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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Dez13

O Homem Sem Memória - 188

João Madureira

 

188 – Os tempos que decorreram foram de alívio e medo. Alívio porque o torcionário tinha desaparecido sem deixar rasto e medo porque ninguém sabia o que se passaria a seguir. Tanto o poder como a populaça se estudavam mutuamente. A incerteza cria a desconfiança e o caos.

 

As chefias provisórias foram procuradas na prata da casa. Mas tudo o que é provisório é fraco. E os prisioneiros começaram a pugnar por mais direitos, argumentando que estavam inscritos na Constituição. Responderam-lhes que a Constituição Socialista, que tanto custou a escrever, é para gente de bem, para o povo, não para os traidores. Os traidores são tratados como isso mesmo, como gente que não conhece a razão. A razão do Estado, a razão das ideias, a razão do Partido.

 

Gerou-se muita polémica, a que o José não passou incólume. Mas ele, pelo menos publicamente, não manifestou qualquer opinião. A princípio, os seus camaradas contrarrevolucionários estranharam o procedimento. Até porque sabiam que o José era muito bom na liderança dos processos políticos de massas e sabia falar e argumentar como poucos. Mas todos igualmente sabiam, e o filho da Dona Rosa mais do que ninguém, que pela boca morre o peixe. E ele, pelo menos desta vez, não ia morder o anzol.

 

Sabia que esta direção do campo era provisória e que tinha recebido ordens expressas para amaciar os procedimentos para ver se descobriam os responsáveis pelo desaparecimento do camarada capataz. Se o exemplo vingasse, o poder estava em perigo. Nenhum camarada pode desaparecer assim do pé para a mão e nunca mais ser encontrado. Isso era o caminho para a anarquia. E se os comunistas detestam visceralmente alguma coisa é a anarquia, que é o contrário da organização, da ordem e, por conseguinte, do socialismo e do seu estádio superior, o comunismo.

 

Claro está que aquela gestão de águas mansas num campo de concentração tinha de ser como a chuva de verão. E passadas apenas algumas semanas o sistema de administração endureceu bastante. O novo capataz, tendo um aspeto físico muito diferente do anterior, era nos procedimentos em tudo idêntico ao seu volatilizado camarada. Quando o puseram à prova com a sugestão da trasladação das ossadas do John Cleese para uma campa do cemitério para descansar em paz, limitou-se a afirmar que tudo devia permanecer igual ao que estava, pois essa era a forma de perpetuar a memória do seu antecessor que tão boas provas tinha dado de dedicação à causa revolucionária educando os reacionários nos sãos princípios do marxismo-leninismo. “Os bons exemplos são para ser seguidos”, disse alto e bom som logo na primeira reunião com os prisioneiros.

 

Escusado será dizer que o José prometeu vingança, pois a ideia de alguém ser capaz de deixar as ossadas do seu estimado amigo expostas aos olhares dos prisioneiros como uma forma de aviso macabro, era-lhe intolerável. Por isso decidiu reunir com o seu núcleo mais próximo para tomarem uma decisão.

 

A primeira proposta foi a de que se devia proceder com este capataz da mesma forma que com o anterior, pois eram duas almas gémeas na insensibilidade e na repressão. Todas as seguintes intervenções foram do mesmo teor, que se devia eliminar o mal pela raiz e fazê-lo desaparecer da mesma forma. Mas o José tinha outra opinião. Não se deviam adotar dois procedimentos idênticos pois seriam logo objeto de suspeita e investigação. Além disso os pobres dos javalis não mereciam serem envenenados com carne de tão fraca procedência. As doses de veneno podiam ser-lhes fatais.

 

Quando questionado, à boa maneira leninista, sobre o que fazer, respondeu que deviam dar-lhe um tiro entre os olhos, precisamente no mesmo sítio onde o torcionário anterior tinha alvejado o companheiro John Cleese. Eles olharam para o José como se de repente tivesse enlouquecido. Pois esse era um tipo de procedimento que de certeza os levaria ao fuzilamento. O José concordou que tudo indicava que sim, mas apenas se depois do disparo e da morte do capataz ficassem ali à espera de que os viessem prender, torturar e fuzilar.

 

O plano do José baseava-se na morte do torcionário, seguida de fuga e evasão, mas uma evasão em grupo, devidamente organizada, com o objetivo de constituírem uma brigada revolucionária, de sentido oposto, que se dedicasse a combater o poder ilegítimo instituído na República Popular do Sul. “A morrer devemos morrer de pé como os sobreiros”, disse com a voz embargada. “E não aguardar fenecer sem fazer nada para inverter este estado de coisas.” No que foi apoiado pelos seus camaradas contrarrevolucionários.

 

O primeiro procedimento foi o de recolherem as armas e as munições que o José tinha vindo a acomodar e a esconder em lugar seguro. Afinal, a sua dedicação ao campo e aos roteiros de caça tinham dado os seus frutos.

 

O dia escolhido para a ação foi o do aniversário da UCP. Decidiram que matariam o capataz na cerimónia oficial. E foi isso que fizeram. Deram-lhe um tiro mesmo no meio da testa quando ele e os seus camaradas convidados mais destacados da região degustavam a carne de alguns dos javalis responsáveis pelo desaparecimento do anterior diretor do campo.

 

Depois do pânico instalado, os prisioneiros sublevados puseram-se em fuga. Na troca de tiros que se sucedeu, alguns dos companheiros do José foram abatidos. Mas foram precisamente esses homens que possibilitaram que a fuga tivesse êxito.

 

Mais uma vez, o José, que era avesso às armas e aos atos violentos, se viu metido numa guerra de guerrilhas. 

18
Dez13

Poema Infinito (177): a purificação do declínio

João Madureira

 

Os homens do futuro hão de saber onde se esconde o tempo que sobra. Com enormes asas o falcão voa na direção exata do teu olhar. E os cavalos cavalgam enquanto as mães apertam os seus filhos contra o coração. Ventos solitários lamentam-se e empurram as chamas para longe. O orvalho cintila no crepúsculo cinzento. Cumpre-se a vontade do senhor. O tempo foge-nos. O bosque é agora um abismo onde as borboletas dançam antes de morrer. Colocas flores de macieira no cabelo. As maçãs ficarão prateadas da lua e ficarão douradas do sol. O teu rosto ilumina-se. Os olhos cintilam. O fogo espalha as suas sementes. Quero descobrir para onde vais. Nos seus leitos as crianças dormem. Convidas-me à melancolia. A terra fica longínqua. Os homens vivem longe da inquietação. Elegem a beleza como um disfarce. E destroem os sonhos e deixam crescer as barbas e crucificam as sombras e despertam antes de morrer. As mulheres perdem os beijos e expulsam os deuses dos seus altares. Os homens celebram o sonho dos reis e vendem os campos e desfazem-se das casas e vão à procura da beleza, da alegria e das lágrimas. Tudo está sempre a terminar. Por isso anseio pelas palavras alegres e pelos caminhos infinitos e pela piedosa ternura dos espíritos. Os duendes dançam debaixo da luz fria da lua. As aves adormecem sombrias e lentas. Os lagos são abismos de espanto. Os caminhos tornam-se violentos. A coragem iguala o desejo. O tempo aperta a beleza. O tempo corre. Os versos comovem o dia. Os velhos avisam que tudo se altera até cada um de nós desaparecer. E dizem que tudo o que é sublime se distancia como a água de um rio. Um a um todos desaparecemos. Agora sabe-se toda a verdade. Ficamos desorientados pelo sentido da razão. Todas as memórias são inoportunas. As velhas mitologias tornam-se audazes e caminham nuas. E movem-se de encontro ao seu destino. Os anos perdem alento e modificam o meu fascínio pelos cisnes selvagens. Já vai longe o tempo em que se pagava o tributo com lágrimas tímidas. A beleza está velha e cansada. Com o olhar meço a cidade. Não posso esquecer a sabedoria que me trouxeste, nem as fantásticas cavalgadas. Os anjos nulos adejam as suas longas asas e sopram o vento que faz vacilar as mulheres e acariciam as suas coxas com as mãos de gelo. Os anjos destroem os muros e emplumam-se de glória e ficam brancos e sustêm no peito a sua infinita tristeza assexuada. Os deuses protegem a decadência. E exortam-nos a aderir à ambição e ao orgulho. E riem alto como se fossem patriotas decadentes. As estátuas sagradas exsudam de imobilidade e derramam leite nas pedras. Apenas as mulheres solitárias possuem o caráter forte das espadas. O vento leva a imaginação para longe. O que restará quando tudo acabar? Essa é a velha perplexidade do futuro. Retiro das imagens todas as inúteis complexidades da amargura e da fúria e da agonia do êxtase. Qualquer mulher conhece o medo do amor. Por isso é que o pagam com dor e juntam as vozes quando passeiam nos jardins. Por isso enganam o medo com a glória amarga do lamento. Por isso convidam a melancolia para companheira e abrigam as tempestades no sombrio esplendor dos seus cabelos. Por isso apreciam os poemas dos amantes purificados pela tragédia. Tudo morre menos a tristeza. 

16
Dez13

Pérolas e diamantes (68): do fado à incompreensão – um gemido

João Madureira


Começo a ficar farto de tanta conversa. De tanta austeridade. De tantos acordos. De tantos discursos. De tanto fado. É que no fado geme quem canta. Enquanto nestes discursos geme quem os escuta.

 

A nossa vida é como um alcatruz. Num determinado momento subimos cheios de esperança e de alegria, mas depois descemos tristes, vazios e desiludidos até ao fundo do poço. Depois voltamos a subir. E novamente a descer. Mas tudo ganha sentido quando a água se espalha na terra e possibilita que nasçam plantas, flores e árvores. Sim, penso que a nossa vida é como os alcatruzes.

 

As apostas políticas, sobretudo nas eleições autárquicas, são como no jogo do totobola, é mais fácil acertar em todos os resultados do que não acertar nenhum. Por cá, pelos vistos, não existe ninguém que não diga, de quando em vez, alguma coisa certa. Ou será o contrário?

 

Estou confuso. No meio de tudo isto, admito, sem disfarce, que a minha capacidade de tolerância é uma regra com bastantes exceções.

 

Depois do desenlace da minha mais recente aventura política sinto-me como aquelas galinhas que quando lhe metemos a cabeça debaixo de uma asa e as embalamos durante alguns instantes, adormecem e assim podem ficar durante horas.

 

Mas, atenção, embora estejam a dormir, as galinhas mantêm-se sempre atentas e prontas a defender-se, no caso de surgirem situações que ameacem a sua integridade.

 

E sei isso por experiência própria. Ainda criança, uma vez, eu e uns meus colegas de escola, pegámos numa galinha lá de casa, adormecemo-la com a cabeça debaixo da asa e de seguida lançamo-la abaixo da varanda. Ela lá foi pelo ar como se estivesse a dormir. Mas antes de chegar ao chão, tirou a cabeça de onde estava metida, bateu as asas e pousou tranquila.

 

A verdade na política tem muito a ver com uma frase de São Tomás de Aquino, na Suma Teológica: “Se a Verdade não existisse, seria, pelo menos, verdade que a Verdade não existia.”

 

O desenlace autárquico, pelo menos ao nível do visível, faz-me lembrar o conselho da minha avó: “Quanto mais intranquilo te sentires, mais espaventoso deves ser nas tuas afirmações. Dessa forma ninguém se atreve a fazer-te perguntas.”

 

Um amigo meu, a quem muito respeito e admiro, disse-me há uns anos uma coisa que me veio à memória, depois de cogitar sobre estes dias do lixo. “Nada existe de mais perigoso que os medíocres. É que ao contrário dos autênticos estúpidos, ou dos verdadeiros maus, que estão carregados de inibições e até, bem lá no fundo, sabem que não prestam para nada, os medíocres constituem uma categoria que tem suficiente capacidade para fazer tudo, desde a arte à política. Sobretudo esta última.”

 

Li algures que quando somos autênticos, espalhamos sempre uma certa perplexidade em nosso redor, já que tudo aquilo que é autêntico torna-se difícil de decifrar. Pelo contrário, se optarmos por nos mascararmos, escassas vezes seremos capazes de iludir qualquer pessoa inteligente.

 

E olhem que eu não me estou a referir a possuir muitas qualidades. Eu defendo que o que tem realmente valor não são propriamente as qualidades de cada um, mas antes aquilo que se faz com elas.

 

Daí o nosso sistema político ser sobretudo eleitoralista e não propriamente democrático.

 

Bem vistas as coisas, tudo é relativo. E as coisas que hoje nos parecem ser assim, amanhã podem mostrar-se de forma totalmente diferente. Embora, pensando melhor, talvez tudo seja como sempre foi e a realidade seja apenas um valor subjetivo e de frágil significado. Mas eu ainda sou dos que pensam que o importante é mesmo encontrar a verdade das coisas.

 

Há pessoas que têm o direito inalienável de errar. Mas há outras às quais apenas se lhes deve reconhecer o direito de acertar. E eu sou uma delas, no que diz respeito à política, claro está. Já que todos os meus atos anteriores se consubstanciaram em erros.

 

De facto, caros leitores, como dizia uma alma lúcida de quem agora não me ocorre o nome, mais vale ser incompreendido do que mal compreendido. 

13
Dez13

O Homem Sem Memória - 187

João Madureira


187 – Quando o José entregou a peça de caça ao camarada Punhal pensou seriamente em matá-lo pois se o fizesse o poder comunista podia soçobrar. Mas também considerou que o poder podia fortalecer-se e tornar-se ainda mais repressivo. Imitações de Alberto Punhal, para pior, havia-as no Comité Central aos pontapés. Então sorriu para o camarada Punhal e o camarada Punhal também sorriu para ele. Tinha muito tempo para pensar. Tempo e sol.


Podemos explicar que o José, apesar de saber que Alberto Punhal é que era o verdadeiro instigador de todo o processo revolucionário, que o mesmo é dizer, de todo o aparelho repressivo comunista, não lhe tinha um ódio mortal. À sua maneira, Alberto Punhal era até uma pessoa sedutora. Sabia manter a distância como ninguém, mesmo parecendo que estava próximo, estava longe. E o contrário também era verdadeiro.


Mas o seu autêntico inimigo mortal era mesmo o camarada capataz. Foi ele que matou o seu amigo com um tiro na cabeça e depois o ofereceu aos cães para o devorarem. Quem assim procede é um autêntico assassino, um torcionário sanguinolento, uma hiena execrável.


Se existisse Deus, talvez a urgência de o matar não fosse tão premente. Nessa hipótese, o carrasco comunista iria bater com os costados no inferno eterno. Mas a ausência de um Deus juiz e punidor deixava tudo nas mãos dos homens.


Uma besta sanguinária daquelas apenas possuía o direito inalienável a morrer. Na ausência de uma justiça divina só subsiste a justiça dos seres humanos. Que não sendo muitas vezes justiça nenhuma é a única forma de punir quem prevarica. 


Pode-se dizer que a justiça que implica a morte da pessoa que transgride é radical. Mas para radical, radical e meio. E quem com ferros mata com ferros deve morrer. Além disso, a sentença foi decidida em reunião democrática com todos os elementos da resistência que tinham sido torturados e humilhados pelo camarada capataz. E foi unânime. Todos votaram na pena de morte.


Depois de decidida a sentença, os esforços foram todos canalizados para a elaboração de uma estratégia operacional que implicasse a morte do energúmeno e o seu total desaparecimento. Sem cadáver não havia prova física do delito.


O José dedicou-se de corpo e alma ao treino com a arma soviética que o camarada Punhal lhe tinha oferecido. O camarada capataz, a princípio ainda levantou algumas dúvidas sobre o assunto. Não lhe agradava mesmo nada ver um dissidente daqueles a fazer pontaria sobre quem lhe apetecesse. E foi isso que transmitiu aos seus camaradas da UCP. Todos concordaram com ele. Com a reação não se brinca. Mas quando a proibição de uso de arma por parte do José chegou aos ouvidos do camarada Punhal ele levou-se dos diabos e deu ordens expressas para que a arma lhe fosse de novo entregue e com plena autorização de a utilizar como muito bem lhe apetecesse. Argumentou que quem tem medo da reação deve comprar um cão. Ao camarada capataz apenas lhe sobrou a solução de enfiar a indignação no bolso. A partir desse dia, o José não mais se deslocou pela herdade sem ser na companhia da espingarda soviética. Acompanhou muitas vezes o camarada Punhal nas suas caçadas e teve-o muitas vezes na mira telescópica da sua arma. Mas nunca disparou.


Durante alguns meses, ele e os camaradas reacionários, que lhe eram próximos e fiéis, dedicaram-se ao estudo minucioso das deslocações do camarada capataz pela herdade. Estudaram-lhe os percursos e as rotinas. Elaboraram de seguida um plano que incluía o seu encontro com a morte. Ou melhor, fizeram com que a morte marcasse encontro com ele. Definiram o local e a hora. Puseram-se no lugar do destino. Ou melhor, colocaram lá o José, com a espingarda bem apontada.


Tudo aconteceu num dia de abate de árvores, junto de um monte onde o camarada capataz possuía um lamaçal vedado destinado à criação de mais de vinte taludos javalis. Era aí que ele se entretinha nos momentos em que não torturava, nem trabalhava.


Os porcos-bravos eram um mimo de carne. Redondos e ágeis, mexiam-se com uma ligeireza felina. E comiam de tudo. Muitas vezes o seu dono lançava-lhes uma galinha viva para por à prova a agilidade dos animais e punha-se a contar os segundos que o pobre galináceo aguentava vivo. Escusado será dizer que durava poucos. Muito poucos mesmo. Depois do sacrifício, punha-se a rir como um desalmado. Que era aquilo que verdadeiramente era. Também experimentou com coelhos e o resultado foi o mesmo. Os javalis pareciam lobos. Experimentou ainda com cordeiros, cães e até burros pequenos. Tudo o que entrava na cerca era devorado. Um dia resolveu por à prova a agilidade dos seus javalis introduzindo na cerca um gato. Naquele dia os javalis perderam por uma unha negra. Mas perderam. Desenlace que teve origem na desatenção do javali que se encontrava no sítio onde ficava a única saída para o felino. Safou-se o gato, mas o javali não. Nessa mesma noite foi morto e dado a comer aos outros seus companheiros de curral. 


O José e muitos dos seus companheiros assistiram a alguns destes inúteis rituais de cretinice. E não foi em vão, como mais adiante veremos.


Mas recuemos um pouco até ao momento da espera do José. Então lá está o nosso amigo estendido no chão com a arma apontada a uma curva do caminho. As motosserras cortam as árvores fazendo um barulho ensurdecedor. O camarada capataz desloca-se na direção dos trabalhadores. Mal o veem aproximar, aumentam a intensidade do trabalho, do qual resulta o aumento do barulho. Depois observam-no a cair ao chão como se fosse uma árvore derrubada. Quatro trabalhadores deslocam-se na sua direção, pegam nele e levam-no para um lugar escondido. Nunca mais ninguém o viu.


O seu desaparecimento foi muito comentado e alvo de muitas especulações. Houve sessões de tortura por parte dos seus apaniguados para tentarem averiguar se alguns dos suspeitos do costume sabia alguma coisa. Mas ninguém deu com a língua nos dentes. Como o cadáver não apareceu, deram por encerrado o caso. As chefias foram mudadas. Nesse dia houve festa na UCP. Os convivas foram brindados com a carne dos javalis do camarada capataz. Apenas meia dúzia de prisioneiros, incluído o José, evitou comer carne assada no espeto.


Entre eles tiveram a seguinte conversa: “Os javalis estavam tão bem treinados que nem os ossos restaram”, disse um. Outro comentou: “Apenas sobrou o coração. Os recos não conseguiram meter-lhe o dente. Era duro como cornos. E o José rematou: “Admiro-me como tinha coração.”

11
Dez13

Poema Infinito (176): onde o tempo se dobra

João Madureira


As dobras do tempo formam estrelas aos sobressaltos, como se fossem geradas por duas retas aparentemente invisíveis. Esse é o seu ponto angular de não retorno. As paredes das casas abrem-se alterando a transparência da tarde que chega cedo. Alguém enclaustra a esfera que faz respirar o mundo. Os espaços vazios enchem-se de excessos. Alguém escreve textos malditos que caem sempre abaixo da sua realidade. Edificamos imagens que são diafragmas de silêncio. Um plano aproxima-se de outro plano. As vozes crescem. As imagens saem da máquina fotográfica e aproximam-se das nuvens. O mundo perde a sua geometria e a sua velocidade longínqua. Escrevo frases que atravessam as coisas e as deixam intactas mas esculpidas por dentro. Os seus limites são as vozes das catástrofes. Nascemos da irregularidade da exatidão. Nessa região de perigo, no sítio exato onde a voz perde a sua energia vertical. O teu corpo vibra por debaixo do meu. Os teus gemidos são pontos de rutura. Os teus olhos são nuvens que convocam a densidade da luz. As palavras aspiram a uma nova forma de iluminação. Apareces dentro de uma janela branca. O conhecimento desarruma a casa. Transformo-me numa metáfora de desejo. O corpo dorme. As horas repousam. Os lugares são inconciliáveis. É tão difícil descrever-te. O vento dobra a largura da verdade, dessa verdade que, entendida, cega e mata. Por vezes chegam poemas com conclusões raras. Nessas alturas a luz abre-se em circunferências que projetam e iluminam os grandes objetos do desaparecimento. As palavras queimam, as separações possibilitam a criação da distância entre sentidos. O teu amor é um sólido perfeito. Por isso o guardo dentro de uma caixa de luz. Contigo aprendi a eliminar as sombras, a preservar as paisagens que conservam a água, a dizer o indizível, a ver o invisível, a acelerar as palavras, a dissolver-me na tua boca, a ceifar as trevas, a erguer o desejo, a sonhar com espanto, a plantar palavras nas lezírias, a recolher o fulgor do desejo satisfeito, a amar todos os fragmentos da vida, a segmentar a beleza lenta da paixão, a unir a matéria líquida, a reconstruir o tempo, a renascer do fogo, a sintonizar toda a infância ressuscitada, a jogar com as árvores e com a terra, a falar dos astros em silêncio, a navegar serenamente na noite. Contigo aprendi ainda a agitar a desordem, a perceber a densidade do tempo, a ver crescer os minutos, a respirar o acaso, a atrair os deuses das vozes serenas, a procurar os caminhos que se alongam, a lançar o tempo ao vento, a aproximar-me das estrelas, a cintilar no interior do teu olhar, a aprender a verdade das distâncias, a saber não tocar em nada, a incandescer as trevas, a pousar devagar no teu corpo, a fazer silêncio quando nos amamos, a perceber a lentidão perpétua do espaço, a voar a direito, a seguir o vento quando passa pelas praças iluminadas, a voltar a casa depois de apanhar frio, a responder aos anjos, a escrever palavras que possuem o dom de renascer perpetuamente, a inventar o futuro. Sento-me no trono do mais frágil dos impérios e espero por ti, como se o mundo fosse uma variação delicada. Cavalos breves atravessam os campos verdejantes. O ar envolve as estações com as sementes do júbilo. A memória dissipa-se. Distendemos as asas e os nossos corpos iluminam-se. Voamos na direção dos lugares frágeis. 

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