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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Nov13

Poema Infinito (173): cântico

João Madureira


Vou a bordo de um navio tão azul que não tem limites. Os ventos sibilam e ouvem-se músicas que são ondas grandes e imperiosas. Ao seu lado um barco solitário flutua no mar denso como se estivesse dentro de um filme de Fellini. O barco está cheio de fé e por isso exibe as suas velas brancas entre o fulgor do dia e a espuma do mar. Adivinham-se no céu as inúmeras estrelas que brilharão durante a noite. Eu sou a reminiscência da terra. Eu sou o jovem marinheiro. Eu sou o velho marinheiro. Eu sou o pensamento dos viajantes. A terra firme. A curvatura dos arcos e a longa pulsação dos momentos. Eu sou o fluxo e o refluxo dos movimentos eternos. Eu sou o som do mistério. As vagas invisíveis e todas as sugestões de deslocação. Eu sou todas as sílabas líquidas que tu pronuncias. Eu sou o ritmo ilimitado da melancolia. O longínquo poema que criou o horizonte. Eu sou a hesitação de todos os que não hesitam. O destino dos que não têm destino. A reminiscência da fé e dos barcos que se isolam no mar. Eu sou o navio que não navega porque não quer. Eu sou a ânsia dos navegantes. A determinação de tudo aquilo que avança. As folhas dos livros imperiosos. O enigma que se explica com outro enigma. Eu celebro o passado. Eu celebro o presente. Eu celebro o futuro. Eu canto o que há de vir. Eu canto o orgulho e todas as velhas causas. Eu canto a doce ideia da paixão. A imortalidade do tempo. A guerra triste da verdade. Eu canto a dúvida e a sua eterna marcha silenciosa. Eu avanço em ebulição. Por isso rodeio toda a ideia de guerra, o jogo cruel das causas violentas, os eixos dos espíritos e as folhas enigmáticas. Por isso canto a ciência artística dos videntes e tudo o que gira à sua volta. Sei agora que é essa a causa das horas enigmáticas. As imagens começam a introduzir a luz nos círculos atmosféricos. Submerjo com toda a certeza de recomeçar a desagregação da matéria. Eu sou uma imagem líquida. Eu sou o esforço dos guerreiros. O martírio dos mártires. A heroicidade dos invisuais. A emoção dos pensamentos emergentes. Eu sou uma terra que já desapareceu há muito tempo. Por isso canto a densidade dos impulsos, o nascimento do êxtase, a transfiguração das montanhas, o tempo das estrelas, a perturbação do sol e a tremenda brevidade de um raio de luz. Milhares são as coisas silenciosas que desaguam nos rios e que vão para o mar. Agora ganha sentido a vida e o mundo e o universo. Por isso amplio o espaço e ergo o presente e amplio o passado e construo o futuro. O mar volta a ser uma sugestão assustada com a sua própria força e a sua liquidez permanente. Por isso descubro em ti o que procuro em mim. A simplicidade da consciência, o poder da mobilidade dos olhares, o paradoxo da idade, a grande aquisição do desejo, o cântico inexorável das viagens. Em ti recupero a minha liberdade. Entrego-me ao cântico da passagem das estações. Entrego-me à demora do crescimento das cidades espantadíssimas. O teu corpo é o meu norte magnético. A minha alma promulgada. A rebeldia audaciosa do prazer. Descubro um novo silêncio na natureza dos átomos. Os marinheiros ensinam os seus barcos a engolirem as tempestades. O mar volta à sua origem. Os filhos levam consigo a admiração dos pais. Nós somos de novo os navios que partem. O mar sem limites. As velas desfraldadas. O vigor do mar. O brilho da espuma. Hoje sou o poeta que descansa o seu desassossego. 

18
Nov13

Pérolas e diamantes (64): a tempestade e a queda

João Madureira


O nosso problema enquanto país é grave e não sabemos muito bem como sair dele. Do problema, claro está, não do país. Apesar dos apelos do nosso primeiro, alguns de nós têm mesmo de teimar em viver dentro de fronteiras, pois não nos resta outra solução.

 

Se os políticos deste país nos comeram a carne, agora que se saciem com os ossos.

 

Um país que possui como chefe de Governo Passos Coelho e como líder da oposição António José Seguro tem as suas esperanças num futuro melhor necessariamente comprometidas. Como muito bem diz o nosso povo: Se de um lado chove do outro troveja.

 

Ambos e dois são figuras de estilo, intelectualmente medíocres, que se limitam a repetir frases feitas e vazias de sentido. Essa é a sua pose de Estado. E do vazio ninguém conseguiu até hoje fazer nascer algo de substancial.

 

Passos Coelho admite que vamos precisar de um segundo resgate, e dá-se por feliz com o feito, mesmo que isso signifique, obviamente, o completo falhanço do seu Governo e de três anos de massacre social.

 

José Seguro, em alternativa, sugere, entre linhas, ou entre dentes, que vamos necessitar de um programa cautelar, mal termine o resgate, e com isso mostra-se, ao mesmo tempo, satisfeito e indignado.

 

Basta assistir à dialética parlamentar deste duo dinâmico – e a “dialética” que me perdoe por ser tão mal invocada –, para nos inteirarmos da sua quase total impreparação e incompetência para tratar seriamente dos problemas do país. As suas intervenções são absolutamente vazias e a sua capacidade e substância argumentativas raiam o ridículo, quando não o patético.

 

Dizem que uma desgraça nunca vem só e é bem verdade. Primeiro chegou a troika mais a estupidez do seu programa financeiro e económico. Depois chegaram as instituições europeias a justificarem o injustificável. Antes, durante e depois, caiu-nos em cima a vampiragem dos mercados e do grande capital. Logo após mergulhámos num mar de indicadores que nos tiraram, e tiram, toda e qualquer ténue esperança de futuro.

 

Quando é chegada a hora de pedirmos apoio a quem nos governa, caem-nos no regaço estes dois senhores que não possuem passado político ou profissional que os recomende sequer para presidentes de junta, quanto mais para primeiros-ministros.

 

O senhor da bandeira laranja, em apenas dois anos, sacou dos bolsos dos portugueses cerca de 25 mil milhões de euros para poupar 5 mil milhões no défice estrutural do Estado. Pelo caminho destruiu 400 mil postos de trabalho e mandou para a emigração cerca de 100 mil jovens qualificados.

 

E não cabe em si de contente porque a Europa, e a troika, não se cansam de lhe gabar a determinação de cumprir o programa à risca. Se daí resultar a destruição do país tanto faz. Perdidos por cem perdidos por mil.

 

Do lado do senhor de rosa ao peito tudo é tão simples que mete dó. Basta parar com a austeridade para o milagre da recuperação económica se verificar. A verdadeira oposição que a faça o Tribunal Constitucional. Pois, mais dia, menos dia, o poder cai-lhes no regaço e depois… logo se verá.

 

Está visto que seguindo por esta via crucis de austeridade e miséria política e social, o PSD será varrido do poder por muitos anos. E bem o merece.

 

Mas a verdade é que com um PS conduzido por um líder tão apático e desenxabido como António José Seguro não é alternativa para nada nem para ninguém.

 

Numa coisa todos temos que convir: ou o principal partido da oposição muda de líder e escolhe uma alternativa que possa ser levada a sério pelos portugueses, quer sejam socialistas ou não, ou então o nosso futuro resume-se a não ter futuro nenhum.

 

Portugal necessita, mais do que nunca, de ter verdadeiros estadistas e verdadeiros políticos à frente dos seus destinos, quer locais quer nacionais. Urge mandar para casa os caciques partidários e as enguias políticas.

 

E por hoje termino citando o escritor JM Coetzee, prémio Nobel da Literatura em 2003, numa entrevista ao Expresso: “O contrato que funda o Estado requer que os cidadãos entreguem o poder ao Estado; em troca, os cidadãos esperam que o Estado mantenha a paz e os trate justamente. Estas esperanças nem sempre são fundadas; só raramente são satisfeitas. Porque é que a forma de governo que inventámos nos desaponta tantas vezes? Não posso dar uma resposta satisfatória exceto para dizer que somos criaturas caídas.”

15
Nov13

O Homem Sem Memória - 183

João Madureira


183 – A partir do momento em que os dois amigos se recompuseram, o sósia do John Cleese nunca mais contou uma anedota ou sequer falou. Dava dó vê-lo. Parecia um morto vivo. Ensimesmando, olhava para o infinito como se esse fosse o seu destino. Olhava para as pessoas como se fossem de vidro transparente e examinava o amigo como se ele habitasse um planeta diferente. O gulag alentejano estava a matá-lo inexoravelmente, tirando -lhe o fundamento de viver, sugando-lhe a vitalidade, apagando-lhe a memória e destruindo-lhe a razão de ser. O José bem que tentava animá-lo, distraí-lo, conversar com ele sobre tudo e sobre nada. Mas o sósia do John Cleese apenas sorria como se fosse idiota. Davam muitos passeios nos poucos momentos livres, o José falando e ele escutando como se fosse um gravador.


O sósia do John Cleese gostava de se deitar no meio do chão e contemplar o céu azul. E sorria sempre, como se fosse tolo de todo. De noite, mal adormecia, começava a gemer como se estivesse a ser torturado. Gemia e balbuciava. Tremia como se estivesse no meio da neve. O José cobria-o com o seu cobertor e fazia-lhe festas como se fosse uma criança carente. O José começou de novo a escrever, mas só o fazia na presença do amigo. Como se ele fosse a sua inspiração. E de certa maneira era-o. O sósia do John Cleese parecia-se agora com um Woody Allen mudo, protagonizando um filme dramático em que ninguém falava, como se fosse um filme onde apenas se ouviam os sons da natureza, como se os seres humanos tivessem perdido o dom da fala. Essa foi até uma das ideias que o José desenvolveu num dos seus contos. O comunismo tinha conseguido construir uma sociedade onde os seres humanos tinham deixado de falar pelo singelo facto de não existirem diferenças de opinião. Como todos pensavam da mesma maneira, falar era pura e simplesmente inútil.


O José lia-lhe os seus contos e o sósia do John Cleese limitava-se a escutar e a sorrir. Nesses dias, o seu amigo mudo dormia sem gemer, como se estivesse em paz.


Nos dias em que eram obrigados a assistir às sessões de esclarecimento feitas pelos ideólogos do Partido, o sósia do John Cleese sofria tanto durante o sono como se estivesse a sofrer choques elétricos contínuos.


O seu estado de apatia era tal que já nem se queria vestir, ou lavar, ou sequer comer. Mas o José, sabendo que se o apanhassem despido o castigavam severamente, nunca o deixava sair da camarata sem roupa. Por vezes, alguns dos capatazes, vendo-o tão absorto e apático, sovavam-no para o espevitar. Mas ele nem se mexia. Ali ficava a apanhar porrada como se fosse de borracha. Quando se cansavam, deixavam-no estendido no chão como se fosse um cão acabado de atropelar.


Uma noite, depois de ser severamente espancado, foi levado para a camarata inanimado. Passou toda a noite de olhos abertos como se fosse uma estátua. De madrugada levantou-se, vestiu-se, passou cerca de dez minutos a olhar para o José, como se ele fosse seu filho, acariciou-lhe as mãos, fez-lhe uma festa na cara, beijou-o na testa e saiu. Quando se realizou a chamada da manhã, já o sósia do John Cleese ia longe, perdido no meio dos chaparros e do barro das planícies. Alertado, o camarada capataz decidiu realizar uma caça ao homem. Da UCP ninguém saía sem a sua autorização. Arrearam-se devidamente os cavalos, foram-se buscar os cães e empunharam-se as armas.


O camarada capataz liderou a busca ao homem. Do alto da sua cavalgadura olhava a campina em brasa através dos seus binóculos. Não se apressou nem um bocadinho. Sabia que a planície era inclemente e as fontes de água eram escassas. Além disso, o homem em fuga estava muito debilitado. Lia-se-lhe nos olhos que esta perseguição foi pensada para servir de exemplo aos outros prisioneiros.


Não foi preciso muito tempo para lhe darem com o rasto. Mas não se precipitaram na perseguição. Deixaram-no andar, andar, andar. E sofrer. O camarada capataz limitava-se a observá-lo de longe com os binóculos. Se via que se estavam a aproximar demasiado, ordenava que se parasse. Tinham que cansar a presa e deixá-la sofrer. Muitas vezes apontou a carabina com mira telescópica na direção do fugitivo e fez pontaria ao centro da sua cabeça. Mas no momento de premir o gatilho hesitava sempre. Considerava que era ainda cedo para abater a peça de caça. Ainda não tinha dito nada a nenhum dos vigilantes, mas a sua decisão já há muito que estava tomada. O fugitivo iria regressar à UCP morto para ser exibido como um troféu de caça, ou nem isso. Os reacionários, porque ideologicamente mancos, à semelhança dos cavalos, também se abatem. Especialmente os que gostam de contar anedotas para ridicularizarem a revolução, as suas conquistas e os seus dirigentes. Uma coisa, identicamente, o fugitivo tinha decidido, não se deixar apanhar vivo. A morte era melhor do que o cativeiro. E também sabia que o camarada capataz lhe tinha um ódio de morte. Sabia que se lhe desse um pretexto qualquer o líder da UCP o aniquilava com todo o prazer. Também fora por isso que tinha fugido. Decidira morrer. Por isso deixara de falar, especialmente com o seu querido amigo José. Tinha de cortar os laços que os ligavam. O José ainda era muito novo para morrer. Ainda podia ser reabilitado e ter uma longa vida à sua frente. Ele não. Ele já não acreditava em nada. Nem no socialismo, nem no comunismo, nem na liberdade, nem na igualdade, nem na fraternidade, nem na bondade humana, nem em Deus, nem no Demónio. E muito menos nos homens. Sobretudo não acreditava nos homens.


Adivinhando que estava ser observado pela mira telescópica da arma do camarada capataz, resolveu terminar com a farsa. Parou de repente, mesmo em cima de um penhasco, virou-se na direção dos seus perseguidores, sorriu e contou a sua última anedota a plenos pulmões: “A professora pergunta aos alunos: “Quem é a vossa mãe e quem é o vosso pai?” Responde um aluno: “A minha mãe é a República Popular do Sul e o meu pai é Alberto Punhal.” “Muito bem”, diz a professora. “E o que queres ser quando fores grande?” “Órfão.”


Mal acabou de pronunciar a última palavra, o camarada capataz pegou na sua carabina e depois de fazer pontaria pronunciou as seguintes palavras: “Esse foi o teu último desejo. A ti, reacionário, eu te condeno à morte por fuzilamento.” E disparou um tiro certeiro no meio da testa do fugitivo. Logo de seguida os vigilantes libertaram os cães que foram no encalço da presa abatida e começaram-na a devorar.


Alguns dos camaradas vigilantes benzeram-se como por instinto. O camarada capataz virou-lhes as costas e comentou: “Nunca mais vos libertais dessas crendices. De uma coisa podeis ficar cientes a partir de hoje: “Quem brinca com o Partido pode acabar na barriga dos cães, ou nem isso. Que vos sirva de exemplo.”

13
Nov13

Poema Infinito (172): etc.

João Madureira


Alimento-me da tua beleza rápida. Escrevo no teu corpo a alucinação da memória. Trago-te paisagens preenchidas com alvéolos selvagens, onde a tua voz se agarra às constelações, onde as imagens são ferozes. Eu sou o teu nome quando me chamas e quando a lua penetra nos meus olhos. Delimito as tuas ancas com os meus dedos longos que se acendem como fósforos de metal. As minhas mãos assustam-se com a transparência dos gestos. A boca enreda os planetas de um só fôlego. Os dedos, agora abertos, tocam as estrelas. As pedras fecham-se ao toque da água. A luz surge em remoinhos. As casas transladam-se para outras paisagens rodando sobre si mesmas. Estamos no sítio onde se fabrica o mundo, onde tudo é potência, onde a escrita é uma simetria de verbos, onde a luz se empina com um cavalo alado. O dia respira dentro da noite como se fosse a sua máxima virtualidade. Os animais respiram o sono da lua enquanto lhes lançamos as mãos transpiradas. Tudo aquilo que se escreve acaba por nos queimar, os versos despenham-se como lençóis de água brilhante, o nosso próprio corpo fica crucificado nas estrelas. As mãos ficam magnetizadas de azul. A sua imagem permanece afogada dentro das fotografias. Os sexos adensam-se. Os corações ampliam-se. As nossas cabeças queimam. Os nossos corpos ficam expostos ao desejo. As vozes ascendem. Não conseguimos dormir. Respiramos apenas a raiz lúcida da rapidez. Os teus olhos alumiam a noite. As chamas retalham as paredes. Há momentos em que as mãos dançam com uma elegância violenta. O mundo lá fora é uma fábrica de alienação. A terra queima-nos os dedos e os dedos propagam-se como rumores e os rostos tornam-se rápidos e movimentam-se por dentro das paisagens. Atravessamos a noite ocultos no tempo. Os instantes explodem. O peso da beleza inclina as imagens. Os rostos abrem-se. A terra transforma-se num espelho sumptuoso. Os animais ficam fixos como se fossem ilhas rutilantes. Nenhum corpo é igual a outro corpo. E os nossos queimam no escuro. Sinto o teu nome como um grito. Acredito num Deus rápido que grita como um sismo e impregna tudo de brilho e que quando me olha de perto eu ardo. Tu és a eletricidade do meu universo, a minha desarrumação premente. Eu canto as palavras que são matéria, as paixões que são coroas de estrelas, as vozes que são orações, as imagens que são candelabros nítidos. No meio da sala abre-se uma cratera de desejo. A eternidade é um sonho em carne viva. Por isso é que a música é mortal. Por isso é que as curvas são melancólicas. O prazer é uma metáfora direta. Somos como anjos que se tocam para sobreviverem. Brilha-nos a língua. Brilha-nos o sexo. Toda a magnificência nasce do desejo da carne. Daí o pecado de Deus. Regressa de novo a desordem. No céu, as estrelas tornam-se vulgares. O pintor pinta na tela aves de fogo sobre os campos celestes. As montanhas transformam-se em caminhos de espíritos. Foi juntos que entrámos na água e é juntos que dela vamos sair. Vejo-te diante de mim como um fruto estupendo. E perco-me como os abismos se perdem. Esse é o amor. A perdição. A súplica do sangue. O sol onde se morre. O desejo que circula dentro da carne. Por isso nunca me esqueço da energia bruta da ambição. E da tua indomável leveza. E da tua inexplicável energia. E do teu poder de entrega. Os sexos confidenciam, etc.

11
Nov13

Pérolas e diamantes (63): os profetas do subdesenvolvimento

João Madureira


Leio os jornais e fico ainda um pouco mais deprimido. Por exemplo, o Expresso conta-nos que os casos de droga aumentaram 70% em dez anos. E que se acentua o regresso da heroína. Grandes recessões, grandes depressões, grandes ganzas.

 

Como se isso não fosse já suficiente, para nos deprimir ainda mais um pouco, o mesmo semanário refere que as regiões de Trás-os-Montes e Beiras correm o risco de ficarem desertas, caso não se altere a natalidade. Em 2100, podemos perder mais de 75% da população, quase meio milhão de pessoas.

 

Com tudo em baixo, incluindo o moral, tento descontrair. Por isso dou asas à minha costela de “voyeur” e atrevo-me a planear uma espreitadela ao casamento de Miguel Relvas. Tenho de confessar que não resisti à tentação de conseguir saber quem foram os ilustres convidados.

 

A noiva, Marta de Sousa, explicou o DN, chegou alindada dentro de um vestido rendado de gola subida. Sobre a vestimenta do noivo, o jornal nada adiantou. Mas é bem possível que se tenha apresentado na boda de fraque. A cerimónia civil foi rápida, ainda mais rápida do que a licenciatura do nubente, a que se seguiu um copo-de-água, cuja ementa não foi revelada à imprensa. O segredo é a alma do negócio.

 

A noiva, “madrinha” de uma instituição que acolhe crianças em risco, resolveu dar um ar da sua graça e pediu aos convidados que em vez de presentes de casamento, fizessem donativos à associação.

 

Os ilustres convivas presentes foram: Pedro Passos Coelho, Zeinal Bava, Santana Lopes, Luís Filipe Menezes, Dias Loureiro, Judite de Sousa e Jorge Coelho. Lá diz o povo: Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.

 

Emocionado, voltei de novo à leitura do Expresso, onde Miguel Sousa Tavares escreveu que este país não é para jovens. Mas eu vou mais longe: Este país nem sequer é para velhos.

 

Mota Soares, o ministro da lambreta, mais conhecido pelo Nanni Moretti de direita, a mando de Pedro Passos Coelho e de Paulo Portas, resolveu vir para as televisões e para os jornais dizer que o Governo, na sua bondosa gestão de expectativas, resolveu aumentar em 1% as pensões mínimas e sociais.

 

Ou seja, quem atualmente recebe 256,79 euros de pensão mínima vai passar a dispor, por mês, da exorbitante quantia de 259, 36 euros. O que resulta no brutal aumento de 2,57 euros. Já a pensão social subirá de 237,06 para 239,43 euros. Sofrerá o impressionante acréscimo de 2,37 euros. No que diz respeito à pensão rural, ela será acrescida em 1,98 euros, passando para a estratosférica quantia de 199,53 euros.

 

Estes aumentos foram justificados pelo Executivo por favorecerem a “equidade social” e também pelo facto de serem uma aposta na “salvaguarda e proteção dos mais desfavorecidos.”

 

Este Governo, que já tem lugar assegurado na história por representar o grau zero da política, não contente com o seu vergonhoso desempenho, resolveu ir ainda mais longe e transformar a miséria da política em política de miséria.

 

Ao que isto chegou, meu Deus. E eles que se afirmam tão católicos.

 

E então o que dizer das taxas de desemprego. Convém recordar aos mais distraídos que os salários, entre outros motivos, foram cortados para, diziam eles, garantir que o emprego fosse sustentável. Ora tão acertada política económica e financeira fez com que de uma taxa de desemprego de 11%, em 2010, passássemos para uma que já está nos 17,5% em 2013.

 

E também existia a narrativa do apoio ao emprego jovem.

 

Bem, o que este Governo fez aos nossos jovens é indigno, indecoroso, cobarde e ultrajante.

 

Mais de 40% dos jovens estão desempregados. Os que têm mais coragem, fogem para o estrangeiro. Esses mesmos jovens que pertencem à geração academicamente mais bem preparada de sempre.

 

O país que gastou uma fortuna a formá-los, assiste, impotente, ao seu êxodo. Jovens com um valor reconhecido internacionalmente, abandonam a sua terra para irem produzir riqueza para o estrangeiro, onde são recebidos de braços abertos. Pudera! Esses rapazes e raparigas acabam por ser uma bênção para os países de acolhimento, pois não tendo gasto sequer um tostão na sua formação, usufruem plenamente da sua mais-valia.

 

O mais provável é que os jovens escorraçados do seu país por um governo cego, surdo e mudo, nunca mais regressem a Portugal, pois o mais certo é que criem raízes lá fora e lá constituam família.

 

É mais do que certo que eles não vão enviar as suas poupanças para cá. O seu sonho nunca foi, e nunca será, fazer uma casinha na aldeia, ou na vila. Esta geração de emigrantes é radicalmente diferente das anteriores. E, com toda a certeza, estes jovens tenderão a rejeitar um país que não lhes deu nenhuma oportunidade de emprego e sucesso.

 

Entretanto por aqui atravessamos as nossas aldeias e só enxergamos velhos à porta das suas casas. Crianças nem vê-las. E os jovens fugiram. Não é necessário mais nada para nos apercebermos que esta região e este país caminham para a tragédia económica, social e humana.

 

Os culpados não são nem os funcionários públicos, nem os pensionistas, nem os velhos, nem os novos. Os culpados estão nos órgãos de poder, especialmente nas autarquias, no Governo e na Presidência da República, onde homens e mulheres, que se dizem autarcas ou estadistas, assistem à tragédia assobiando para o lado e dizendo que a culpa não é deles.

 

Depois de um esforço financeiro de décadas, e nunca antes realizado em Portugal, os governantes da chantagem e do desalento, estão inexoravelmente a condenar-nos ao subdesenvolvimento.

 

Estes tecnocratas desesperados, não têm perdão de Deus, se por acaso existir. E muito menos o terão dos homens a quem roubaram tudo, até a dignidade de poderem pensar o futuro. 

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