173 – Tudo aconteceu como nos filmes. Os comunistas do Norte atravessaram a ponte sobre o Mondego na direção Sul e os reacionários do Sul fizeram-no na direção do Norte. Encontraram-se a meio. Eles eram doze, como todos sabemos. Já os prisioneiros do Sul eram perto de cinquenta. Ou seja, a valia do grupo do José era muito maior. Cerca de quatro para um. O que era motivo de orgulho. Postas as leis do mercado a funcionar, dava para perceber que o preço de um comunista era muito superior ao de um reacionário. E isso fazia todo o sentido.
Chegado ao lado de lá, o sítio da liberdade e do socialismo, o José olhou para a terra que abandonava, que era a sua, mas que lhe tinha sido madrasta, e reparou que a meia centena, feliz e contente, de reacionários foi convidada a entrar num autocarro. Eles, entre sorrisos e abraços, fizeram-no na mais perfeita ordem, como se estivessem a entrar na terra da liberdade. Já os camaradas tinham uma carrinha pequena à sua espera, em tudo parecida com uma viatura celular. E foi para ela que foram obrigados a entrar. Quando perguntaram por que em vez de uma viatura civil lhes tinham enviado uma carrinha para transportar presos, os camaradas limitaram-se a dizer que eram ordens superiores. Os camaradas do Norte inquiriram então de quanto de cima elas provinham. Eles responderam que diretamente do Comité Central. Todos sentiram um aperto no coração. O Comité Central nunca se engana. Tiveram então um mesmo pensamento: alguma coisa estava mal. O futuro era uma grande incógnita. Como sempre, adiantamos nós que já andamos nisto há muito tempo.
Sem mais palavras, foram convidados a entrar na carrinha e abalaram dali não se sabe bem para onde. Mas para Sul era de certeza. Disso estavam eles certos.
Andaram muito. Mas mesmo muito. Aperceberam-se que as curvas iam diminuindo e que a velocidade ia aumentando. E o calor também. Ninguém deu palavra. Iam em meditação. Por fim pararam.
Quando lhes abriram as portas para saírem, foram inundados de luz. Estavam dentro de um estabelecimento prisional imaculado na sua brancura. Tudo ali resplandecia. Perguntaram a um homem com cara de diretor de alguma coisa onde se encontravam. Ele respondeu-lhes que não tinha autorização para lhes explicar nada a não ser que estavam presos, por ordem do Comité Central, para averiguações. O camarada funcionário ainda tentou puxar dos seus galões, informando o camarada diretor de que ele era funcionário do Partido, que tinha liderado um grupo de guerrilha no Norte, que tinha sido feito prisioneiro e que tinha, ele e os seus camaradas, sido trocados por um grupo de cinquenta prisioneiros reacionários.
O camarada diretor nem para ele olhou. Limitou-se a assinar um papel que lhe puseram à sua frente e foi-se embora com alguma pressa e também com algum aprumo. Foram todos enfiados numa cela comum.
Tentaram então descansar e pôr as ideias em ordem. Mas não conseguiram. A situação era confusa de mais. Passados algumas horas deram-lhes de comer. Uma comida tão mal confecionada como a que lhes serviam lá no Norte reacionário. Eles comeram e calaram. Depois da entrega da loiça, voltaram para os seus catres e puseram-se novamente a ruminar as ideias para tentar perceber o que lhes estava a acontecer. O culpado daquela situação só podia ser um: o José. Ele e mais a sua rebeldia e a sua religião que lhe embotavam a razão e o conhecimento. Isso foi o que pensou o funcionário, que era o mais esclarecido do grupo. Mas os outros também chegaram à mesma conclusão, sem grande dificuldade. Apenas o Graça tentou ir por outro caminho. Mas não foi capaz. A existir um culpado, tinha de ser o José. E como tinham chegado a essa conclusão? Pois porque o Partido tudo sabe.
Incomodado com a situação, o camarada funcionário resolveu convocar uma reunião geral. Mas deixou logo claro que o José estava excluído. Ele ainda tentou averiguar o porquê, mas desistiu. Não valia a pena. Ou melhor, estava à vista de todos, só um cego ou um reacionário, que são, em termos políticos, a mesma coisa, é que não via.
A reunião fez-se num canto e o José foi obrigado a ficar no outro. O Graça referiu, e bem, que dessa maneira o José ouvia tudo. O camarada funcionário respondeu-lhe que uma coisa é ouvir, outra, bem diferente, é ter o direito a falar. E esse, o José tinha-o perdido há muito tempo.
Todos sem exceção zurziram no José o mais que puderam. Acusaram-no de tudo. Até de terríveis desvios ideológicos e mesmo traição. Muitos referiram que ele, o traidor, o rachado, devia ter sido deixado lá no Norte, preso, a sofrer as consequências. O Graça lembrou-lhes que o José estava preso e todos eles também. E isso é que era estranho. Prendê-lo a ele, ainda vá que vá, agora trocar prisioneiros comunistas e mantê-los na mesma situação é que não fazia sentido nenhum. Mais valia tê-los deixado estar onde estavam. Lá no Norte ainda eram autorizados a ver a família. Ali não podiam, pois não estava a ver a forma das autoridades socialistas autorizarem a deslocação de familiares reacionários a terras da liberdade. Todos concordaram que a situação era, no mínimo, bizarra. A existir um traidor, era o José. Sendo assim, era ele quem devia estar preso por causa dos erros cometidos. Não todos, pois era injusto. A eles deviam libertá-los e até prestarem-lhes uma homenagem pública. Eles tinham pegado em armas para libertarem a sua terra da exploração, da ditadura e da reação.
Por ter a consciência limpa, ou pensar que a tinha, pois, objetivamente, é a mesmo coisa, lá no seu canto, o José caiu num sono profundo. Começou a ressonar alto e bom som. Tal atitude foi também objeto de censura por parte dos seus camaradas. Que era um provocador. Que era um reacionário. Eles preocupados com a situação política. E o José como se nada fosse com ele. A dormir como um bebé. Sem se ralar com nada. Era-lhe bem feito. Estar preso era uma situação justa. Ele bem a merecia. O Partido sabe sempre bem aquilo que faz. O Graça pediu então esclarecimentos ao camarada. Se compreendia a situação era bom que a explicasse a todos.
O camarada funcionário tentou. Que como o Partido tudo sabe, também sabia quem era o traidor. Por isso a situação da prisão de todo o grupo só podia ser um engano, ou excesso de zelo. Há muitos camaradas que são mais papistas que o Papa, ou melhor, que são mais comunistas que o próprio camarada Alberto Punhal. Mas a verdade, que é apenas comunista, como todos sabemos, é como o azeite, vem sempre ao de cima. E que nestas coisas da revolução, existe muita confusão, mas acabam sempre por triunfar os bons e o seu fundamento. Na revolução comunista nunca pode triunfar o mal. Isso é, pura e simplesmente, impossível.
Depois de muito discutirem, passaram às resoluções. Estava na hora de decidirem o seu futuro. E o do José. A situação até podia ser difícil, e era-o de facto, mas um comunista nunca desiste, nem de lutar nem de procurar a verdade, pois só ela é revolucionaria, e vem sempre ao de cima como o azeite. Ele, como o camarada mais responsável do grupo, e seu líder natural, propôs que o José fosse definitivamente expulso do Partido e denunciado mais uma vez aos organismos superiores por desvio ideológico e abandono dos princípios irrefutáveis do marxismo-leninismo. Da reunião foi elaborada uma ata onde constaram todas as decisões. Até a abstenção do Graça no momento da expulsão do José, em nome da amizade. Isto apesar da advertência do camarada funcionário que lhe lembrou que a amizade não se pode sobrepor à razão, nem aos supremos interesses do Partido e da Revolução.
Quando o camarada funcionário deu a reunião por terminada, ainda o José dormia e ressonava como um justo.