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168 – As mães têm em relação aos filhos um sexto sentido que as faz adivinhar os perigos que eles vão correr no futuro. De facto, a aventura revolucionária do José só podia terminar mal, quer os comunistas triunfassem, quer fossem derrotados, como foi o caso.
Lá na cela, o José fazia por não pensar em nada. Sozinho como um cão, o nosso herói entretinha-se a pensar no futuro. E, se para alguns dos seus camaradas, o futuro se lhes apresentava, apesar das adversidades, risonho e solarengo, para o José o seu futuro não tinha futuro nenhum, que é a pior coisa que um revolucionário encarcerado pode pensar. Os outros bem lhe diziam que desesperar jamais, mas ele desesperava mais um pouco a cada hora que passava.
Quando olhava para trás apenas sentia uma tremenda saudade de rever os amigos e de passear pela sua cidade. Sentiu que a revolução adiada, ou perdida, pouco lhe dizia. No fundo, os seus impulsos revolucionários foram sempre um pretexto para a amizade, não para a ação. Bem vistas as coisas, o José sempre fora um revolucionário pacífico. As revoluções violentas não se enquadravam na sua forma de ser.
Sentiu-se ridículo. Afinal fora perseguido e preso por nada. Limitara-se a andar a passear uma arma de um lado para o outro sem nunca ter disparado um tiro na direção de uma pessoa. A revolução para ele sempre fora bonita nos livros. Neles havia esperança, coragem, sentido de futuro, necessidade de libertação, determinação, arbitrariedades que tinham de ser combatidas, amores quase perfeitos, líderes exemplares, e um povo que sabia o que queria, que seguia sempre os seus libertadores e que os ajudava em tudo o que era necessário. Mas a realidade, a puta da realidade, essa megera mentirosa, revelava tudo de forma distinta.
O que mais o entristecia era o facto de ninguém, a não ser o louco e o burro, terem aderido à revolução. E nem esses dois o tinham feito de forma voluntária. Uma revolução que não mobiliza os operários e os camponeses, não é revolução nem é nada. De facto, aquela dúzia de revolucionários transmontanos tinha que desistir, ou da revolução ou da realidade, ou mesmo de ambas, para poderem continuar a subsistir como seres humanos.
Temos que ser sinceros, o José começava a duvidar seriamente da sua vocação comunista. Não era propriamente dos ideais, mas sim da sua exequibilidade. Uma sociedade forçosamente igualitária para todos devia de ser, além de praticamente impossível, uma tremenda chatice. O que dava beleza ao ser humano era a diferença. Ao chavão “todos diferentes, todos iguais”, ele gostava de contrapor o de “todos iguais, todos diferentes”.
Na verdade, o José iniciou mais um processo de dissidência, mesmo dentro da prisão. Apesar de levar bofetadas da mesma forma e feitio dos seus restantes camaradas começou a isolar-se, a não participar em pequenas reuniões conspirativas, a furtar-se às discussões ideológicas, a preferir a companhia dos outros prisioneiros à dos seus camaradas de partido.
Por causa da estranha conduta do José, quem foi chamado à responsabilidade foi o camarada Graça, seu amigo e controleiro de longa data, a quem foram transmitidas orientações precisas para o conduzir de novo ao seio da organização do Partido.
O Graça, sabendo do feitio obstinado e individualista do seu amigo e camarada José, tentou deferir o assunto para outro camarada. Mas o camarada funcionário logo lhe lembrou que o camarada controleiro é tão, ou mais responsável, pela conduta do camarada controlado do que o próprio camarada. Ele bem resmungou, dizendo que essa é que era boa. Mas lembraram-lhe o ditado popular que diz que tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta. E lá foi o Graça cumprir com o seu dever.
O José, quando o viu a dirigir-se na sua direção, tentou afastar-se. Um monge em meditação não fala com outro monge, apenas fala com Deus. Alguns dos seus novos conhecidos ainda tentaram barrar o caminho ao Graça, mas o José, lembrando-se da velha e sadia amizade, que é o que continuava a honrar, enviou um gesto discreto na direção dos seus novos amigos no sentido de o deixarem aproximar.
“Andas bem protegido! Depressa arranjaste novos amigos. E estes parecem ser dos bons e leais. Têm toda a cara disso. Estás de parabéns”, disse o Graça carregado de ironia. “Não são piores nem melhores do que os teus. São apenas diferentes”, respondeu-lhe asperamente o José. “Os meus! Os meus? Então não são os nossos?”, teimou o Graça. “Para mim já não são camaradas. Não prestam. Não prestamos. Além de fracos comunistas, são gente sem préstimo. Mas a culpa não é deles. É nossa”, avisou o José. Ao que o Graça contrapôs: “Não te esqueças que estamos todos aqui pela mesma razão: a revolução. Isso é aquilo que nos une…” “Ou o que nos separa…” “O que nos une… O que nos unia. Eu não desisti da revolução, de transformar o mundo, de o tornar mais justo…” “Ou injusto…” “Como podes dizer uma coisa dessas?” “Basta ler…” “Tu muito lês! Pensas que a verdade está nos livros?” “Alguma deve estar. Depende dos livros que lemos…” “Então os que tu lês são melhores do que os meus? É isso?” “Pelo menos são diferentes. Eu leio livros diferentes uns dos outros. Tu limitaste a ler sempre o mesmo livro. Tu só lês a cartilha marxista e os seus sucedâneos. Por isso não te dás conta da realidade. A verdade é que os nossos camaradas de Leste são uns verdadeiros assassinos. Transformaram os países onde triunfaram em asilos de alienados e em açougues humanos. São uns bárbaros que não têm perdão de Deus.” “Perdão de Deus? Já não te conheço, José. Vieram-te agora todas as dúvidas? Pobre de ti.” “Por que é que te desiludiste com a revolução?” “Tu chamas a isto uma revolução. Foi apenas uma brincadeira de mau gosto. Nisso, os portugueses são exímios. Em tudo o que mexem, estragam. E este arremedo de revolução é disso o exemplo acabado. E eu só me desiludi com a revolução porque alguém me iludiu. Mas eu perdoo-te, pois não o fizeste por mal.” “Olha, José, eu não preciso do teu perdão. Tenho ordens para te comunicar que tens vinte e quatro horas para te decidires a regressar ao seio do Partido e à nossa organização. Após esse período, e se a tua resposta for negativa, serás expulso e declarado rachado.” “E isso o que é?” “Colaboracionista.” “Eu não preciso de 24 horas, dou-te a resposta já…”, mas não lha deu porque o Graça foi-se embora a correr.
Desde este lugar apenas diviso a intensidade violenta da luz, dessa luz que nos agarra com as suas mandíbulas e que sustenta o pavor dos objetos faustosos. Os nossos olhos movimentam-se com uma ferocidade objetiva refratando as estrelas. Os dedos das mãos abrem-se enquanto falamos da teoria reveladora da gravitação dos sentimentos. As formas do teu corpo tornam-se rápidas e desenvolvem-se ao longo das paisagens pentagonais que são agora os abismos do fulgor com que nos projetamos em direção aos textos. O desejo corre indomavelmente dentro da nossa inocência. O medo destrói os extremos onde os nossos corpos se transformam em exemplos elementares. Os nossos rostos são de novo astros. Toda a violência é centrífuga. É nela onde os textos se deixam inundar pela necessidade das estações. As paisagens entram na órbita dos relâmpagos. A ciência torna-se selvagem. É nela onde o teu rosto aparece cercado pelas montanhas. É nela onde os poemas se tornam legendas de cinema mudo. Tens esse modo secreto de pôr tudo em movimento, tens esse estilo arriscado de queimares todas as tendências, tens essa maneira sagaz de retratares a decadência. O medo torna-se um grito aberto que se esconde dentro das fotografias sibilantes. As janelas ficam com fundos claros onde os animais se tornam intensos e nítidos. Os dedos ensinam o caminho do desejo. É em m.omentos destes que as mães ficam com as suas caras magníficas e sussurram doçuras. Voltam as paisagens, irrompem as flores, os rostos sustentam os abismos, as constelações palpitam. Tudo dança. Tudo caminha para dentro de si mesmo. As estações ficam brancas e inexplicáveis. As paisagens parecem agora embarcações cegas que navegam dentro da loucura salgada do mar. As estações ficam obsessivas. Essa é a sua doçura e a sua notável desordem. As casas contorcem-se ficando rápidas e espaçosas. A lua abre o seu rosto incrustado de árvores vazias. Toda a noite se enche de radiações largas. A voz rebenta. As musas afugentam as paisagens. A memória maneja a raiz da vida. Sobre a claridade do equilíbrio, o mundo transforma-se num halo repleto de imagens que se incendeiam como se fossem estrelas enervadas. A beleza torna-se áspera. No centro do mundo a energia fica suspensa da sua crueldade que devora a força ininteligível do rosto e da vontade de Deus. Os braços alargam-se, as mãos ficam transparentes, as árvores tremem dentro da sua potência imóvel. Já não consigo dormir porque os sonhos queimam. Todos os movimentos ficam prisioneiros da obscuridade. Dizes: tudo é inocente. Por isso é que não podemos ver o mundo de uma maneira só. Por isso é que és a minha força e a minha desordem. Por isso é que brilhas durante os crepúsculos, por isso é que atravessas as imagens deixando-as feridas dentro da sua limpidez. Agora escrevo frases tocadas pela devastação brutal da vida. O teu rosto cerca-me de memórias intactas deixando implícita a ideia que a idade é uma ferida que se forma dentro de nós. A paixão é uma melancolia luminosa. Entre nós e as imagens suspiram os textos. As mãos carregam a força que atravessa a morte. As mãos tocam a mudança. As mãos dançam dentro da nossa desordem. As mãos vestem-se de poros e escrevem palavras silenciosas. A tua boca fica agarrada à luminosidade dos beijos. Tu dormes dentro da minha insónia para me acalmares. Dos teus olhos salta a luz. A noite fica incendiada de doçura. Luzimos na noite como dois pirilampos apaixonados e repletos de medo.
Afinal, aquilo que todos temíamos veio a concretizar-se: o Governo desclassificou o Tribunal de Chaves. Isto perante a apatia e o silêncio público e notório do PSD local e da autarquia flaviense, curiosamente ambos dirigidos pela mesma pessoa.
António Cabeleira meteu a envergonhada “indignação” no bolso e ficou calado que nem um rato. Há silêncios indignos, este é um deles.
A senhora deputada eleita pelos flavienses votou a favor desta vexatória decisão. Diz-se por aí que o presidente da concelhia do PSD de Chaves ter-lhe-á indicado o voto contra. Mas, ao que parece, nem o governo central, nem o PSD nacional, e muito menos a senhora deputada Manuela Tender, ligam às orientações dadas por António Cabeleira. É bem verdade o que diz o nosso povo: um líder fraco faz fraca a forte gente.
Das duas uma, ou o líder do PSD local está amarrado de pés e mãos pelo PSD nacional à estratégia de menorização do Interior, que obriga os seus dirigentes a irem contra os interesses das populações que têm a imperiosa obrigação de defender, ou também existe a possibilidade de já ninguém obedecer a António Cabeleira.
Claro que também subsiste uma terceira hipótese, a do líder flaviense do PSD já não conseguir distinguir aquilo que é certo daquilo que é errado. Chaves podia, e devia, estar primeiro do que os partidos, mas não está. E isso prejudica-nos a todos. A defesa do Tribunal de Chaves não é uma questão ideológica, é uma questão de cidadania, de honra e de dignidade. Os flavienses merecem ter acesso a uma justiça de qualidade.
Temos de reconhecer que antes desta decisão, o PSD local ainda tentou encenar um pequeno ato de luta. António Cabeleira e a senhora delegada da Ordem dos Advogados em Chaves, uma militante social-democrata intermitente, agora candidata nas listas laranjas a vereadora, resolveram fazer que faziam e dizer que defendiam o nosso Tribunal.
A Câmara de Chaves resolveu alugar um autocarro para levar até Lisboa a senhora delegada da Ordem e mais alguns dos seus colegas de profissão, na tentativa de chegarem à fala com a senhora ministra da Justiça. Deste ato falhado apenas se terá aproveitado o leitão à bairrada que presumivelmente os excursionistas degustaram na famosa região.
O entusiasmo foi tanto que até apareceu divulgado no facebook. Mas da diligência nada resultou de substantivo. O Tribunal de Chaves foi mesmo desclassificado. Apenas a senhora delegada foi premiada com o convite para integrar as listas à Câmara do PSD local. O que é elucidativo.
Depois do encerramento das principais valências médico-cirúrgicas do Hospital de Chaves e depois da desqualificação do Tribunal de Chaves, o que se lhe seguirá? Talvez o encerramento da secção de Finanças, a diminuição dos efetivos da GNR e da PSP e, muito presumivelmente, a privatização e o traslado das Águas das Caldas para Vila Real.
Toda esta encenação do PSD, em relação ao Tribunal de Chaves, me levou a pensar em Creonte, da peça Antígona, de Sofócles. No início da tragédia, Creonte é até sincero e patriota e os seus discursos deixam transparecer sabedoria, sugerindo que a experiência é a base da liderança e que as obrigações para com o povo têm precedente sobre a lealdade entre os indivíduos.
É por este tipo de atitudes e encenações que o povo se começa a impacientar com os partidos tradicionais. Por isso é que começa a despontar uma nova geração de jovens descontentes com esta mentira social, com este faz de conta, com todo este embuste.
De facto, os movimentos independentes começam a mudar a natureza da luta social e política. É por eles que passa o futuro. E ainda bem. É urgente desempatar o jogo entre os partidos tradicionais. Eles são agora o vazio. E os livros ensinam-nos que a política tem horror ao vazio. Por isso é que estamos todos necessitados de uma nova alma, de um novo rumo, de uma nova atitude.
Por razões de afetividade, e profundo respeito, desta vez termino com as sábias palavras de Nelson Mandela, do seu livro “Autobiografia Um longo caminho para a liberdade”: “ Em certa medida, para mim a horta era uma metáfora de alguns aspetos da minha vida. Um chefe também tem de cuidar da sua horta; também ele lança as sementes à terra, vigia, cuida e recolhe os frutos. Tal como o hortelão, um líder tem de assumir a responsabilidade do que cultiva. Tem de estar atento, de afastar os inimigos, de preservar o que pode ser preservado e de eliminar o que não tem hipótese de futuro.”
De facto, devemos eliminar o que não tem hipótese de futuro. De outra forma voltamos a entregar o ouro ao bandido.
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