas individualmente e para isso apenas tinha consultado a sua consciência. Desta vez também não podia ser diferente. Apenas ele e a sua consciência são os donos do seu destino. E seja o que Deus quiser. Bem, Deus não, ou talvez sim, ou… Quem não tem dúvidas não pensa. Só os grandes sábios e os maiores idiotas é que nunca mudam de opinião.


“E os meus irmãos?” “Estão lá fora. Não os deixaram entrar. Mas mandam-te cumprimentos. Dizem que têm saudades tuas e que te querem seguir os passos. Vês, José, os teus irmãos querem seguir-te os passos. Querem dizer coisas tolas, fazer coisas parvas e vir parar à prisão. É esse o ensinamento que lhes envias. És um mau exemplo.” “Por favor, mãe. Eu não fiz nada de mal. Limitei-me a defender as minhas ideias e o meu povo…” “Com armas! Se todos quantos defendem as suas ideias e o seu povo pegassem em armas, não restava uma única pessoa viva no planeta.” “Mas os reacionários apesar de defenderem as suas ideias, não defendem o povo.” “Ai não que não defendem. Tu convences-te de cada coisa. Só vós, comunistas rancorosos e vingativos, é que sois os salvadores do povo? Deixa-me rir. O povo não vos presta nenhuma atenção, nem vos respeita. Rejeita-vos. Detesta-vos.” “Isso é porque as pessoas são ignorantes.” “Tu é que és ignorante. Tu é que não percebes o povo que dizes defender. Tu e os teus camaradas prometeis-lhes o paraíso na Terra. Mas o pobre povo, quando a esmola é grande, desconfia. E com razão. Todos lhe mentem.” “Eu não.” “Tu és igual aos outros. Andas com eles, iludes-te com eles, mentes como eles.” “A revolução liberta os povos.” “Vês. És um mentiroso compulsivo…” “Compulsivo? Quem te ensinou essa palavra?” “É a palavra de Deus…” “De Deus…” “De certa forma sim, pois é a que mais utiliza o senhor padre quando fala da mentira, dos comunistas e do Demónio, que, na sua visão, constituem a Trindade Demoníaca.” “E tu sabes o seu significado?” “O senhor padre diz que quando o Diabo vos transforma em comunistas não sois capazes de conter a tendência para a mentira, pois mesmo pensando que estais a dizer a verdade, não conseguis resistir a apregoar a mentira. E a vossa mentira é medonha.”


O José ficou novamente calado e a Dona Rosa também. Passado algum tempo, a mãe vira-se para o filho e pede-lhe para rezar com ela. Ele levanta-se de imediato do banco e diz-lhe que se insistir na proposta a visita terminará nesse preciso momento. O silêncio instala-se de novo. A Dona Rosa ajoelha-se então sozinha, virada para o crucifixo da sala, junta as mãos, inclina a cabeça para o chão e reza. Os guardas prisionais fazem o mesmo, mas de pé. O José deixa-se ficar sentado a olhar para os pés.


Após a oração, a Dona Rosa senta-se de novo na cadeira, enxuga as lágrimas com o lenço e entrega ao filho as iguarias que lhe trouxe, avisando-o: “Não as desperdices com os teus camaradas e amigos.” Ele respondeu-lhe com a verdade, que também era um enigma para a sua mãe: “Os meus camaradas não são os meus amigos e os meus amigos não são meus camaradas.”


A Dona Rosa, surpreendida com a deixa, questionou-o: “Zangaste-te com os teus camaradas?” “Prefiro não responder.” “É uma boa notícia. Então já não tens amigos…” “Amigos tenho, mas não são os meus camaradas. São os outros.” “Quais outros? Os outros que não são comunistas são ladrões e assassinos. Não me digas que…” “Mãe, em Lucas 23:32-43 é contada a história de Jesus e dois ladrões na cruz. Um desses ladrões demonstrou uma atitude reta para com Jesus e pediu-lhe uma bênção futura. “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” foi a resposta que Jesus lhe deu. Para as pessoas, este é o parágrafo mais consolador da Bíblia.”


“Deus te abençoe, meu filho, voltaste ao caminho da fé e da esperança. Apesar disso, não faças muita confiança nos teus novos amigos. Come, reza e descansa. E afasta-te dos teus antigos camaradas.” “Assim farei mãe. E agradece os cigarros ao pai. E que Deus te abençoe e a mim não me desampare.” E riu-se. A Dona Rosa fez o mesmo.


O guarda prisional disse-lhes que a visita tinha terminado. 

24
Jul13

O Poema Infinito (156): iluminações

João Madureira


O dia começa a agasalhar as pedras, o musgo e os bichos. Fico imóvel na minha sombra. A casa começa a tremer de frio. Então invento o inverno. No mar, os barcos navegam aos sobressaltos. O silêncio percorre os corredores. As plantas constroem a terra. A minha avó debruça-se sobre a mesa e tenta dormir. As aranhas escrevem poemas de teias nas pedras das paredes. As palavras tornam-se agressivas. Na minha memória acendem-se imagens. Nos meus olhos acende-se o tempo. Todos os sorrisos são desconhecidos. Lá fora um par de namorados cintila procurando o lado quente do sol. Dentro de casa, os objetos brilham. Agora é possível percorrer novamente o caminho da adolescência, registar-lhe os gestos, vigiar o movimento perpétuo dos dias, reparar nas mãos que amam a pele e os sexos, atravessar a noite, alinhar as ruas, sentir a desolação do mar, perceber a amargura dos brinquedos, permanecer imutável como as asas das borboletas, deitar a cabeça em cima das fotografias que enlouquecem no seu instante inalterável, despertar dentro do corpo de quem se ama, passear no sítio onde o tempo se gasta, ouvir os lugares e os murmúrios das coisas, escutar os ruídos interiores das músicas. Tudo volta à sua arrumação agitada. Eu irrompo dentro da minha insónia. A água curva-se quando mergulho as minhas mãos na bacia. Procuro desesperadamente o teu sorriso e o seu brilho lamentativo. Pronuncio palavras violentas que são como gemidos vazios. Ainda nem saí de casa e já volto a ela de novo. A repetição dos dias deixa-me vazio. Escrevo a tua ausência dentro da minha ausência. Procuro-te dentro dos poemas como se a noite já viesse aí arrastando a sua força negra. Escrevo o teu nome na lista de todos os nomes. Aproximo-me do teu corpo passeando os dedos pelo desejo. O teu rosto levanta-se vagarosamente e estende-se no seu sorriso de noite mágica. Tudo é ainda novo. Reconheço os meus próprios erros e o uso violento do desespero. A cama parece feita de cristais líquidos, onde os corpos escorregam. Tenho a adolescência na boca. A memória ficou imobilizada junto ao mar. O mar entra pela janela. Inicio o ciclo dos relatos simples onde as embarcações perdidas entram no eco do tempo. Abro as mãos aos pássaros. Alice espera ainda do outro lado do espelho. O seu corpo tornou-se etéreo. Alice entrou definitivamente no secreto desejo onanista. As histórias e as lendas tornaram-se enigmáticas. Navegamos sobre águas oxidadas agarrados às espadas da insónia. Os homens afogam-se dentro dos seus próprios barcos, têm saudade de tudo e lamentam-se. O cio torna-se noturno, como a fome. E as vozes avançam. Navegamos na memória das tempestades, cansados dos portos e dos corpos e da distância dos lugares. Voltamos a partir para evitar o silêncio da morte e os estilhaços do desespero. Somente a memória sangra. O quarto transforma-se na sua própria insónia. Os sonhos navegam agora em terra, no seu pranto antigo, embebedando-se de saudade. Penso que acordo porque sonho que cheguei sem ter chegado. As colinas inclinam-se, o mar agita-se, o barco baloiça dentro da sua melancolia. Os deuses das pequenas coisas dançam agitando os seus corpos suados em redor do fogo. A nau onde navego está hipnotizada. O meu sexo voa de encontro ao teu. O cais ilumina-se. Os nossos corpos tornam-se fugidios. Os nossos beijos são agora obscenos. Existe sempre uma vontade de partir e uma urgência em chegar. As marés arremessam contra a cama onde nos agitamos. A alucinação do amor é um embriagante perfume. Somos duas ilhas sossegadas onde o amor é um movimento luminoso.

22
Jul13

Pérolas e diamantes (47): os trinta dinheiros e o feitiço das laranjas

João Madureira


Tudo indica que a gente de Chaves aprecia os líderes políticos que colocam os afetos e os princípios à frente das conveniências. Pessoas que têm ideias, convicções e que, sobretudo, acreditam naquilo que fazem e por isso conseguem fazer os outros acreditar de que é possível construirmos um futuro melhor. E olhem que, nos tempos que correm, conseguir protagonizar a esperança não é tarefa para qualquer um.

 

Está provado que o que se espera de um líder político não são ideias baralhadas e um arrazoado de promessas que todos sabemos serem impossíveis de cumprir. O que todos exigimos é alguém com ideias claras, com convicções profundas, que transmita esperança e que ame a nossa terra tanto como o mais humilde e intrépido dos flavienses.

 

O poder autárquico instalado na nossa terra parece desprezar a inteligência dos flavienses. Daí as sucessivas tentativas de nos tentar ludibriar com promessas vãs e com obras irrealizáveis. Mas na política nunca se deve subestimar o pouco que aparentemente as pessoas sabem sobre a situação financeira das instituições públicas. 

 

Uma coisa todos sabemos, na sociedade existem sempre aqueles que se acobardam e aqueles que comandam. Daí a necessidade imperiosa de apoiarmos quem saiba exercer o poder, como ensinava Sócrates, de forma simples e humilde, nunca se cansando de procurar a “virtude e a sabedoria”.

 

Desde há muito tempo que nos habituámos a olhar Chaves, porque a temos no coração, na sua perspetiva sólida, enraizada, resplandecente, gloriosa, inatacável. O poder faz-se e desfaz-se, mas a cidade mantém-se.

 

Esta gestão autárquica do PSD faz-me lembrar os tempos em que comia em cantinas. Quando muitos de nós tentávamos questionar a qualidade da comida, as chefias respondiam-nos sempre que a comida ali servida constituía uma dieta equilibrada. De facto era equilibrada, mas entre o intragável e o impossível de comer.

 

Nunca, como hoje, a política autárquica esteve tão necessitada de clareza, humildade e afetos. Quem se deixa iludir pelo dinheiro, pelas promessas vãs e pela prepotência acaba definitivamente derrotado, mesmo pensando que triunfou. No livro de Camilo Castelo Branco, O Demónio do Ouro, São Francisco de Sales avisa: “O dinheiro pode ser um bom servidor, mas é sempre um mau senhor.”

 

Alguns dirigentes autárquicos, pensando que se estão a servir dele, para aliciar, por exemplo, presidentes de junta para as suas listas, estão já a ser seus escravos. O medo de perderem o poder leva-os a atitudes desesperadas e mesmo mesquinhas.

 

Em ata camarária de 18 de julho de 2013, a Câmara de Chaves (num gesto de aliciamento serôdio e deselegante a presidentes de junta, alguns dos quais abandonaram as suas cores partidárias anteriores para se candidatam agora pelo PSD), assinou um denominado “protocolo” (que mais não parece ser do que os trinta dinheiros pagos a Judas) com 11 juntas de freguesia no valor total de 187.973 euros.

 

Oito invocando como motivo “arruamentos”: Vilas Boas (10.000€), Cimo de Vila da Castanheira (15.000€), Calvão (10.000€), Santa Cruz/Trindade (45.000€), Santo Estevão (10.000€), Vilarelho (15.000€), Eiras (25.000€) e Redondelo (12.000€).

 

Um invocando como motivo “saneamento”: Outeiro Seco (23.000€); outro invocando como motivo “equipamento Centro de Dia”: Soutelo (7.973€); e um terceiro invocando como motivo

“abastecimento de água”: Arcossó (15.000€).

 

E assim pensam comprar consciências e boas vontades. A três meses das eleições, como se fossemos um pobre concelho da América Latina, onde ainda se compram votos por uma malga de caldo e um par de botas. Estes gestos definem bem o caráter e a honradez políticas destes senhores.

 

A Rainha Santa Isabel, em pleno janeiro, conseguiu fazer um milagre e transformar o pão, que levava no regaço para os pobres, em rosas, para descanso do seu rei e senhor. António Cabeleira pretende, passados tantos séculos, protagonizar o milagre das laranjas, transformando paralelos em votos. Mas talvez o pretendido milagre se transforme em feitiço e se vire contra o feiticeiro.

 

Até que lhe era bem feito.

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