Poema Infinito (203): estátua de sol
Escuto o meu livro de viagens. Foi nele que guardei as montanhas geladas do norte, as noites brancas de luar, as florestas negras, o vento norte, as aves planas, as raposas. Nele guardei também as cidades luminosas, as mulheres lúcidas, os homens atormentados. E ainda as praias quentes do sul. Escrevi nas suas linhas as línguas provisórias, as construções vagarosas, as ruínas do interior, todos os continentes perpétuos, os monges brancos e os marinheiros que perseguem a estrela polar. Recordo todos os caminhos que percorri sem nunca pensar em voltar atrás. Em nenhum lugar encontrei o que procurava. Misturei-me com os ventos, com os cavalos alados, com as douradas brumas dos desertos. Ainda hoje sou vítima da ânsia de partir. Descubro que estou dentro de um sonho. Todas as cores possuem formas deslumbrantes. Os amigos já partiram deixando vagos os lugares e as suas biografias incompletas. Voltaram as saudades. Voltou a desculpa. As pessoas escolheram ser diferentes. Aprenderam a imitar pequenos deuses efémeros. Aprenderam a ter medo de se protegerem. Sentem-se cada vez mais sós. As suas mãos são pequenos refúgios. As noites passaram a gritar. As manhãs ficaram mais íntimas. Por isso a luz é ainda mais branca. Os teus olhos adquiriram a fascinação azul dos céus, ou o deslumbramento verde do mar. Sinto-os com fazendo companhia às estrelas. De repente as coisas mudaram de lugar. A tarde passou a ser um livro agitado onde o tempo respira suavemente. As palavras exigem a sua verdade. Eu sou o compasso dos meus sonhos. Neles estão recolhidos os medos e os anseios. Sinto que a manhã me pertence, apesar de a desperdiçar sempre que rompe o sol. Por vezes chega cedo de mais, carregada de memórias, tentando convencer-me da verdade da sua luz. Guardo agora o silêncio nas gavetas. Por vezes as palavras curam, por vezes matam. Antigamente os nomes eram lugares descontínuos que ficavam vazios quando os sentavam à mesa enquanto esperavam que alguém regressasse de algum lado para curar as feridas do esquecimento. As casas enchiam-se de crianças dolorosas e de adultos rigorosos. As festas eram provavelmente imagens falsas inscritas em nós. Não existiam enredos sobre as camas. Os quartos ficavam sempre sós depois dos coitos. Dentro dos espelhos os dias vestiam-se sempre melhor do que o esperado. A infância era um perfume complexo. A felicidade era um pressentimento aguardado. A felicidade possuía o peso da mentira. Tudo finalizava com um abraço frio. Deus guardava-nos dentro do nosso medo. Deus anunciava-nos a vergonha, o pecado, o sacrifício. Os nossos olhos perdiam vida em vez de a alcançarem. Os plutocratas chegavam até nós carregados de palavras douradas que não diziam nada, apenas brilhavam ao sol. O tempo passava. Deus fazia questão de distribuir o nosso tempo pelo tempo dos outros. Para ele tanto fazia. Para nós não. Mas isso não lhe interessava. Dizia que não nos compreendia. Muitos vinham de longe procurar a redenção. Sentavam-se e esperavam. E adormeciam como se fossem cavalos bêbados. Os olhos de Deus são cegos, apesar de verem tudo. São assim os olhos dos deuses: lavados pelo sol. Aprendi por isso a viajar sem olhar para trás.