Poema Infinito (173): cântico
Vou a bordo de um navio tão azul que não tem limites. Os ventos sibilam e ouvem-se músicas que são ondas grandes e imperiosas. Ao seu lado um barco solitário flutua no mar denso como se estivesse dentro de um filme de Fellini. O barco está cheio de fé e por isso exibe as suas velas brancas entre o fulgor do dia e a espuma do mar. Adivinham-se no céu as inúmeras estrelas que brilharão durante a noite. Eu sou a reminiscência da terra. Eu sou o jovem marinheiro. Eu sou o velho marinheiro. Eu sou o pensamento dos viajantes. A terra firme. A curvatura dos arcos e a longa pulsação dos momentos. Eu sou o fluxo e o refluxo dos movimentos eternos. Eu sou o som do mistério. As vagas invisíveis e todas as sugestões de deslocação. Eu sou todas as sílabas líquidas que tu pronuncias. Eu sou o ritmo ilimitado da melancolia. O longínquo poema que criou o horizonte. Eu sou a hesitação de todos os que não hesitam. O destino dos que não têm destino. A reminiscência da fé e dos barcos que se isolam no mar. Eu sou o navio que não navega porque não quer. Eu sou a ânsia dos navegantes. A determinação de tudo aquilo que avança. As folhas dos livros imperiosos. O enigma que se explica com outro enigma. Eu celebro o passado. Eu celebro o presente. Eu celebro o futuro. Eu canto o que há de vir. Eu canto o orgulho e todas as velhas causas. Eu canto a doce ideia da paixão. A imortalidade do tempo. A guerra triste da verdade. Eu canto a dúvida e a sua eterna marcha silenciosa. Eu avanço em ebulição. Por isso rodeio toda a ideia de guerra, o jogo cruel das causas violentas, os eixos dos espíritos e as folhas enigmáticas. Por isso canto a ciência artística dos videntes e tudo o que gira à sua volta. Sei agora que é essa a causa das horas enigmáticas. As imagens começam a introduzir a luz nos círculos atmosféricos. Submerjo com toda a certeza de recomeçar a desagregação da matéria. Eu sou uma imagem líquida. Eu sou o esforço dos guerreiros. O martírio dos mártires. A heroicidade dos invisuais. A emoção dos pensamentos emergentes. Eu sou uma terra que já desapareceu há muito tempo. Por isso canto a densidade dos impulsos, o nascimento do êxtase, a transfiguração das montanhas, o tempo das estrelas, a perturbação do sol e a tremenda brevidade de um raio de luz. Milhares são as coisas silenciosas que desaguam nos rios e que vão para o mar. Agora ganha sentido a vida e o mundo e o universo. Por isso amplio o espaço e ergo o presente e amplio o passado e construo o futuro. O mar volta a ser uma sugestão assustada com a sua própria força e a sua liquidez permanente. Por isso descubro em ti o que procuro em mim. A simplicidade da consciência, o poder da mobilidade dos olhares, o paradoxo da idade, a grande aquisição do desejo, o cântico inexorável das viagens. Em ti recupero a minha liberdade. Entrego-me ao cântico da passagem das estações. Entrego-me à demora do crescimento das cidades espantadíssimas. O teu corpo é o meu norte magnético. A minha alma promulgada. A rebeldia audaciosa do prazer. Descubro um novo silêncio na natureza dos átomos. Os marinheiros ensinam os seus barcos a engolirem as tempestades. O mar volta à sua origem. Os filhos levam consigo a admiração dos pais. Nós somos de novo os navios que partem. O mar sem limites. As velas desfraldadas. O vigor do mar. O brilho da espuma. Hoje sou o poeta que descansa o seu desassossego.