O Poema Infinito (153): memória suspensa
A memória ficou suspensa no teu rosto. Sim, vai ser possível inventar outra infância. É para lá que caminhamos lentamente sem ferirmos o nosso coração onírico. Há demasiado tempo para morrer. Todo o prazer nos alastra pela carne. O amor fere-nos as palavras e os olhares como se fossem marcas indeléveis que nos invadem pelas veias e nos magoam por dentro. Vamo-nos perder no caminho dos segredos. O vento agita a fragilidade dos gestos que nos fogem do corpo. Tudo é um logro silencioso. Os olhares dos moribundos abrem-nos a pele e o peito e a dor. O céu limpo deixa-nos exaustos de azul. Esperamos pela chuva que tarda. E pelo desespero. E pela desilusão. E pelos sonhos. E pelo sol que nos queima com a sua língua de fogo. As nossas mãos estão paralisadas de esperança. A fé sobra-nos porque nunca nos chegou. As rosas brotam da nossa alegria e engolem os espinhos e encobrem as sombras. Os anjos das manhãs conduzem-nos ao paraíso. O luar aprisiona-nos o olhar. A ilusão torna-se totalitária e fria. Todos os gestos são imperfeitos. Os abismos já perderam a ilusão da felicidade. Sorvemos o húmus amargo das raízes. As fontes fazem doer a ausência. Os corpos molham-se descongestionados pelos lábios. Somos mais leves do que o silêncio. Ouvimos sussurrar o mundo que não para de dar voltas. E voltas. E mais voltas. A nossa origem torna-se incandescente. Cumprimos o ritual da desilusão e da rendição ilegítima do gelo às noites frias de inverno. O inferno é outro. A violência precede sempre o amor. Os espíritos eternos têm um sabor amargo. Levitamos nos suspiros da nossa infância luminosa. Ela ficou para sempre recolhida no desejo impossível das origens. E nas margens desfeitas dos promontórios. E na ilusão das imagens de sedução. É de noite quando se incendeiam as praias e nos deixamos iludir pelos primeiros sinais da saudade. Agora moro na solidão dos teus dedos, onde os poemas tocam os rostos dos amantes. As fontes percorrem os filamentos da luz. Tudo se ilumina mais um bocadinho. A condição esgota-se nos seus próprios limites. As estrelas dançam enquanto escrevemos o nome dos mistérios que estão para chegar. As tuas mãos desenham trilhos na minha pele e atravessam a luz. O silêncio da lucidez é ainda o que mais dói. As palavras debruçam-se sobre as nossas cabeças. Tudo é vertigem e desassossego. As trevas fulgurantes escondem-se dentro dos espelhos. As paisagens estilhaçam-se. Tu és o meu deslumbramento, essa aura intensa que se esconde no centro da memória. Os momentos tornam-se breves e começam a doer. As flores tornam-se sombrias e trespassam o tempo frágil do amor. A luz fica mais fresca e íntima. O tempo domina a velha arte da renovação. Os olhares reúnem-se e regressam ao seu ciclo de desejo. E tocam os rostos. E preparam-se para a tristeza. E para a geometria da luz. Havemos de cumprir o destino. Desabam sobre nós as lágrimas convidadas pelas catástrofes. As folhas caem e assustam os pássaros. O teu sorriso arde por dentro da entrega. O teu corpo estica-se na direção dos meus dedos. As tempestades tornam-se sólidas. As palavras sucedem-se aos instantes. E gastam-se. As andorinhas refletem o fim das estações. O frio torna-se imóvel. A destreza das palavras absorve a sombra dos livros. Vamos aprender a dominar a envolvência do fogo. Afinal, não passamos de simples árvores que ardem dentro do seu próprio exílio. O outono acentua-se com a presença do fogo. A brisa torna-se impercetível. Sou um marinheiro de mágoas em busca do teu corpo de abrigo. Eu sou a voz que chama o dia e convoca as paisagens brancas.