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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Abr14

Poema Infinito (193): as palavras

João Madureira

 

Não podemos exprimir a sede de ser que nos move. Não podemos inverter a perspetiva. Talvez então nos seja permitido reconhecer aquilo que fomos e identificarmos os fragmentos dispersos do apocalipse. Nós somos essa relação viva que excede as palavras e as redime e lhes dá sentido. Nós somos as palavras que se desviam e que excedem a vida e que retêm toda a ilusão adolescente. As palavras correspondem sempre a incertezas, são como um lume frágil numa manhã fria. As palavras são ilusórias quando hesitam. Embora quem as caminha sempre as veja nuas como se fossem uma fronteira silenciosa de separação. Que Deus não una aquilo que as palavras separaram: a sua ilusão dispersa, a sua asceta solidão, o território comum do desaparecimento. Sentimo-nos atraídos pelos pontos de partida, pela glória unânime das vozes que saem, pela espessura deslizante das cores da angústia. Estaremos então pousados entre as margens do amanhecer acreditando na densidade mínima do amor, na grande tranquilidade das horas, na verdade dos outros, na rapidez justa da poesia, nas vozes que subsistem, no rosto da terra, na ondulação imperfeita do mar, nas vozes inesperadas, nos caminhos das palavras, nas evidências que nos comovem, na breve luminosidade dos olhares, nos espelhos do crepúsculo, na liberdade fugitiva dos sonhos, na brevidade temporal das casas, na aridez da luz, dos espaços e dos corpos, na fresca amargura da pureza, no sossego intempestivo dos livros, na indecisão das nuvens, na surdez das planícies, na deflagração dos milagres, na extensão do vento, nos desejos da terra, no sofrimento das lâmpadas, na unidade da memória, na dureza abandonada dos muros, na paciência das estradas, nos espaços abertos à luz, na sabedoria imóvel das pedras, na fluidez das sílabas do vento, nos cavalos inquietos que atravessam as auroras boreais, na inocência da água, na crueldade clara dos desertos, na impenetrável preciosidade das árvores, na linguagem elástica da pintura, no silêncio idêntico da liberdade, nos corpos suspensos pelo desejo. As palavras levantam-se e coincidem com a realidade e transformam-se na sua evidência fértil. Outrora os homens partilhavam as palavras e davam-nas ao vento. As mulheres enlaçavam-nas silenciosamente e guardavam-nas dentro de si como se fossem unidades brilhantes e perigosas. Dentro de si as vogais permaneciam vivas como abelhas. Por isso sonhavam com a glória e o sacrifício. Daí a paciência. Daí a improvável possibilidade da violência. Agora os poetas levantam as palavras e largam-nas sobre ecrãs brancos onde se misturam com imagens que são sombras e escrevem sobre a violência afirmando que elas, as palavras, estão imbuídas de frescura. E balbuciam as palavras que lhes disseram para não pronunciar. Por isso as palavras perderam a sua luz, a sua sombra e a sua seiva. Agora já não conseguem carregar-se de frutos, nem de beijos, nem de flores. Agora apenas carregam o silêncio da pobreza, a linguagem indolente dos exploradores, a espuma tóxica das sílabas mal divididas e olham para o mundo com a sua cumplicidade de veludo. As palavras já não refletem qualquer luz salvífica, são redondas como sombras obesas e lentas. Os fantasmas fixam os textos e deixam neles pequenas pegadas de aves. Os poemas são finas lâminas. As palavras são agora desprezo. E desalento. As palavras estão preenchidas de esquecimento. São círculos de energia negativa. As palavras sangram e ficam imóveis à espera da morte. À espera de alguém que as salve. À espera de poderem ser de novo magníficas. 

07
Abr14

Pérolas e diamantes (83): perigosa fantasia

João Madureira

 

Numa entrevista ao Dinheiro Vivo do DN, o presidente do conselho de administração da Zon Optimus, Jorge Brito Pereira, antigamente um “esquerdalho”, confessou-se profundamente envolvido nas privatizações e nas mais recentes polémicas em torno disso mesmo.

 

Disse considerar-se de esquerda, mas apenas nas questões de costumes, pois acha “por exemplo inacreditável que haja sequer polémica sobre os homossexuais poderem adotar ou casar. Já quanto à coisa pública, defende que quanto menos o Estado se meter na economia, melhor.

 

Ou seja, nos tempos que correm, a direita é de esquerda em matéria de costumes. Vícios privados, públicas virtudes.

 

Para o ex-esquerdalho, não é estranho “querermos liberalizar a economia”, pois “são opções políticas dos outros Estados e do nosso”. E afirma com eloquência: “Dinheiro é dinheiro e é dinheiro”. Esquecendo-se, talvez de propósito, que as pessoas são pessoas e são pessoas. Por mais que ele as queira ver empobrecer.

 

No fundo, o povo é a única força verdadeira, pois representa as nossas virtudes e o que temos de fraco ou mesmo mau. Apesar disso, somos consistentes nessa nossa atitude.

 

Já as nossas elites apenas se preocupam com um único aspeto: o do ganho pessoal. No nosso país, ao contrário de muitos outros, as pessoas muito ricas não contribuem com um tostão que seja para o bem comum. Nunca o fizeram, nem o vão fazer. É triste, mas é real.

 

Com a nossa adesão à Europa, foram os ricalhaços aqueles que tiveram verdadeiramente o poder e receberam fisicamente o dinheiro.

 

Foram eles, e os governantes seus serviçais, que em vez de encaminharem essa riqueza para o bem comum, canalizaram-na para os grandes empreiteiros, para a banca, para a indústria efémera e para a ideia peregrina de adquirir o luxo.

 

A existirem criminosos, e estamos em crer que sim, é no meio dessa seita que os podemos encontrar.

 

Queiramos ou não, a nossa história é feita sempre de oportunidades perdidas. Umas atrás das outras. A verdadeira mudança, porque muitos de nós lutámos e esperávamos, afinal nunca se cumpriu.

 

A nossa história é a de um contínuo falhanço. E isto porque, como uma vez disse Novais Teixeira a José Rentes de Carvalho, sobre a oposição ao antigo regime: “A oposição portuguesa tem razão, mas não tem mais nada.”

 

Atualmente a história repete-se. Até porque tanto o poder como a oposição convivem numa osmose mal disfarçada, pois são vinho da mesma pipa.

 

As medidas impostas pela troika não foram objeto de deliberação em nenhuma estrutura democrática. Foram, pura e simplesmente, impostas.

 

Foram os tecnocratas das três instituições que a compõem que impuseram a austeridade apontando uma pistola à cabeça do governo e dos portugueses. Essas medidas nem sequer foram discutidas democraticamente nas instituições europeias.

 

As decisões foram-nos impostas sem base jurídica e isso levanta um sério problema, porque aos países em causa não lhes foi permitido qualquer tipo de escolha. Ou melhor, a escolha foi: ou aceitam o memorando ou não têm ajuda.

 

Mas nesta jogada também existe uma história um pouco maquiavélica protagonizada pelo PSD. Esse partido, à altura na oposição, quando resolveu juntar-se à negociação do memorando por parte do então Governo demissionário de José Sócrates, meteu ao barulho uma pessoa chamada Eduardo Catroga, que tudo fez para endurecer de forma substantiva o memorando, com o apoio tácito de Durão Barroso.  

 

O Chefe da Comissão Europeia modificou deliberadamente os critérios de cálculo da dívida portuguesa, o que resultou num défice maior que, por seu lado, originou a imposição de medidas mais duras do que as previstas.

 

Não contentes com este estado de coisas, os atuais governantes aplicaram ainda medidas mais duras do que as exigidas pelo memorando. Pelo meio estabeleceu-se uma nuvem pouca clara de interesses, como é disso exemplo paradigmático a privatização da EDP.

 

Daí resultou que o negociador do PSD com a troika está agora à frente da EDP privatizada, hoje detida pelos chineses. Por alguma coisa, o atual governo é considerado pelos políticos conservadores e pelos especuladores financeiros, como o melhor aluno da troika.

 

A crise atual, por muito que custe aos políticos neoliberais, não é apenas económica, como defendem, é também política e tem até implicações morais.

 

Uma Europa em que existem países, como é o caso do nosso, com uma taxa de desemprego entre os jovens que atinge valores próximos dos 50%, vai ter a prazo uma rutura política.

 

Hoje a Europa está dividida em duas partes muito diferentes, quer a nível ideológico como a nível social, económico e cultural. O Norte drena os recursos dos países do Sul.

 

Ou seja, a construção europeia, ao contrário do que se afirma por aí, não aproxima os povos que dela fazem parte, tende antes a opô-los cada vez mais.

 

Os países do Norte legitimam esse corte com os preconceitos e justificações tolas. Para eles, as pessoas do Sul viveram acima das suas possibilidades. Por isso funcionam agora como povos conquistadores.

 

A continuar assim, como avisou o filósofo francês, Étienne Balibar, “a Europa explode”.

 

O problema é que Europa não funciona, como era seu dever, como meio de controlo, de resistência ou de contrapoder aos mercados financeiros. Muito pelo contrário, a UE fixou como objetivo eliminar todos os obstáculos ao reino desses mesmos mercados.  

 

Uma coisa todos sabemos, e isso desde que Jacques, o Fatalista foi escrito: Se o mar ferver, com toda a certeza que vai haver muito peixe cozido.

 

Ou dito ainda de outra forma: “Cada um segue a sua fantasia, a que se chama razão, ou a sua razão, que não passa muitas vezes de perigosa fantasia, que ora dá para o bem ora dá para o mal.”

03
Abr14

Poema Infinito (192): o tempo invisível das crianças

João Madureira

 

O inverno terminou a sua limpeza. Os teus olhos ficaram dourados. A felicidade pode trepar de novo pelos ramos e a seiva cantar a sua libertação do frio. As cotovias vencem a sua timidez abstrata e definem o seu voo impetuoso e concreto. O que era alto ficou mais alto ainda. Todos os movimentos se inscrevem na minha retina e iluminam-me o pensamento. A letargia dos domingos fica presa nos vasos sem flores. Os movimentos do mundo ficam mais concentrados e espessos. Toda a alma é provisória. Todo o tempo é definitivo. A luz adequa-se ao inverno e à sua placidez e à sua conclusão escura. Hoje olhamos a erva recente e refletimos sobre a sua brevidade total. O rio corre dentro do seu vagar para se entregar ao oceano. O sol de inverno fundamenta a nossa velhice e a sua luz alarga-se exuberante pelo esplendor polícromo dos caminhos. Os homens julgam-se ainda afeitos aos prodígios, pobres coitados. E assustam-se com a lisura momentânea da felicidade. O mundo é jubiloso quando o tempo fica intenso. O vagar é ainda mais visível quando sofremos. Passou rápido o tempo que nos permitiu ver tudo eternamente jovem. Agora a sua luz é remota. Os campos estão entregues às aves que as cercam com as suas melodias específicas. O desassossego brilha despertando em nós as surpresas virtuosas. O tempo antigo é uma reminiscência vagarosa. As crianças moram nas suas memórias brancas. Também eu fui possuído por essa alegria dolorosa da infância. Daqui já não vemos o mar. Este tempo já não assenta em marés. As imagens refletem a sua distância infinita feita de pontos adjacentes. Até a história nos aflige com a sua redenção de passado infinito, com a sua solidão de palavras estabelecidas, com a sua perentória invisibilidade de glória. As mulheres emergem na frescura sensível do seu silêncio. Sinto a tensão exposta do espaço à minha volta. Não me ensinaram como se constrói o esquecimento, nem a forma de evitar escutar os gritos rasgados das mulheres antigas que sonhavam filhos como árvores erguidas pelo deus do vento e do desespero. O tempo desce na sua ligeireza eterna deixando atrás de si o eixo das estações. A primavera ainda está presa dentro do seu casulo. O tempo é agora doce como a lentidão do mel. Deus ausentou-se mais uma vez do seu promontório antigo sem dizer a ninguém para onde ia. A sua nostalgia é uma massa compacta de invisibilidade e sofrimento. A tarde ergue a doce ligeireza da paciência. As crianças ficam agora abertas ao sossego noturno. As mães tricotam o seu sono vigilante, sacodem a solidão e escondem a sua alma na escuridão. As crianças sonham com barcos concretos e com o vento que agita os pinheiros e com gaivotas que sulcam o azul do céu e com imagens de mesas iluminadas e com o eco do silêncio e com o ritmo específico da paciência das suas mães e com a ausência pacífica dos seus pais e com a invisibilidade dos anjos da guarda e com a subtil firmeza dos avós e com a forma eterna do tempo e com a eternidade dos domingos e com todas as frases que são indício de luz e com o lento júbilo do amanhecer e com a penitência das viagens e com a impetuosa decadência dos milagres e com a glória redentora das brincadeiras e com a glória acesa do amor e do carinho e da sua ativa fé na verdade absoluta e na surpresa dos conceitos e na felicidade provisória do pensamento e no crescimento das palavras e no crescimento do seu corpo e da sua alma e das suas asas… e da luz… e do júbilo… e da firmeza e da… e da… e da… invisibilidade…

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