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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

03
Jul13

O Poema Infinito (153): memória suspensa

João Madureira


A memória ficou suspensa no teu rosto. Sim, vai ser possível inventar outra infância. É para lá que caminhamos lentamente sem ferirmos o nosso coração onírico. Há demasiado tempo para morrer. Todo o prazer nos alastra pela carne. O amor fere-nos as palavras e os olhares como se fossem marcas indeléveis que nos invadem pelas veias e nos magoam por dentro. Vamo-nos perder no caminho dos segredos. O vento agita a fragilidade dos gestos que nos fogem do corpo. Tudo é um logro silencioso. Os olhares dos moribundos abrem-nos a pele e o peito e a dor. O céu limpo deixa-nos exaustos de azul. Esperamos pela chuva que tarda. E pelo desespero. E pela desilusão. E pelos sonhos. E pelo sol que nos queima com a sua língua de fogo. As nossas mãos estão paralisadas de esperança. A fé sobra-nos porque nunca nos chegou. As rosas brotam da nossa alegria e engolem os espinhos e encobrem as sombras. Os anjos das manhãs conduzem-nos ao paraíso. O luar aprisiona-nos o olhar. A ilusão torna-se totalitária e fria. Todos os gestos são imperfeitos. Os abismos já perderam a ilusão da felicidade. Sorvemos o húmus amargo das raízes. As fontes fazem doer a ausência. Os corpos molham-se descongestionados pelos lábios. Somos mais leves do que o silêncio. Ouvimos sussurrar o mundo que não para de dar voltas. E voltas. E mais voltas. A nossa origem torna-se incandescente. Cumprimos o ritual da desilusão e da rendição ilegítima do gelo às noites frias de inverno. O inferno é outro. A violência precede sempre o amor. Os espíritos eternos têm um sabor amargo. Levitamos nos suspiros da nossa infância luminosa. Ela ficou para sempre recolhida no desejo impossível das origens. E nas margens desfeitas dos promontórios. E na ilusão das imagens de sedução. É de noite quando se incendeiam as praias e nos deixamos iludir pelos primeiros sinais da saudade. Agora moro na solidão dos teus dedos, onde os poemas tocam os rostos dos amantes. As fontes percorrem os filamentos da luz. Tudo se ilumina mais um bocadinho. A condição esgota-se nos seus próprios limites. As estrelas dançam enquanto escrevemos o nome dos mistérios que estão para chegar. As tuas mãos desenham trilhos na minha pele e atravessam a luz. O silêncio da lucidez é ainda o que mais dói. As palavras debruçam-se sobre as nossas cabeças. Tudo é vertigem e desassossego. As trevas fulgurantes escondem-se dentro dos espelhos. As paisagens estilhaçam-se. Tu és o meu deslumbramento, essa aura intensa que se esconde no centro da memória. Os momentos tornam-se breves e começam a doer. As flores tornam-se sombrias e trespassam o tempo frágil do amor. A luz fica mais fresca e íntima. O tempo domina a velha arte da renovação. Os olhares reúnem-se e regressam ao seu ciclo de desejo. E tocam os rostos. E preparam-se para a tristeza. E para a geometria da luz. Havemos de cumprir o destino. Desabam sobre nós as lágrimas convidadas pelas catástrofes. As folhas caem e assustam os pássaros. O teu sorriso arde por dentro da entrega. O teu corpo estica-se na direção dos meus dedos. As tempestades tornam-se sólidas. As palavras sucedem-se aos instantes. E gastam-se. As andorinhas refletem o fim das estações. O frio torna-se imóvel. A destreza das palavras absorve a sombra dos livros. Vamos aprender a dominar a envolvência do fogo. Afinal, não passamos de simples árvores que ardem dentro do seu próprio exílio. O outono acentua-se com a presença do fogo. A brisa torna-se impercetível. Sou um marinheiro de mágoas em busca do teu corpo de abrigo. Eu sou a voz que chama o dia e convoca as paisagens brancas. 

01
Jul13

Pérolas e diamantes (45): a realidade, essa meretriz!

João Madureira


As manifestações públicas, que alguns denominam de comícios, apesar de entusiasmarem muita gente, a mim dececionam-me. Não porque falte veemência aos discursos dos tribunos, mas porque, no fim, quase sempre as pessoas que enchem as praças se separam e vão para suas casas com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.

 

Alguns, os mais entusiastas, vão em pequenos grupos para os cafés, ou para os bares, sem outra perspetiva visível, a não ser a de participarem num novo comício, daí a uns tempos.

 

Os esquerdistas, mais molengões, entusiasmam-se com a sua eterna predisposição para perorar sobre as reivindicações das minorias oprimidas ou, então, sobre os alienáveis direitos dos animais, evitando admitir que, afinal, estão aterrorizados com a verdadeira pobreza dos pobres.

 

Eu, para mal dos meus pecados, alinhavo mentalmente alguns apontamentos, e irmano-me com Lou Reed no seu “walk on the wild side”. E o resto que se lixe.

 

Só que, para mal dos meus queridos amigos detratores, enganamo-nos quase sempre com a sorte. E também com o destino. A bem dizer, enganamo-nos com quase tudo. Menos com a verdade. A nossa verdade.

 

Eu, para mal dos meus pecados, já tive esta interminável discussão para aí um cento de vezes com esses meus queridos e estimados amigos detratores. Eles acenam sempre com as suas cabecinhas pensadoras e sorriem como hienas amigas. Por isso é que tudo fica sempre mais ou menos na mesma. Eles no seu sorriso. Eu na minha teima.

 

Eles, como solidários e seguros aliados que são, e sempre foram, pois conheço-os há muito, muito tempo, avisam-me sempre: “O mundo é cruel”. 

 

«Eu», lastimável como sempre, limito-me a responder-lhes com a minha casaca virada: “Sim, o mundo é cruel, mas vende todo o tipo de anestesia a quem pode pagar por isso.”

 

Então «eles» contrapõem: “Não existe o «eu». O «eu» não passa de ficção. De ficção presunçosa. Nós (querendo dizer «tu»), não somos nada.”

 

Eu então tento sorrir e penso no que a minha avó me dizia: “É melhor não ser nada do que parecermos figuras de estilo, sempre com um sorriso no rosto e uma mentira nos lábios.”

 

“Tu não sorris?”, perguntam-me esses diademas da alma, esses tartufos do acolhimento. Eu respondo-lhes que os magros não arreganham os beiços.

 

“Olha a realidade”, avisam-me essas bonecas da metafísica ou esses duendes rubicundos ou esses antónios nobres frustrados e melancólicos ou esses serviçais de província ou esses bardos inconsequentes ou esses calados do regime ou esses reformados do sistema ou esses meninos das trotinetes. E eu olho-a.

 

E a puta da realidade, essa meretriz verdadeira e íntegra, sentada confortavelmente no seu conhecimento, confessa-me: “A minha vantagem é não ter ninguém atrás de mim manipulando interpretações que não passam de más notícias sobre a minha pessoa.”

 

A verdadeira história, para ser verosímil, tem de possuir um final coerente. Não basta apenas confiar na falsa verdade que nos contam. A verdade que eu protagonizo tem de ter a minha própria história e não a dos outros. A minha, não a vossa. A minha. A ver se entendem de uma vez.

 

A verdadeira sabedoria reside em conseguir tirar o máximo do mínimo.

 

E aos heróis da cobardia e do disfarce e aos campeões da ignomínia respondo com duas locuções romanas: de minimis non curat praetor (uma pessoa importante não se ocupa com ninharias); aquilae non gerunt columbas (uma pessoa perversa não é capaz de praticar atos virtuosos)

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