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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Jan14

O Homem Sem Memória - 192

João Madureira

 

192 – Triste sina a do José. Na República Democrática do Norte era considerado um intelectual infiel à tradição, ateu e arrojado comunista e na República Popular do Sul era visto como intelectual, católico fundamentalista, traidor e perigoso reacionário. E disto não se conseguia libertar.

 

Como nada tinha a confessar acerca da sua traição, porque, bem vistas as coisas, ele não traiu coisa alguma, nem ninguém, nada confessou aos seus carrascos. Por mais porrada que lhe dessem, ele não podia confessar o inconfessável. O José ou tinha traído tudo e todos ou não tinha traído ninguém.

 

Ao fim de mais algumas sessões de tortura revolucionária marxista-leninista, os verdugos nada conseguiram sacar ao intrépido transmontano. O oposto sucedeu com os seus companheiros de aventura contrarrevolucionária. Esses confessaram tudo e mais alguma coisa. Sobretudo a traição à revolução proletária nacional e mundial. Confessaram ainda desvios ideológicos, furtos de propaganda reacionária que liam às escondidas, uma que outra relação homossexual, orações ditas ao deitar e ao levantar, a bênção do pão, rir de piadas contra o Partido, rir de piadas contra Alberto Punhal, rir por rir, falta de fé revolucionária, fraqueza ideológica, roubo de comida nos armazéns do povo, aventureirismo, esquerdismo, direitismo, titismo, trotskismo, maoísmo, snobismo, intelectualismo e alcoolismo.

 

O José foi definhando, tal qual as suas ideias. Afinal o Manifesto Comunista era um bom livro para limpar o cu, as obras completas de Lenine eram úteis para acender a fogueira nas noites frias de inverno e toda a obra escrita do camarada Alberto Punhal era ideal para forrar gavetas, embrulhar tremoços e azeitonas ou castanhas assadas.

 

Tanta palavra bonita proferida para nada, tanto ideal criado para coisa nenhuma. Tanto sacrifício inútil, tanto sangue derramado em vão. Só quem pretende dizer verdades absolutas é que consegue mentir absolutamente. E foi isso o que o José disse quando foi levado a tribunal: “Só quem se convence que é dono de toda a verdade é que consegue fabricar a mentira absoluta.”

 

Por tal ousadia, e por ter traído a revolução e arregimentado uma pequena sublevação contrarrevolucionária, foi condenado à morte por enforcamento. Apesar das confissões completas, os seus companheiros de desgraça foram despachados com a mesma sentença.

 

A República Popular do Sul, nas palavras dos seus máximos representantes revolucionários, não se podia dar ao luxo de gastar chumbo com tão ruins defuntos. Uma corda bem utilizada dava e sobrava para enforcar a dúzia de reacionários que ousaram desafiar a serena força revolucionária da RPS.

 

Convenhamos que esta narrativa, se assim lhe podemos chamar, até merecia um final dramático deste tipo. Mas nem tudo o que é bom para os livros acaba por acontecer na realidade.

 

No dia anterior ao da data marcada para o enforcamento do José, a RPS propôs à República Democrática do Norte uma nova troca de prisioneiros. Ao que apurámos, os membros da Comissão Política do Comité Central do clandestino Partido Comunista do Norte tinham sido presos enquanto decorria uma reunião deste máximo órgão dirigente.

 

A primeira pergunta que os dirigentes do Norte fizeram aos seus congéneres do Sul foi quem é que eles tinham para trocar. Os camaradas ficaram embasbacados, pois além do José, que eles consideravam o maior reacionário da república popular, pouco mais tinham para oferecer, talvez uns frades missionários e algumas freiras misericordiosas. Os restantes, nas suas palavras, ou foram reabilitados ou estavam mortos. Mas como todos sabemos que na RPS ninguém se reabilita por impossibilidade teórica marxista-leninista, apenas nos resta a segunda hipótese. 

 

O presidente do Norte argumentou que era como trocar um porta-aviões por um barco de pesca artesanal de Sines. A sua primeira decisão foi a de rejeitar a proposta, mas alguém mais avisado fez-lhe ver que se os comunistas do CC fossem enviados para o Sul, deixavam de ser um problema para o Norte. Gente desta estirpe só pode trazer complicações. E das grandes. Como todos são intrépidos comunistas, que se arranjem lá uns com os outros. Mas o presidente do Norte fez-lhe ver que a moeda de troca era o José, que, por sua vez, já tinha sido trocado e que nem assim se conseguiu dar bem com os ares do Sul, que, ao que dizia, eram os seus.

 

Ponderados os prós e os contras, o presidente do Norte, homem pragmático e pouco dado à política, e muitos menos à ideologia, pois nem sabia o que isso era, aceitou, mas com uma condição, a de o prisioneiro escrever as suas memórias. Está claro que a condição foi estabelecida com os seus legítimos representantes na República do Norte: a sua família, ou mais concretamente, a sua mãe, que nestes, como noutros acontecimentos, foi sempre quem pôs e dispôs. Desta forma foi o nosso herói salvo da morte por enforcamento.

 

Mal chegou à sua terrinha, em muito segredo, para os cidadãos do Norte não se inteirarem das contradições do regime democrático nestas trocas e baldrocas, foi logo encaminhado para a casa da sua mãezinha, a Dona Rosa, que quando o avistou ao longe desmaiou, como era seu feitio. Mal deu acordo, carregou-o de beijos e prometeu engordá-lo como se fosse, com vossa licença, um reco. Prometeu e cumpriu.

 

Quando o José recuperou as cores, a sua mãe, numa bonita tarde de sol, enquanto o seu pai fumava um cigarro, os seus irmãos mais novos estudavam em casa e ele coçava a barriga ao sol como um verdadeiro ex-preso político, resolveu apresentar-lhe a fatura da sua libertação: a escrita das suas memórias.

 

Ainda hoje se comenta o grito que então se ouviu lá no bairro, bem maior do que o do Quincas quando, por engano, em vez de aguardente bebeu água: “Mãe, eu matei a minha memória. Eu sou um homem sem memória.” E continuou a coçar a barriga ao sol como se fosse um burguês em férias. 

29
Jan14

Poema Infinito (183): o gosto dos anjos

João Madureira

 

Quantas vezes fiquei parado a olhar-te junto ao lago, a admirar os teus movimentos lentos, a invocar a memória e a recordar-me de uma só vez como te conheci. Eras um anjo de cabelos longos e atados que espalhava o fogo do seu olhar e se sentava à mesa a falar de papoilas. Sim, os anjos sentam-se à mesa e repartem o pão e deitam-se na cama e escondem as armas de fogo nos armários e libertam os pássaros das gaiolas e têm insónias divinas e orgasmos como orações musicais. E amam aquilo que somos. E sabem estender-se no chão e esperar que os pisem com amor. E gostam que lhes acariciem a pele e de ter medo de terem medo e de revelar o caminho aos que se perdem e de estender uma escada aos que necessitam de subir e de acender luzes na escuridão e de revelar estrelas e de iluminar as palavras e de amaciar os espinhos das rosas e de perguntar o nome aos esquecidos e de apaziguar as certezas insofismáveis e de transformar a alegria das pequenas realidades numa coisa imensa e de transformar as horas em oferendas e de colocar madrepérolas no teu nome e de perder a cabeça por desfolhar malmequeres e de voar como abelhas e de nadar em grandes espaços. E os anjos gostam também de nascer todas as manhãs e de percorrer os desertos e de contemplar as luas a abrir-se e a colocar planetas aos teus pés e de colher amoras e de se esconder no nosso passado infantil e de dormir abraçados e de tocar os pequenos pontos azuis do nosso cérebro e de codificar o nome de deus e de por nome às crias das gatas e das cadelas e das vacas e das éguas e de serem mais assim e mais assado, conforme os apetites de cada um, e de fazer tiquetaque como os enormes relógios de sala e de desvendar aos escritores todos os enredos das vidas que não se cansam de inventar e de guardar segredo quando lhes pedem e de escrever romances onde as princesas dormem em berços de vento e de parar o sangramento quando as mães furam as orelhas às suas filhas e de gravar orações nos brinquedos e de tomar banho numa bacia junto à lareira e de encantar lagartos e de fazer milagres ao contrário e de guardar seixos nos bolsos largos dos seus uniformes e de desfazer promessas tolas e de decorar poemas e de juntar pedrinhas e pedrinhas e mais pedrinhas num canteiro de maçãs e de repetir as vogais três vezes e de soletrar todas as palavas esdrúxulas da bíblia. E os anjos gostam ainda de por vezes não sentir nada e outras vezes de sentir tudo e de tornar a não sentir nada e de tornar a sentir tudo e gostam de ser leves como penas de pintassilgo e tão pesados como chumbo e gostam de perder a consciência quando amam e quando odeiam, apesar de estarem proibidos de odiar, e gostam de escrever cartas de amor ainda mais ridículas do que as que escrevia fernando pessoa e de deixar pousar os pirilampos nos olhos da luzia e de beijar as feridas que não se veem mas se sentem e de responderem às perguntas pertinentes do vasco e de nunca se chatearem com a teimosa teimosia do axel. E os anjos gostam igualmente de falar com os mudos e de acompanhar a visão mental dos cegos e de dizerem as palavras mais cruas com uma leve consonância musical e de transformar os gritos dos desesperados em música erudita e de deixar que chova nos jardins da babilónia e de obrigar os homens da torre de babel a, pelo menos, lavarem a loiça do almoço e de assinarem as cartas que enviam por correio com um beijo escrito e, por fim, gostam infinitamente de escrever em bicos de pés deixando que os humanos lhes acariciem as asas. 

27
Jan14

Pérolas e diamantes (73): burros de carga

João Madureira

 

Claudio Magris tem razão, do ponto de vista psicológico somos todos conservadores e ainda por cima cegos. Não conseguimos acreditar realmente que o mundo, tal como estamos habituados a entendê-lo, possa mudar. Mas ele muda. Apesar da nossa cegueira.

 

Agora está na moda o discurso sobre o discurso, como se o agricultor preparasse muito bem as alfaias agrícolas, calibrasse muito bem o arado, fizesse um discurso à mulher e aos filhos sobre a melhor forma de amanhar a terra, mas o pão e as batatas não chegassem à mesa. Bem vistas as coisas, o arado não é o objetivo. É o meio. E é disso que nos vamos esquecendo.

 

Por exemplo, aqui na nossa autarquia pensa-se sempre pequeno e a destempo. Andam sempre a errar o tiro e a correr atrás do prejuízo. Mas para o caçador matar um coelho, ou uma perdiz, tem de apontar para um ou dois metros à frente, porque, diz-nos a ciência da caça, só se apontarmos para diante é que podemos atingir os nossos objetivos.

 

Não é pois de estranhar que a capa da “New York Times” tenha dado destaque ao título “Em Portugal, o burro de carga vive de subsídios”, fazendo uma comparação entre o asno do planalto e o destino de Portugal e dos portugueses.

 

Raphael Minder, o autor do artigo, recordou que o burro foi essencial na agricultura durante muito tempo, mas corre agora o risco de extinção por causa do abandono das terras. Por isso Portugal, mais concretamente o seu interior, se encontra ameaçado “pelo declínio da população e com a sobrevivência dependente dos subsídios da União Europeia”. 

 

Tudo isto serve para introduzir mais uma lamentável notícia. A Delegação de Turismo de Chaves, à semelhança da Universidade, da PJ, do Tribunal, do Hospital, vai ser transferida para Vila Real.

 

Ou seja, através de mais uma machadada desferida nos serviços da nossa cidade, comprometendo a sustentabilidade dos nossos espaços termais e a divulgação turística da região, bem assim como pondo em risco efetivo os atuais postos de trabalho existentes na delegação flaviense, vamos ficando cada vez mais pobres e isolados, remetidos à desqualificação, ao abandono e ao definhamento.

 

Falta pouco para nos transformarmos numa vilazinha descaracterizada, rudimentar e triste.

 

Se pensarmos bem, o poder central, em conivência com alguns políticos locais subjugados pela inoperância e pelo servilismo partidário, em apenas meia dúzia de anos levou-nos tudo o que era necessário e estruturante para a nossa cidade e para o nosso concelho.

 

António Cabeleira, o senhor presidente eleito, veio para os jornais afirmar que, numa conversa tida com o presidente do Turismo do Porto e Norte de Portugal, tinha ficado “no ar” a promessa de que a situação de encerramento da nossa delegação não se concretizaria.

Afinal concretizou-se. E o senhor presidente disse lamentar. Não disse “combater”, ou “contestar”, disse “lamentar”. Não disse “lutar” ou “insurgir-se”, disse “lamentar”. Como se a Câmara de Chaves fosse um muro de lamentações e ele um rabino ortodoxo.

 

Os flavienses elegeram um autarca que em vez de lutar pelos nossos direitos, apenas se lamenta. Em vez de agir, lastima-se. Em vez de atuar, suspira.

 

Mas também, temos de reconhecer, o poder autárquico que resultou das últimas eleições é uma fantasia. É uma ilusão. É um equívoco.

 

Com o senhor presidente a fazer de mestre-escola, a atual vereação camarária faz-me lembrar as palavras de Galvão de Melo, proferidas ainda antes do 25 de abril e que lhe custaram uma punição disciplinar, relativas à frota de submersíveis: “A Marinha Portuguesa possui apenas três submarinos e todos eles inoperacionais. Tem um que só sobe, um que só desce e um terceiro que nem sobe nem desce.”

 

Está visto que os políticos são cada vez mais atores que representam interesses alheios. Só que a nós calharam-nos logo os mais deslavados e incaracterísticos.

 

Um dia, ainda criança, o meu filho mais novo disse-me com o seu ar brincalhão: Pai, quando for grande quero ser político. Eu perguntei-lhe: Para fazer o quê? Ele respondeu-me com toda a sinceridade: Para não fazer nada!

 

Como naquela altura ainda andava iludido com a política, tentei fazer-lhe ver que não era bem assim. Ele, depois de toda aquela explicação, olhou para mim, sorriu… e foi brincar.

 

Chegado aqui, apenas me resta confessar que, tal como o ex-comissário Ledru-Rollin, do livro de Gustave Flaubert, “A Educação Sentimental”, a política só me trouxe desilusões e tormentos. E a explicação é a mesma. Tal como o senhor ex-comissário “pregava a fraternidade aos conservadores e o respeito das leis aos socialistas”. O homem foi tão bem compreendido que “uns tinham-lhe dado tiros e os outros trazido uma corda para o enforcarem”.

 

A mim não chegaram a tanto. Mas estou em crer que vontade não lhes faltou. Ou lhes falta. Mas o que tem de ser tem muita força. E a prestidigitação e a mentira em política não costumam durar muito. 

24
Jan14

O Homem Sem Memória - 191

João Madureira

 

191 – “Por favor, mãe… Não, não, não me batas mais. Mãe. Não. Não fui eu quem roubou as maçãs à Dona Quinhas”, gritava o José momentos antes de abrir os olhos e ver que quem lhe dava bofetadas não era a Dona Rosa mas sim os esbirros de Alberto Punhal.

 

“Torcionários. Reacionários. Filhos da…” “Toma, toma, toma, toma mais esta e esta e ainda mais esta. Esta é por Lenine, esta por Marx, esta por Estaline, esta por Punhal e esta por mim e mais esta e esta e ainda mais esta. Tu cansas-me… E esta pela revolução que tu queres trair, besta reacionária…” “Reacionário és tu, filho da…” “Toma, toma, toma lá mais esta e esta, filho de uma cadela burguesa. Esta é por Marx, esta por Lenine, esta por Fidel, esta por Punhal, e mais esta por…” “Para, para, que o matas à lambada. Usa os processos, mas a modinho. Usa mas não abuses destes reciclados métodos ecologistas de tortura. As ordens são para obrigá-lo a confessar, não para o matar. Pelo menos para já. E as ordens são para ser cumpridas. Afinal vivemos num estado de direito socialista, a caminho do comunismo, ah, ah, ah... O preso tem os seus direitos… ah, ah, ah...” “Quais direitos, qual caralho! O direito deste cão reacionário é levar porrada. Porrada e mais porrada. Onde já se viu um transmontaneco de merda vir para aqui fazer pouco de todos nós. E do Partido. Enquanto eu puder, aqui na nossa terra ninguém brinca com a revolução, nem com as suas conquistas. Traz a vergasta que o vamos açoitar até confessar.” Pausa. “Reacionário, filho de uma cadela burguesa…” “Reacionário és tu, filho da…” “Toma, toma, toma, toma mais esta e ainda mais esta. Esta é por Fidel e esta por Che e esta por Lenine e esta por Marx e ainda esta outra por Estaline e ainda mais esta por Punhal… Traz lá a merda da vergasta, que já me começam a doer as mãos.” Pausa. “Reacionário, filho da…” “Toma, toma, toma lá mais esta e mais esta e mais esta e ainda mais esta. Esta por Lenine, esta por Marx e mais estas todas pelos revolucionários de cujos nomes agora não me lembro... Tu cansas-me… E não confessa, este filho de uma cadela reacionária…” Nova pausa, pois o prisioneiro voltou a desmaiar. “Foda-se, estou esgotado. Agora é a tua vez, meu trotskista de merda.” “ Não me chames isso nem a brincar.” “Olha, olha. Continua sem sentidos. Será que está morto?” “Morto não está porque ainda respira. Mas já não lhe falta tudo.” “Este filho de uma cadela reacionária não confessa nada.” “Pudera, tu, além de ainda não lhe teres feito nenhuma pergunta, nem sequer o deixas falar.” “Não vês que ele mal abre a boca insulta-me logo.” “É a sua tática.” “Talvez a sua tática o leve à morte.” “E achas que ele se importa?” “Ninguém gosta de morrer. Isso eu sei.” “Mas observando a maneira como ele se aguenta, penso que deves estar enganado. A forma como te provoca leva-me a pensar o contrário.” “Deixa-te de filosofias baratas e passa-me aí o vergalho.” “Com o vergalho não. Isso não. As ordens do camarada diretor são para obrigá-lo a confessar, não desancá-lo com porrada até à morte. Se lhe malhas com o vergalho, o pobre do homem não aguenta. O vergalho é para usar muito a modinho. E por especialistas. Exige muito treino e outra tanta sabedoria. Nas mãos de um brutamontes como tu é uma arma letal.” “Com as mãos já não consigo mais. É a tua vez.” “Não, não é. Então não sabes que eu é que estou escalado para fazer de torturador bom. Tu malhas e eu observo. Também quem mandou gabares-te ao chefe de que tens umas manápulas de gigante. Mais a mais, alguém tem de estar atento para ouvir a sua confissão. Afinal é isso que todos pretendemos. Olha, olha, está a acordar de novo. Vamos voltar ao trabalho.” “Eu não posso mais, já não sinto as mãos. Só continuo a tarefa se for com o vergalho.” “Não insistas, como chefe desta brigada de tortura proíbo-te de usares tal arma.” Pausa. Afinal o José não chegou a despertar, como o torturador bom tinha sugerido. Cansado de esperar, o torturador com manápulas de gigante, foi-se ao José e de novo o começou a esbofetear com toda a determinação revolucionária. E o José: “Não, mãe, não fui eu que roubei os rebuçados ao azeiteiro. Não me batas.” “Eu não sou a tua mãe. Sou um dos muitos camaradas que traíste. Tu traíste-nos a todos. Confessa. Toma, toma, toma, toma. Esta é por Lenine, esta é por Marx, esta é por Punhal, esta por Ho Che Ming…” “Não é Ho Che Ming é Ho Chi Minh…” “E a quem é que isso interessa? Porque não vens tu continuar a tarefa a ver se ele confessa.” “O que queres que ele confesse?” “Não te armes em intelectual. Queremos que confesse a sua traição. Afinal ele é um traidor. Traiu o Partido, os camaradas e a revolução. Não existe pior traição. Ele tem de confessar a sua traição.” “É aí que te enganas. Ele pensa que não traiu nada nem ninguém. Ele pensa que os traidores somos nós.” “Essa é a sua maior traição. Vai lá buscar o vergalho. Ele vai confessar, e de joelhos, como os católicos.” “Não insista no vergalho.” “Toma, toma, toma, toma lá mais esta, reacionário, traidor da classe operária, traidor da revolução, traidor do marxismo-leninismo…” “Reacionário és tu. Tu é que devias confessar a tua traição. Torcionário, reacionário, filho da…” “Toma, toma, toma. Esta é por Fidel, esta por Lenine, esta por Marx, esta é pelo seu amigo de quem agora não me lembra o nome, mas que também tinha barbas e era um comunista retinto, esta é por…” “Deixa lá, que o prisioneiro voltou a desmaiar. Vou chamar o médico e mandá-lo para a cela. Amanhã é outro dia.”

 

Depois da visita do médico da prisão, o José deu acordo de si e, virando-se para os torturadores, disse: “Até amanhã, camaradas.” “Além de traidor e reacionário é provocador. Isto só de vergalho é que lá vai.” “Estou que nem com isso”, concluiu o torturador bom já pronto a deixar de o ser. 

22
Jan14

Poema Infinito (182): a porta dos abismos

João Madureira

 

Há imenso espaço para meditarmos. O azul é enorme. O céu é amplo. Os olhos acendem-se vendo correr a água entre as margens da esperança. Os deuses falsos já morreram. Os mares tornaram-se indefinidos. A saudade é uma incerteza nativa. Este é o tempo da fé na realidade. Do outro lado está o mar sem fim feito de nevoeiro confuso. Os ventos dizem-nos que ignoremos a pátria. A pátria está muda. Nós buscamos a distância do desejo. A pátria entristece-nos. A pátria tem aquele brilho sem luz que nos espanta. A pátria não arde. A pátria é um fogo-fátuo que dói porque nela tudo é incerto e derradeiro. Nela só a noite é enorme. Não há terra nem os céus, mas sim a noite. E as sombras. E o passado. Nela até os crentes perdem a fé. As almas ficam acesas iluminando as espadas. Resta-nos o nome. E a fé perdida. A fé de não crer em nada. A fé que nos inunda a alma de escuro. A fé no gládio e na cruz. A fé nos heróis que são vento e que são expiação e que são ânsia. O tempo fica agora na sua nova forma clara. O espaço é outro. A memória amanhece dentro de nós e transforma-se num lago. Deus despreza a brisa da tarde.  Deus transforma-se no espectro real da distância. Todos estamos à espera da salvação e da fé e da esperança. A terra fica aflita. Só as palavras são redentoras. Os sonhos vibram e ardem. As horas esvaem-se. O prazer é agora um estandarte feito de som. Os versos desprezam a própria ideia de infinito. A beleza não existe. Somos seres transitórios. O mundo fica na sua forma metafísica. E cruza os braços. Olhar é agora uma ideia abstrata. É uma floresta sem céu. O mundo fica sem gestos e sem cor. Fica como o mar onde navegam naus negras e silenciosas. As horas ficam lentas e morrem. Corre um frio de carne pelo nosso corpo inerte. Desejamos a imperfeição, a antiguidade, o abandono, o fluido das auréolas, os silêncios futuros. Navegamos entre os sorrisos das brisas e o silêncio do paraíso. Abrem-se as portas por onde o vento entra. Ele traz os erros e o fumo e os ócios e o perfume dos salões onde se discute a guerra e o seu assombro. Aprendemos a angústia de sonhar. Todos os manuscritos se transformam em paisagens. A nossa voz fica triste, tão triste como a voz que embala os náufragos ou como a própria ideia de naufrágio. De repente paro e penso. Fito o sabor imenso da infância. Ignoro o seu desprezo. Abro as mãos às suas horas felizes. E sorrio. Por vezes amo os meus sonhos como se fossem escadas de silêncio que me transportam até à curva do horizonte. Depois amo as paisagens desenhadas pelo amanhecer e desespero com o sorriso dos anjos exilados dentro do seu próprio limbo. E fico triste com o sorriso imperfeito da chuva. Agora somos duas figuras impressas num vitral de gemidos. Tão pouca é a vida para tão grande sonho. As escadas são agora totalitárias e sem degraus, são intervalos, são paisagens com flores transparentes que arrastam o sol, as sombras, a água, as árvores antigas, os sonhos, as paisagens verticais repletas de vultos, a transparência das águas, os caminhos que ardem, as igrejas iluminadas de dor e pranto, o esplendor dos altares dos mártires, todos os abismos feitos pelo tempo, o espaço que nos escorrega por entre os dedos, os versos escritos com a luz da manhã, as janelas secretas da noite e as pirâmides do desalento. De repente todo o espaço fica estático. Nas janelas aparecem as mãos brancas da despedida. Eu fecho os olhos e entro em casa pela porta dos abismos. 

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