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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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21
Ago13

O Poema Infinito (160): Ámen

João Madureira

 

Estou em trânsito, só não sei para onde. As rotas são tão delicadas como vozes de nuvens. Ando atrás dos símbolos. O lindo som dos teus gemidos percute nos meus ouvidos. Sou agora o teu ourives. Os linguistas adormecem. Penetro nas palavras com a minha caneta. Tu moves os lábios. A honra e as dúvidas salvam-nos. A orquestra arde dentro da música que toca. O tempo abre-se. A ira implode. Agora sou navio. Depois a sua sombra. Finalmente sou um ponto no céu. A minha silhueta esbraceja e chora. Sonho com uma infância repentina. Espalho pelo verão os caminhos dos frutos. Aves azuis choram e de seguida ardem dentro das suas penas. É esse o seu alcance inócuo. As luzes incendeiam os nossos olhos. Adormecemos enquanto os nossos corpos flutuam entre a paixão e o medo. São rudes os caminhos da desilusão. Por eles passam as almas turbulentas. Mulheres insólitas ardem dentro do seu esquecimento. Os seus corpos são abismos. Usamos o desejo como o conhecimento. Dormimos dentro dele. O desejo estremece. Conversamos dentro do seu fulgor exato. As mãos choram nos espaços. Multidões exaltadas caminham caras ao passado. A filosofia abusa novamente do tempo. E do modo. As mães fingem distância e cobrem-se de sombras bravias. As águas cavalgam o seu leito de rio. As ninfas são possuídas por minotauros. As vestais são desfrutadas por centauros. Anjos sujos elevam-se no ar amparando-se na sua distância assexuada e perguntam: Onde estão as armas e os falos? Onde está o exemplo vivo de Deus? Tu perguntas-me pela manhã. E pelo sol aborrecido e pela calma que cresce e pela maré salgada dos silêncios. Eu respondo: Os poemas aquecem a memória dos mortos. A esperança permanece mesmo na desordem dos dias. A cidade permanece sossegada. O seu silêncio é um campo de batalha. Persinto as árvores pelo desenho do seu método cartesiano. Por isso o vento assobia quando alguém corta os seus troncos concêntricos. Por isso os poetas naufragam quando o mar se inverte. Por isso a terra sabe a História e nas planícies nascem moinhos de vento. Por isso Cervantes criou Dom Quixote e Sancho Pança. Daí os risos deformarem os espelhos. Daí a Lua nascer equivocada. Daí a gente se dispor a bailar e os poemas serem civis. Daí eu inventar viagens sem começo nem fim onde astronautas voam em naves campesinas que irrompem do silêncio e onde homens embriagados sobem marés de vinho e beijam virgens que arrastam arados que compõem regueiros de prazer que são ao mesmo tempo nascente e foz. Todos somos amáveis criaturas que se alimentam de arrependimentos. Todos acabamos por encontrar justificação para a morte. Todos bebemos frases malignas com sabor a lume e a pecado. Todos nos cansamos das prédicas dos profetas e da euforia dos templos e da melancolia dos pássaros e do céu infinito e das éclogas e do fascínio das luzes e das noites impressas nas páginas dos livros e do barulho da ternura e da vergonha dos sexos expostos e de todos os vocábulos descalços e dos corpos em dilúvio e das dúvidas e das certezas e das emoções controladas e da lírica devoluta e da fronteira da compreensão e dos limites e do desperdício das vozes e da vergonha e do limite dos corpos e dos sentimentos e das tormentas e dos barcos e dos versos submissos e da paciência e da agonia e da ciência e das horas penduradas nos relógios e dos amantes de sinfonias e das cotovias repletas de certezas e da grande delicadeza dos hipócritas. Bem-aventurados sejam, pois, os incrédulos e todos aqueles que escrevem versos. Ámen. 

19
Ago13

Pérolas e diamantes (51): Está na hora desta gente ir embora

João Madureira


Antes mesmo de me pôr a bater com a ponta dos dedos no teclado do computador para alinhavar esta crónica, resolvi, motivado pelo calor que por aqui se faz sentir, arranjar um refresco de limão com água das Pedras. Depois do primeiro golo, veio-me à memória a conversa que tive de manhã com um amigo meu que já não via há algum tempo.

 

Ele disse-me que eu continuava algo excêntrico e talvez mesmo imprevisível. Respondi-lhe que isso se deve ao facto de os meus atos e as minhas ideias serem incompatíveis com os “deles”, se é que os têm, pois, assegurei-lhe, as minhas ideias e os meus atos são perfeitamente compatíveis com os “meus”. E em todos os sentidos. E mais alguns.

 

Sorri-me com a cara de incrédulo do meu amigo. Mesmo assim, ou até por isso, tentei explicar-lhe o trocadilho. Apesar de os meus princípios poderem mudar de vez em quando, mesmo assim possuo tantos que não sou capaz de os usar com proveito. No entanto avisei-o de que eles formam um todo. Por isso a minha vida nunca é menos lógica por causa desta aparente heterodoxia. Resumindo: em regra faço as coisas que me proponho fazer.

 

Tornei a sorrir. O meu amigo, também tentou, mas não conseguiu. Penso que não estava, ou não queria, seguir a ideia.

 

Então perguntei em jeito de filósofo, tentando responder-lhe: “Já alguma vez te desiludiste com histórias que pareciam prometer uma revelação e depois te enganaram desviando-te desse caminho?”

 

Penso que não chegou onde eu queria porque me respondeu desta forma: “Receio que tudo seja significativo e que nada, afinal, seja importante.”

 

Pus-me a pensar de onde teria ele sacado tal frase, mas não consegui chegar lá. Então, por causa das coisas, atirei-lhe com uma frase inteirinha respigada do livro “Ópera Flutuante”, de John Barth: “Acho que entender completamente uma coisa, qualquer que seja a sua relevância, exige que se entendam todas as outras coisas do mundo.”

 

O meu amigo disse: “Afinal, é tudo uma questão de bom gosto. Gostar ou não gostar, eis a questão?” Eu rematei: “Lembra-te que o bom gosto é uma invenção humana.”

 

Ele então levantou-se e, pretextando pressa e afazeres vários, abalou como se de facto assim fosse. Lembrei-me então de Shakespeare: “Ser ou não ser, eis a questão.”

 

Ia eu já no terceiro golo, quando tocou o telefone e um meu outro amigo, muito bem informado, me confidenciou que o “candidato”… o meu ou o teu? perguntei eu em jeito de chalaça… andava inquieto, descarregando na sua secretária o nervoso miudinho que a campanha dos Independentes lhe causa. Daí o agendamento de visitas, fazendo-se convidado de todas as associações do concelho, prometendo-lhes aquilo que sabe, desde há muito tempo, que lhes não pode oferecer, pois em doze anos de regência laranja nada lhes deu de substantivo. Mas isso pouco o preocupa, pois sabe também que às suas promessas leva-as o vento.

 

Depois de mais um sorvo no refresco, aparecem-me no ecrã do computador as palavras do já “ex”-presidente João Batista, e putativo candidato a presidente da Assembleia Municipal de Chaves: “Vivemos tempos difíceis. Todos temos consciência da realidade. Torna-se necessário, por isso, fazer valer a verdade, a responsabilidade para assumir a participação cívica…” blá, blá, blá… daqueles que “personificam a confiança e ensaiam a esperança nas soluções mais adequadas para os múltiplos problemas.” Mais blá, blá, blé e… “Essa liderança, estou convicto, será efetiva com o Arq. António Cabeleira na presidência da Câmara Municipal. O conhecimento que eu e os flavienses partilhamos da sua personalidade dá-nos essa garantia.”

 

Ora vamos lá mais uma vez à verdade, à responsabilidade, à confiança e às soluções de tal dupla de autarcas.

 

Depois de assistirmos ao seu silêncio cúmplice, ou ao arranjo de desculpas esfarrapadas, sobre a situação indecorosa da desqualificação do Tribunal de Chaves; a seguir à divulgação oficial da dívida da Câmara de Chaves, que já se situa na estratosférica cifra dos 41 milhões de euros; a seguir ao Milagre das Laranjas, que pretende transformar paralelos em votos no PSD e que custa aos flavienses a módica quantia de 187.973 €; depois da escandalosa entrega do edifício restaurado do antigo Magistério Primário à rapaziada da JSD local, cujas obras ficaram num milhão de euros; a seguir ao escandaloso aluguer à empresa Jogos e Disfarces, por 150 €, das antigas instalações do Cineteatro de Chaves; a seguir à indemnização à GIPP relativa ao “Projeto de Execução das Piscinas Municipais Cobertas de Chaves”, no valor de 62.181,25 € (+ IVA); depois da indemnização relativa à “Reabilitação do Edifício Adjacente à Igreja da Madalena” para instalação da Pousada da Juventude; após a vereação camarária aprovar a “Rescisão do Contrato de Financiamento com a Empresa Santana Construções, SA.”, no valor de 20.257,28 € (+ IVA); depois da revogação de mais um contrato com a GIPP, relativo ao “Projeto de Execução de Reabilitação e Construção dos Pesqueiros da Margem Esquerda do Tâmega entre a Ponte Romana e a ETA”, no valor de 17.557,68 € (+IVA); a autarquia flaviense resolveu cometer novo atentado à racionalidade e desbaratar ainda mais dinheiro público.

 

Em ata de 16 de abril de 2013 ficámos a saber que a Câmara de Chaves, superiormente dirigida pela dupla atrás referida, resolveu indemnizar a “GALP, Urbanismo, Arquitetura e Engenharia, Lda.”, no processo relativo à elaboração do Plano de Pormenor da Zona Urbana Norte e Projetos e Execução do Pavilhão Multiusos, no valor de 104.000.00 € (+IVA).

 

Ou seja, a Câmara de Chaves resolveu mais uma vez retirar dos bolsos dos contribuintes cento e quatro mil euros, para pagar ainda mais outra indemnização por não conseguir levar a efeito uma obra prometida e já adjudicada. Esta é a sua “política de verdade” e a sua “racionalidade”, o seu “pragmatismo”.

 

Contas feitas, só nestas quatro indemnizações, e a troco de nada e de coisa nenhuma, os flavienses já pagaram, ou vão ter de pagar, a módica quantia de 201.995.18€. Mais IVA.

 

Para que Chaves tenha futuro, está na hora desta gente ir embora. 

16
Ago13

O Homem Sem Memória - 171

João Madureira

 

171 – Depois de sonhar com o rio da sua terra, com o sol iluminando as árvores da Clérga, com a chuva regando as terras da ribeira e com o lindo sorriso da sua avó materna, o José foi acordado aos solavancos por um dos seus novos amigos, aquele lhe era mais dedicado.


A cela estava uma autêntica bagunça, fruto do descuido de homens que foram desde sempre habituados a considerar o trabalho doméstico como tarefa exclusivamente feminina. Depois de abrir os olhos com alguma dificuldade, pois tinha abusado um pouco da pinga na noite anterior, o nosso herói foi informado de que um seu ex-camarada insistia em lhe falar. Ele adivinhou logo a identidade do interlocutor e o motivo da conversa. Só podia ser o Graça.


“Deixo-o entrar ou dou-lhe uma boa sova cristã?”, perguntou o apelidado de Jesuíta. “Deixa-o entrar. Eu encarrego-me de lhe bater”, respondeu o José.


Mal entrou na cela, o Graça, mais pálido e deprimido do que era costume, agradeceu-lhe a deferência e perguntou-lhe se estava bem de saúde. Ele disse que sim. Que estava sereno e em paz com a sua alma. “Agora tens alma? Nasceu-te tarde”, aferroou-o o Graça. “Tenho-a desde que nasci. Ou mesmo um pouco antes. Nunca te esqueças que falei dentro da barriga da minha mãe.” “És um ungido. Voltaste ao cristianismo?” “Sim e não.” “Contigo nada é certo. Por que voltaste atrás?” “Porque me apeteceu.” “Acreditas de novo em Deus e na vida eterna?” “Não sei. E tu continuas a acreditar numa sociedade sem classes, no fim da exploração do homem pelo homem e no triunfo do comunismo?” “Claro que sim.” “Então andamos os dois enganados. Mas de certeza que não foi por isso que vieste falar comigo?” “Não. Vim para saber da tua resposta. Voltas à organização do Partido?” “Não.” “Porquê?” “Porque não me apetece.” “Olha que isto é uma coisa séria! Não brinques com o fogo?” “Eu já não acredito na revolução. Basicamente, já não acredito em nada.” “Não me leves a mal, mas acho que as tuas novas companhias são uma má influência.” “A minha mãe dizia-me o mesmo de ti e dos teus camaradas.” “E tu achas que somos todos iguais?” “Essa pergunta vinda de um comunista tem a sua piada. Afinal George Orwell tem razão: todos os homens são iguais só que uns são mais iguais do que outros. E vós, os comunistas, sois os mais iguais de todos.” “Não brinques com as palavras…” “Eu não estou a brincar. Estou a falar muito a sério.” “Mesmo que não seja pelos ideais, volta ao Partido.” “Se não acredito porque hei de voltar?” “Pois, pela nossa amizade.” “Esse foi o meu erro. Confundir a amizade com a política. Eu posso deixar de ser comunista, mas nunca deixarei de ser teu amigo.” “A mim não me é permitido tal atitude.” “Só te autorizam a ser amigo de comunistas?” “É mais ou menos isso. Se ainda fosses socialista ou outra coisa pelo estilo, ou até mesmo reacionário bem-intencionado, tudo bem. Mas é determinantemente proibido a um comunista organizado dar-se com um rachado.” “Não sabia que existiam reacionários bem-intencionados.” “É uma maneira de falar. Podes ser socialista ou mesmo reacionário, mas rachado é que não.” “Mas eu não sou rachado.” “Ai não que não és!” “Eu não traí ninguém. Limitei-me a sair da organização.” “A designação de rachado é o Partido que a atribui. Tu nisso nem és tido nem achado. E rachado uma vez, rachado para sempre. Esse, para os comunistas, é um pecado mortal. Literalmente. Numa sociedade socialista eras imediatamente fuzilado por alta traição. Comunista uma vez…” “Comunista para sempre.” “Nada na vida pode ser encarado como definitivo, a não ser a morte.” “O comunismo pode.” “Porque é a morte…” “Da sociedade capitalista…” “Não. Porque é a morte espiritual do ser humano e a morte da liberdade individual.” “Isso é uma blasfémia. Como podes afirmar uma coisa dessas?” “Pois porque o sei.” “O comunismo, em nome da liberdade suprema, institui a repressão absoluta.” “És um anticomunista primário…” “O que tu queres dizer é que sou um pecador.” “De certa forma, sim.” “Afinal, o cristão és tu.” “Eu sou apenas um simples militante revolucionário.” “Tu és apenas um pau mandado. Mas eu perdoo-te.” “E quem és tu para me perdoares?” “Sou teu amigo.” “Se o és, tens de voltar ao seio do Partido…” “Como se ele fosse uma mãe. Mãe só há uma.” “Voltas ou não voltas?” “Não.” “É definitivo?” “Sim.” “Sabes que me colocas numa situação delicada.” “Como assim?” “Quem foi que te levou para o Partido?” “Foste tu.” “Quem foi que te controlou estes anos todos?” “Foste tu. Mas o que é que isso tem a ver com o resto.” “Tudo.” “Eu sei que tudo tem a ver com tudo, mas não estava a colocar a conversa numa perspetiva filosófica.” “Falando a sério, o Partido diz que se não regressares à organização a culpa é minha e por isso terei de sofrer as consequências.” “Mas tu não tens culpa rigorosamente nenhuma. A culpa têm-na os outros.” “Mas eles pensam o contrário. O Partido é que define quem é culpado ou inocente. Definiu que se não regressares às nossas fileiras és um rachado e deliberou que eu sou o culpado de tudo.” “E o que é que te pode acontecer. Mandarem-te para a Sibéria?” “Essa tem piada, mas eu não me consigo rir. A situação é muito séria. Ou regressas, ou expulsam-me.” “Achas que é honesto eu ir outra vez para uma organização que não respeito e da qual desconfio profundamente?” “Não sei. Não quero pensar nisso. Estás na prisão tal como eu. Que diferença te faz entrares ou não entrares na organização.” “Eu estou preso fisicamente, mas a minha vontade e o meu pensamento continuam livres.” “E isso serve-te de quê?” “Nem te respondo.” “Regressas ou não?” “Não. Dessa maneira salvo-te da mentira. Tu merece-lo.” “Obrigado senhor abade. O cadafalso aguarda-me. Reza-me pela alma.”


Nesse momento entrou na cela o Jesuíta e perguntou se estava tudo bem ou era necessária a sua intervenção. “Bofetadas já lhe chegam as que leva dos guardas prisionais nos interrogatórios. Dá-lhe mas é uma sandes de presunto e um copo de tinto, antes de ir embora. E que Deus o acompanhe.” “Assim farei, irmão”, respondeu o Jesuíta. “Obrigado pelo matabicho”, disse o Graça. E rematou: “Este é o último desejo do condenado.” O José: “Quem morre pela revolução, morre feliz.” O Graça: “Vai-te foder.” “Igualmente.” O Jesuíta para o Graça: “Ou te calas, ou dou-te umas lambadas que te fodo.” “Não te atrevas a tocar-lhe…”, avisou o José. 

14
Ago13

O Poema Infinito (159): o sopro e a luz

João Madureira

 

Os pássaros começaram a morrer com uma réstia de luz presa nos seus olhos. A vida vale menos do que os dias que esperam por ti. És a minha mortalha branca. Sobre o relvado o teu corpo transborda de palidez, o teu corpo macio, o teu corpo tenso, o teu corpo inundado de finos rebentos de prazer. Todos os templos estão rodeados das almas dos amantes, num alegre bulício de lonjura. A terra fica congestionada de frescura e encoberta pelo amanhecer dos frutos. As horas desfazem-se como uma pintura de Dali. Gala é uma nuvem perversa. As horas são matutinas. E informes. E lentas. Durante a aurora, os pescadores batem com os remos no mar. A noite fica sem cor e o dia sem céu. Falo-te através dos caminhos com a voz pousada debaixo de uma sombra de desejo. Todas as casas velhas são agora fantasmas que se alimentam do choro das crianças. A tua revelação assedia-me o olhar. Os corpos são ilhas que imploram saudade. Eu acredito em ti. Eu acredito em pequenas árvores e em planícies que não se separam e em palavras novas que se semeiam como beijos e em ninhos que se constroem com a vontade dos pássaros e com a fidelidade dos afetos e com a água que rega os prados na montanha e no canto vagaroso dos pastores enamorados e no ar fresco da noite e nos olhos de quem conhece os trilhos e na fecundidade da incerteza e nos risos e nas lágrimas dos santos e na cor fecunda dos corpos nus e na princesa da chuva que semeia pérolas na terra do consentimento e nos profetas que caminham nas terras onde nasce a música e onde nascem as feiticeiras condenadas à eterna encarnação dos diamantes do mal. Muito brincam estas crianças velhas para nada se divertirem. Os bosques dos livros ficam nus. Já não há florestas na realidade. As meninas ficam maduras como cerejas e vestem-se com lágrimas. As suas mães ficam presas na tona da água dos ribeiros. O céu azul transforma-se numa responsabilidade colorida. Os seios das mulheres giram sobre si próprios pondo os homens tontos. As janelas fecham-se, as paisagens desaparecem, as bocas ficam impuras. No entanto, os nossos olhos voltam a nascer. Os corpos nus voltam a ter calor e rejeitam a tepidez das roupas. O teu corpo mexe-se como a sagração dos cânticos de Salomão. Saltamos sobre o tempo como as crianças quando o fazem com as cordas. Quando entras no meu quarto é como quando o sol dá luz à terra. O teu sorriso é um raio que rompe a noite. Eu tenho medo de voltar a adormecer. Quero arrancar-te ao esquecimento. Com o tempo, o nosso amor ganha precisão. Passo nas portas do frio e deixo lá a amargura. Agora vivo nas paisagens nuas do esquecimento, lá onde descansa o calor das almas, lá onde os dias repousam nos espelhos, lá onde o céu tem o ritmo das nuvens, lá onde o bem nunca se instala, lá onde as fantasias são sombrias, lá onde o presente morre antes de passar o testemunho ao futuro, lá onde a indiferença é um jogo e os mistérios são prodígios excluídos, lá onde ninguém compreende as certezas, a esperança e a vulgaridade, lá onde as pessoas despertam sem desejo e vontade. Banhamo-nos entre as árvores e no meio da tempestade, como quem se ri do tédio, como quem é sacrificado pelo desejo, como quem é cruxificado pelas certezas. O dia termina com as aves em revoada enfrentando a claridade que se esconde. Olhamos a distância dos seus voos e a noite que se abre. O mundo muda de cor e de sentido. Os deuses sopram-nos o último sonho do dia. 

12
Ago13

Pérolas e diamantes (50): A Verdade e o Infinito

João Madureira


Estávamos ainda a rir-nos por causa das sondagens encomendadas pelos partidos do arco da governação, quando alguém resolveu citar um ilustre desconhecido de quase todos nós, que veio à apresentação dos candidatos do PS à autarquia, chamado António Laranjeiro, que resolveu avisar os flavienses para terem cuidado com “os partidos e os candidatos que se escondem atrás de um coraçãozinho”.

 

Rimo-nos todos ainda mais um pouco. E ainda um poucochinho mais quando alguém lembrou que quem se escondeu atrás de um coraçãozinho, e de uma paixoneta pela Educação e pela Saúde, foi o partido do ilustre desconhecido que nos veio visitar e tratar como crianças que não sabem o que devem pensar nem onde devem votar. Pobres coitados de nós que sem estas cabeças pensantes ficávamos tão desorientados que só nos restava votar ou no candidato do PS ou no do PSD.

 

Mas não é disto que hoje vos pretendemos falar. É de contas. Especificamente no embuste que o município anda a propagandear no Boletim Municipal (mais um instrumento de propaganda do PSD pago pela Câmara de Chaves, ou seja, por todos os flavienses), e a que resolveu dar forma de artigo e intitular “Relatório de Gestão e Contas 2012 – Município fecha 2012 com resultado líquido positivo superior a 3,1 milhões de euros”.  

 

Logo no início vem transcrita toda a verdade com que foi cozinhado o escrito. Ou seja, “o relatório de Gestão e Contas de 2012 foi aprovado pelo executivo camarário”. Entre outras inverdades, propagandeia-se a ideia de que houve “um resultado líquido positivo de mais de 3 milhões de euros, obtido em consequência de uma gestão rigorosa sustentada em princípios e critérios de racionalidade económica”.

 

Bastaria apenas lembrar que a nossa autarquia se encontra sobre resgate financeiro, para desmentir pela raiz tão falaciosa justificação.

 

Hume salientou que a casualidade nunca é mais do que uma inferência; e qualquer inferência implica nalgum ponto o salto do que vemos para o que não conseguimos ver. Além disso, os processos que se prolongam por muito tempo tendem a tornar-se fins em si mesmos. Ou seja, a Câmara do PSD continua a apostar na propalação de uma mentira para que ela se transforme em verdade.

 

Mas toda a verdade vem num documento fidedigno: o Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses (2011-2012), editado pela Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, em julho de 2013 e elaborado por professores da Universidade do Minho e do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.

 

No Jornal de Negócios de 12 de julho de 2013, Bruno Simões, citando o Anuário, escreve que “as câmaras municipais empolaram os seus orçamentos em cerca de quatro mil milhões de euros. Apesar de terem previsto receber 11,7 mil milhões de euros, só conseguiram cobrar 7,7 mil milhões. Dessa forma anteciparam receitas que acabaram por não cobrar, o que permitiu realizar despesas que depois não puderam pagar”.

 

Ou seja: “O empolamento de receitas permite aos municípios acomodar despesas para as quais não têm verbas.”

 

Conclusão: “Esta situação é verdadeiramente comprometedora para a sustentabilidade financeira dos municípios.” Por isso é que tiveram de recorrer ao financiamento do Estado para adiar uma mais que provável falência se a dívida e défice não se inverterem.

 

Vamos então aos números do Anuário. Pois esses é que valem. Na página 113, na rubrica R32, intitulada, “Municípios que apresentam maior volume de compromissos por pagar, no final do ano económico”, a Câmara de Chaves ocupa a posição 32 com a bonita dívida de 20.649.653 euros.

 

Na página 164, na rubrica R44, relativa ao “Ranking dos municípios com maior endividamento líquido”, lá vem novamente a Câmara de Chaves colocada no 47º lugar, com uma dívida de 31.450.829 euros.

 

Na página 153, na rubrica R40, relativa aos “Municípios com maior passivo exigível (dívida), reportada a 2012, a autarquia flaviense, num universo de 308, ocupa a 43ª posição, na lista das cinquenta câmaras mais endividadas do país, com um passivo exigível (dívida) de 41.220.000 euros.

 

Estes é que são os números verdadeiros da “gestão rigorosa e sustentada em princípios e critérios de racionalidade económica”, da Câmara gerida pelo PSD de António Cabeleira e João Batista.

 

É história para dela se dizer que as contas da gestão económica e financeira da Câmara de Chaves e a verdade são duas linhas paralelas que apenas se encontram no infinito. Ou mesmo mais além.

 

É caso para apregoarmos com o povo: Está na hora, está na hora, desta Câmara se ir embora. 

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