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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Ago13

O Homem Sem Memória - 173

João Madureira


173 – Tudo aconteceu como nos filmes. Os comunistas do Norte atravessaram a ponte sobre o Mondego na direção Sul e os reacionários do Sul fizeram-no na direção do Norte. Encontraram-se a meio. Eles eram doze, como todos sabemos. Já os prisioneiros do Sul eram perto de cinquenta. Ou seja, a valia do grupo do José era muito maior. Cerca de quatro para um. O que era motivo de orgulho. Postas as leis do mercado a funcionar, dava para perceber que o preço de um comunista era muito superior ao de um reacionário. E isso fazia todo o sentido.


Chegado ao lado de lá, o sítio da liberdade e do socialismo, o José olhou para a terra que abandonava, que era a sua, mas que lhe tinha sido madrasta, e reparou que a meia centena, feliz e contente, de reacionários foi convidada a entrar num autocarro. Eles, entre sorrisos e abraços, fizeram-no na mais perfeita ordem, como se estivessem a entrar na terra da liberdade. Já os camaradas tinham uma carrinha pequena à sua espera, em tudo parecida com uma viatura celular. E foi para ela que foram obrigados a entrar. Quando perguntaram por que em vez de uma viatura civil lhes tinham enviado uma carrinha para transportar presos, os camaradas limitaram-se a dizer que eram ordens superiores. Os camaradas do Norte inquiriram então de quanto de cima elas provinham. Eles responderam que diretamente do Comité Central. Todos sentiram um aperto no coração. O Comité Central nunca se engana. Tiveram então um mesmo pensamento: alguma coisa estava mal. O futuro era uma grande incógnita. Como sempre, adiantamos nós que já andamos nisto há muito tempo.


Sem mais palavras, foram convidados a entrar na carrinha e abalaram dali não se sabe bem para onde. Mas para Sul era de certeza. Disso estavam eles certos.


Andaram muito. Mas mesmo muito. Aperceberam-se que as curvas iam diminuindo e que a velocidade ia aumentando. E o calor também. Ninguém deu palavra. Iam em meditação. Por fim pararam.


Quando lhes abriram as portas para saírem, foram inundados de luz. Estavam dentro de um estabelecimento prisional imaculado na sua brancura. Tudo ali resplandecia. Perguntaram a um homem com cara de diretor de alguma coisa onde se encontravam. Ele respondeu-lhes que não tinha autorização para lhes explicar nada a não ser que estavam presos, por ordem do Comité Central, para averiguações. O camarada funcionário ainda tentou puxar dos seus galões, informando o camarada diretor de que ele era funcionário do Partido, que tinha liderado um grupo de guerrilha no Norte, que tinha sido feito prisioneiro e que tinha, ele e os seus camaradas, sido trocados por um grupo de cinquenta prisioneiros reacionários.


O camarada diretor nem para ele olhou. Limitou-se a assinar um papel que lhe puseram à sua frente e foi-se embora com alguma pressa e também com algum aprumo. Foram todos enfiados numa cela comum.


Tentaram então descansar e pôr as ideias em ordem. Mas não conseguiram. A situação era confusa de mais. Passados algumas horas deram-lhes de comer. Uma comida tão mal confecionada como a que lhes serviam lá no Norte reacionário. Eles comeram e calaram. Depois da entrega da loiça, voltaram para os seus catres e puseram-se novamente a ruminar as ideias para tentar perceber o que lhes estava a acontecer. O culpado daquela situação só podia ser um: o José. Ele e mais a sua rebeldia e a sua religião que lhe embotavam a razão e o conhecimento. Isso foi o que pensou o funcionário, que era o mais esclarecido do grupo. Mas os outros também chegaram à mesma conclusão, sem grande dificuldade. Apenas o Graça tentou ir por outro caminho. Mas não foi capaz. A existir um culpado, tinha de ser o José. E como tinham chegado a essa conclusão? Pois porque o Partido tudo sabe.


Incomodado com a situação, o camarada funcionário resolveu convocar uma reunião geral. Mas deixou logo claro que o José estava excluído. Ele ainda tentou averiguar o porquê, mas desistiu. Não valia a pena. Ou melhor, estava à vista de todos, só um cego ou um reacionário, que são, em termos políticos, a mesma coisa, é que não via.


A reunião fez-se num canto e o José foi obrigado a ficar no outro. O Graça referiu, e bem, que dessa maneira o José ouvia tudo. O camarada funcionário respondeu-lhe que uma coisa é ouvir, outra, bem diferente, é ter o direito a falar. E esse, o José tinha-o perdido há muito tempo.


Todos sem exceção zurziram no José o mais que puderam. Acusaram-no de tudo. Até de terríveis desvios ideológicos e mesmo traição. Muitos referiram que ele, o traidor, o rachado, devia ter sido deixado lá no Norte, preso, a sofrer as consequências. O Graça lembrou-lhes que o José estava preso e todos eles também. E isso é que era estranho. Prendê-lo a ele, ainda vá que vá, agora trocar prisioneiros comunistas e mantê-los na mesma situação é que não fazia sentido nenhum. Mais valia tê-los deixado estar onde estavam. Lá no Norte ainda eram autorizados a ver a família. Ali não podiam, pois não estava a ver a forma das autoridades socialistas autorizarem a deslocação de familiares reacionários a terras da liberdade. Todos concordaram que a situação era, no mínimo, bizarra. A existir um traidor, era o José. Sendo assim, era ele quem devia estar preso por causa dos erros cometidos. Não todos, pois era injusto. A eles deviam libertá-los e até prestarem-lhes uma homenagem pública. Eles tinham pegado em armas para libertarem a sua terra da exploração, da ditadura e da reação.


Por ter a consciência limpa, ou pensar que a tinha, pois, objetivamente, é a mesmo coisa, lá no seu canto, o José caiu num sono profundo. Começou a ressonar alto e bom som. Tal atitude foi também objeto de censura por parte dos seus camaradas. Que era um provocador. Que era um reacionário. Eles preocupados com a situação política. E o José como se nada fosse com ele. A dormir como um bebé. Sem se ralar com nada. Era-lhe bem feito. Estar preso era uma situação justa. Ele bem a merecia. O Partido sabe sempre bem aquilo que faz. O Graça pediu então esclarecimentos ao camarada. Se compreendia a situação era bom que a explicasse a todos.


O camarada funcionário tentou. Que como o Partido tudo sabe, também sabia quem era o traidor. Por isso a situação da prisão de todo o grupo só podia ser um engano, ou excesso de zelo. Há muitos camaradas que são mais papistas que o Papa, ou melhor, que são mais comunistas que o próprio camarada Alberto Punhal. Mas a verdade, que é apenas comunista, como todos sabemos, é como o azeite, vem sempre ao de cima. E que nestas coisas da revolução, existe muita confusão, mas acabam sempre por triunfar os bons e o seu fundamento. Na revolução comunista nunca pode triunfar o mal. Isso é, pura e simplesmente, impossível.


Depois de muito discutirem, passaram às resoluções. Estava na hora de decidirem o seu futuro. E o do José. A situação até podia ser difícil, e era-o de facto, mas um comunista nunca desiste, nem de lutar nem de procurar a verdade, pois só ela é revolucionaria, e vem sempre ao de cima como o azeite. Ele, como o camarada mais responsável do grupo, e seu líder natural, propôs que o José fosse definitivamente expulso do Partido e denunciado mais uma vez aos organismos superiores por desvio ideológico e abandono dos princípios irrefutáveis do marxismo-leninismo. Da reunião foi elaborada uma ata onde constaram todas as decisões. Até a abstenção do Graça no momento da expulsão do José, em nome da amizade. Isto apesar da advertência do camarada funcionário que lhe lembrou que a amizade não se pode sobrepor à razão, nem aos supremos interesses do Partido e da Revolução.


Quando o camarada funcionário deu a reunião por terminada, ainda o José dormia e ressonava como um justo.

28
Ago13

O Poema Infinito (161): exílio

João Madureira


O espaço expande-se em cima dos nossos nomes, dos nossos corpos, dos nossos sonhos e dentro dos nossos olhos, como se eles fossem o mundo inteiro. Vemos passar o tempo com o mar feliz dentro. Escutamos a sua pulsação. O seu desencanto. Ficamos presos na sua letargia. A brisa inscreve-se dentro do mar e escuta o seu ritmo. O ruído inscreve-se dentro do silêncio prévio. Todas as formas são epifanias do concreto. Talvez as águas nos façam chegar a alegria líquida das palavras. A manhã trepa a sua escala de claridade e abre a sua sabedoria ao mundo. É dessa luz que se faz o sofrimento. E a alegria. O tempo brilha na lentidão da madrugada e orienta-se pela demorada progressão das sombras antigas. A transparência regressou na sua profundidade cristalina. A luz delimita os termos dos objetos. As nuvens fixam-se no céu e modelam-no com a sua gama de matizes. A natureza fica estática. Os sítios abrem-se. As palavras pulsam. O esquecimento lembra-se das cheias que vinham de poente, quando o tempo sofria com as tempestades das palavras que abatiam as imagens e os signos. Sucumbimos à solidão doce da noite onde as árvores sofrem. São longínquas as figuras que dobram as trevas. Os corpos insinuam-se. A infância transforma-se num distúrbio alegre. Nela se estende a nitidez surda do passado. Prolongam-se os bosques e os prodígios. A paixão forma-se devagar dentro das imagens esquecidas. As aves oferecem-nos a rapidez dos seus voos. À tarde, a eternidade aperta. Os vagares tornam-se acústicos. A tristeza torna-se visível na alegria. Os montes esquecem os povoados. Os nossos olhos medem a solidão dos outeiros. Os anjos passam abstraindo-se do silêncio. O tempo voa alto. O tempo desfaz as almas. O tempo reconhece a orientação dos rios. Sofremos com os atalhos dos sentidos. E com o ócio do azul. E com a imensidão do mar. E com a lenta progressão das palavras. O universo roda à procura do seu declínio. Tu és a minha causa. Eu sou o teu efeito. O verão arruma as nuvens, difunde o brilho do sol, estende o calor contemplativo. Todo o esplendor é um indício de ausência. Por isso, as imagens oferecem apenas o seu júbilo redondo. Encaramos o infinito, pois sabemo-lo inundado de fogo e fulgor. A linguagem é o nosso exílio permanente. Saboreamos a gentileza amarga da velhice. A luz expõe a solidão deserta dos objetos. Sonhamos com a limpidez do inverno. Com o seu frio dourado pelo sol. Com o tempo a trepar-lhe pelo tronco. Os rostos recuperam a sabedoria da transparência. Os corpos tornam-se abstratos e o seu vagar contamina os espaços. Os verbos deduzem a impotência dos textos. As imagens tornam-se vivas e caminham sobre os indícios da luz. As ideias esperam pela sua melodia analítica. Sofro com a alegria. Escuto o silêncio dos espaços. A infância brilha de novo.  Sinto o seu júbilo e o seu pranto. Esqueço as palavras. O silêncio traz outro silêncio. As almas ficam incandescentes. Todo o rigor é concreto. A escuridão torna-se implícita. Já ninguém ouve as palavras de luz. Todos os nomes crescem e morrem dentro do seu exílio. O mundo acolhe as palavras sacramentadas pelas águas. O exílio é o lugar onde se debruça a paciência. A harmonia dissemina o tempo. A luz mata as imagens. A tua boca brilha. As sombras matutinas ficam longas. A manhã imobiliza-se. Todos os instantes se perdem queimados pelo tempo. O mundo alonga-se. O crepúsculo bate as suas asas douradas. O mundo é agora um exílio de claridade esfumada. Sinto a loucura a descer com a noite. A solidão fica sem margens. A história repete-se. A história. A.

26
Ago13

Pérolas e diamantes (52): o momento da poda

João Madureira

 

Depois do fiasco da feira do pastel e do festival de música (quem é que gosta de degustar os saborosos pastéis de Chaves polvilhados de poeira?), António Cabeleira resolveu apostar em mais dois eventos para fazer campanha eleitoral.

 

Vai daí pegou na anterior feira medieval, mudou-lhe o nome para “Aquae Flaviae – Festa dos Povos – Mercado Romano”, agarrou em peças do museu da cidade e resolveu distribuí-las pelas lojas comerciais, edifícios públicos e hotéis do centro histórico.

 

É caso para escrevermos como diz o nosso povo: não há fome que não dê em fartura. De facto, depois de sucessivos ciclos autárquicos de imobilismo e ineficácia cultural, eis que, de repente, a Câmara de Chaves, subchefiada por António Cabeleira, se desmultiplica em propaganda política, ajaezada de dinamização cultural.

 

A autarquia, vá-se lá saber porquê, resolveu gastar 40.000 € na promoção de um evento de duvidosa qualidade cultural. E mais estranho é que o fez em fim de ciclo político e em tempo de contenção orçamental, austeridade e vacas magras. É caso para dizer que António Cabeleira, qual administrador romano, apenas aprendeu a entreter o povo com panem et circense. Quem assim se comporta bem pode dar ao Diabo aquilo que sabe.

 

Além disso, o candidato António Cabeleira, numa manobra de propaganda parola e ilegal, publicou num grupo do facebook, ajudado por um apaniguado, disfarçado de independente, o seguinte texto: “PPD/PSD – Todos por Chaves / Aquae Flaviae – Festa dos Povos – Mercado Romano. Viagem ao Império Romano com mais de mil figurantes, 78 expositores muitas recriações históricas.” E etc. Depois segue-se um texto explicativo. E no final: “Nós acreditamos em Chaves / Nós acreditamos nos flavienses. / É hoje. / Todos por Chaves, com o PSD. / Verdade – Trabalho – Competência. “

 

Aqui fica a prova provada de que a tal Festa dos Povos foi um evento pago por todos nós para servir de propaganda eleitoral encapotada, ou já nem isso, ao PSD de António Cabeleira. O descaramento, o abuso e a iniquidade já tomaram conta dos apaniguados e dos propagandistas, à boa maneira soviética, da fação do PSD do senhor arquiteto. 

 

E na própria página de António Cabeleira aparece a confirmação: “PPD/PSD - Todos por Chaves / Aquae Flaviae – Festa dos Povos – Mercado Romano. Viagem ao Império Romano...”, etc.

 

António Cabeleira, com o desespero, já não consegue distinguir a Câmara de si próprio. Já não faz distinção entre o PSD e a autarquia. Já não sabe às quantas anda, nem a que terra pertence.

 

Decididamente, o senhor vice já não sabe o que mais inventar para combater o pânico. Agora meteu-se-lhe na cabeça que enfiar trajes romanos nos funcionários da autarquia, pô-los a fazer de figurantes e distribuir a esmo peças do museu ao deus dará, lhe vai trazer votos e, dessa forma, combater os estragos que o senhor vice provocou no seu partido e, sobretudo, na cidade.

 

O título da notícia define o evento: “Chaves viaja no passado.” Sim, de facto a nossa cidade, com esta Câmara, não só viaja no passado como voltou a ele sem ter necessidade de outros adereços, além da crua realidade.

 

Até porque uma coisa é viajar ao passado, outra, bem distinta, é viajar no passado. Ou melhor: viver no passado. Todos o sabemos: os últimos doze anos de gestão autárquica foram ou de imobilismo ou de atraso de vida.

 

Pegando na prosa jornalística, a intenção do senhor vice é transformar a nossa cidade “numa página arrancada de um livro de história romana, habitada por imperadores e imperatrizes, legionários, gladiadores, senadores, escravos, mendigos, músicos e bailarinos”.

 

Eu quando vejo alguém arrancar páginas de um livro fico arrepiado, mas temos de convir que o verbo até está bem escolhido. De facto, esta gestão autárquica tem arrancado do livro de Chaves páginas e páginas de orgulho, racionalidade, verdade, transparência, memória e liberdade.

 

Só esperamos que, e pegando um pouco na história do Império Romano, este ato serôdio de aproveitamento político, travestido de evento cultural, seja o princípio do fim do “Império” destes senhores, que se fartaram de distribuir benesses e empregos pelos apaniguados, mandando às malvas a democracia, a lealdade, o sentido de justiça e de serviço público que juraram defender quando tomaram posse.

 

Olhando para a nossa cidade, e para a dupla que gere os seus destinos, sentimos que, ao contrário de outras cidades, ou países, em vez dos nossos políticos serem entrevistados por humoristas, por aqui acontece uma coisa bizarra: os nossos políticos parecem cada vez mais personagens criadas por humoristas.

 

Por isso é que há sempre o risco de os mais indignados com o estado do país e da cidade se retirarem da participação cívica e democrática. Hoje ainda é atual aquela frase do filme “A Canção de Lisboa”: «Vamos embora que isto é uma aldravice.»

 

É difícil nos dias de hoje dispensarmos a ironia. Eu prefiro-a, ou cultivo-a, por vezes mansa, por vezes irada, mas exijo-a sempre colada à realidade e, para mal dos meus pecados, encostada ao absurdo da existência. Manias!

 

A quem me procura compreender sempre informo que me pode encontrar já não, como dizia Natália Correia, “entre o riso e a paixão”, mas sim entre o “riso e a compaixão”.

 

Por falar em riso, humor e compaixão, relativamente a esta gestão camarária, um verso de Alexandre O`Neill vale mais do que mil fotografias: “Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha.”

 

Doze anos de António Cabeleira como vice camarário é muito tempo. Todos pensávamos que esse seu percurso era um caminho para chegar a algum sítio, quer se tratasse de um ruela tortuosa ou, então, de uma autoestrada socratista. Mas, neste caso, para mal dos nossos pecados, tratou-se apenas de um caminho para não sair de sítio nenhum.

 

Ele não percebeu o óbvio. É que há uma altura na vida das cidades, dos partidos e das pessoas, que se assemelha à vida das árvores: um dia chega o momento da poda. Ele, definitivamente, era o ramo que necessitava de ser podado para a árvore poder tornar a medrar e a dar frutos. Como não percebeu, só nos resta desejar-lhe que a derrota lhe seja leve.

 

PS – Deixe, estimado leitor, que o convide para em conjunto fazermos um brinde. Mas só ao passado e ao futuro, pois este presente não merece brinde nenhum.  

23
Ago13

O Homem Sem Memória - 172

João Madureira


172 – Andava o José atarefado a organizar e a catequizar as suas tropas quando o inesperado aconteceu. O seu nome fazia parte de uma lista de troca de prisioneiros entre a República Democrática do Norte e República Popular do Sul. Ele nem queria acreditar. Logo agora que andava no seu processo profundo de dissidência política e ideológica é que tinha de ser novamente confrontado com toda a canga comunista marxista-leninista. Isso até era o menos, pois palavras leva-as o vento. Mas ter de aturar de novo todos os seus antigos camaradas é que lhe provocava fastio. Se fosse apenas o Graça, ainda vá que não vá, agora suportar o funcionário e toda a sua idiossincrasia idiota punha-o à beira de um ataque de nervos.


A sua primeira reação foi recusar a oferta. No que foi apoiado pelos seus novos acólitos e até, vamos lá saber porquê, pelos seus ex-camaradas. Mas as ordens eram explícitas, todos os prisioneiros políticos guerrilheiros comunistas tinham de ser postos do outro lado da fronteira. Todos sem exceção. Ele ainda ripostou lembrando que já não fazia parte do grupo. Mas as autoridades lembraram-lhe que uma vez comunista, comunista para sempre. O José contestou essa pretensa verdade com todo o fervor de que foi capaz de se socorrer. Mas a resposta desconcertou-o. A sua capacidade de organização, o seu talento para a persuasão, a sua habilidade para a liderança, a sua lealdade às ideias e, sobretudo, o seu permanente desafio às autoridades e o seu inesgotável poder de contestação às instituições e ao poder constituído eram disso a prova mais evidente e insofismável de que era comunista. Ele disse “olhe que não”, parafraseando o seu ex-líder Alberto Punhal, e de seguida contestou o argumento falacioso lembrando que os antigos, e genuínos cristãos, de que eram exemplo paradigmático, assintomático e problemático, Jesus Cristo e os seus apóstolos, os islamitas e os anarquistas eram gente da mesma fibra e de idêntico feitio. As autoridades, ou alguém por elas, lembraram-lhe que a prova provada de que continuava revolucionário era esta sua permanente inquietação e inconformismo. Ele lembrou-lhes que tal não era verdade, pois os comunistas eram gente do mais conformista que existe à face da terra, que se limitava a ler e a acreditar numa só ideologia e numa só verdade. Os dignos representantes da autoridade reacionária contrapuseram que pouco percebiam de política, que se limitavam a ter bom senso e a cumprir as ordens que vinham de cima, ou seja, atuar de acordo com a lei vigente e democraticamente estabelecida, pois quem manda, manda bem. Ele riu-se. Eles também. Ele tornou a rir-se. Eles, para não se ficarem atrás, riram-se de novo. O José ainda gargalhou uma terceira vez. Mas as autoridades, sentindo-se postas em causa, carregaram-no de bofetadas. Calaram-no, mas à força, porque apenas com o poder da argumentação era pura e simplesmente impossível. Todos o sabiam, o José, os pais do José, os amigos do José, os camaradas do José e, vá-se lá saber porquê, até os inimigos do José.


Mas a contestação deu alguns frutos. As autoridades condescenderam em ir falar com os prisioneiros camaradas do José para tentarem perceber a situação entretanto criada. Mas eles, como bons comunistas, recusaram-se a discutir uma questão interna do Partido fora dos órgãos próprios e, especialmente, com os representantes das forças reacionárias e opressivas do seu povo.


Depois de algumas lambadas bem dadas, e distribuídas equitativamente por todos, não fossem eles argumentar de que foram injustamente discriminados pelas autoridades, como muito bem lembrou um seu elemento mais esclarecido, transigiram em convencer o camarada funcionário a ir às boas. Afinal tratava-se apenas de permutar umas simples e discretas palavras sobre uma hipotética troca de prisoneiros políticos. Aqui ninguém cedia. Era ela por ela.


O funcionário, mesmo com a cara vermelha como um pimento, e já com um olho inchado, teimava na sua, de que não podia ir contra a disciplina partidária. Mas por fim lá se resolveu a participar no diálogo pacífico e construtivo entre as partes. Afinal, se a URSS aceitava a coexistência pacífica entre os diversos sistemas políticos mundiais, por que razão ele não podia seguir a mesma orientação?


As autoridades, ou o seu representante mais graduado, ainda não apurámos ao certo, quiseram apurar a razão por que o camarada, salvo seja, José, se recusava terminantemente a fazer parte da lista de troca de prisioneiros entre o Norte e o Sul.


Eles, os camaradas, ou ele, o camarada funcionário, ainda não sabemos ao certo, responderam que era um problema de disciplina interna de que não podia, ou não devia, falar.


Ele, o representante mais graduado, está claro, ou elas, as autoridades, como é correto dizer-se se tal corresponder à verdade, coisa que até ao momento ainda não conseguimos tirar a limpo, insistiram na pergunta.


Ele, o camarada funcionário, ou eles, os restantes camaradas da célula guerrilheira, ainda não conseguimos dizer de fonte segura, insistiram na resposta.


As autoridades, ou o seu representante mais classificado, ainda não sabemos ao certo, insistiram mais uma vez na pergunta.

 

Eles, os camaradas, ou ele, o camarada funcionário, ainda não apurámos devidamente, responderam da mesma forma e feitio, que era tudo uma questão interna. Que os problemas de família se discutem dentro da família. 


Ele, o representante mais graduado, ou elas, as autoridades, coisa que até ao momento ainda não conseguimos tirar a limpo, pegaram no argumento incluído na resposta e disseram que estavam de acordo. Mas lembraram-lhe, ou “lhes”, como é mais avisado escrever, para não fugirmos ao rigor, como é nosso apanágio, que é também em família que se aplicam os tratamentos corretivos. Vai daí encheram-no, ou “nos”, como é avisado escrevermos pelas razões já invocadas, de estalos, bofetadas, lambadas e chapadas e ainda dos seus derivados: lapadas, bofetões e tapa-olhos.


Mas como a coisa não desempatava, pois os comunistas são extremamente teimosos e disciplinados, e porque fazia parte do acordo entregar a mercadoria para troca em bom estado de conservação, o representante da autoridade, disso temos a certeza absoluta, mandou que os comunistas fossem respeitados nos seus princípios. Se não queriam falar, isso era um problema que só a eles dizia respeito. E deu ordens expressas para que fossem prestados cuidados médicos aos que necessitavam e administrados banhos de imersão e massagens tonificadoras a todos, sem exceção. 


Depois de bem banhados e melhor massajados, os prisioneiros foram postos numa carrinha e transportados até às margens do Mondego. Ao José ninguém lhe deu palavra. Apenas o Graça condescendeu nos bons dias, mas em segredo.


O sol brilhava. Do outro lado esperava-os o socialismo real e a autêntica liberdade. 

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