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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

19
Jun14

Poema Infinito (203): estátua de sol

João Madureira

 

Escuto o meu livro de viagens. Foi nele que guardei as montanhas geladas do norte, as noites brancas de luar, as florestas negras, o vento norte, as aves planas, as raposas. Nele guardei também as cidades luminosas, as mulheres lúcidas, os homens atormentados. E ainda as praias quentes do sul. Escrevi nas suas linhas as línguas provisórias, as construções vagarosas, as ruínas do interior, todos os continentes perpétuos, os monges brancos e os marinheiros que perseguem a estrela polar. Recordo todos os caminhos que percorri sem nunca pensar em voltar atrás. Em nenhum lugar encontrei o que procurava. Misturei-me com os ventos, com os cavalos alados, com as douradas brumas dos desertos. Ainda hoje sou vítima da ânsia de partir. Descubro que estou dentro de um sonho. Todas as cores possuem formas deslumbrantes. Os amigos já partiram deixando vagos os lugares e as suas biografias incompletas. Voltaram as saudades. Voltou a desculpa. As pessoas escolheram ser diferentes. Aprenderam a imitar pequenos deuses efémeros. Aprenderam a ter medo de se protegerem. Sentem-se cada vez mais sós. As suas mãos são pequenos refúgios. As noites passaram a gritar. As manhãs ficaram mais íntimas. Por isso a luz é ainda mais branca. Os teus olhos adquiriram a fascinação azul dos céus, ou o deslumbramento verde do mar. Sinto-os com fazendo companhia às estrelas. De repente as coisas mudaram de lugar. A tarde passou a ser um livro agitado onde o tempo respira suavemente. As palavras exigem a sua verdade. Eu sou o compasso dos meus sonhos. Neles estão recolhidos os medos e os anseios. Sinto que a manhã me pertence, apesar de a desperdiçar sempre que rompe o sol. Por vezes chega cedo de mais, carregada de memórias, tentando convencer-me da verdade da sua luz. Guardo agora o silêncio nas gavetas. Por vezes as palavras curam, por vezes matam. Antigamente os nomes eram lugares descontínuos que ficavam vazios quando os sentavam à mesa enquanto esperavam que alguém regressasse de algum lado para curar as feridas do esquecimento. As casas enchiam-se de crianças dolorosas e de adultos rigorosos. As festas eram provavelmente imagens falsas inscritas em nós. Não existiam enredos sobre as camas. Os quartos ficavam sempre sós depois dos coitos. Dentro dos espelhos os dias vestiam-se sempre melhor do que o esperado. A infância era um perfume complexo. A felicidade era um pressentimento aguardado. A felicidade possuía o peso da mentira. Tudo finalizava com um abraço frio. Deus guardava-nos dentro do nosso medo. Deus anunciava-nos a vergonha, o pecado, o sacrifício. Os nossos olhos perdiam vida em vez de a alcançarem. Os plutocratas chegavam até nós carregados de palavras douradas que não diziam nada, apenas brilhavam ao sol. O tempo passava. Deus fazia questão de distribuir o nosso tempo pelo tempo dos outros. Para ele tanto fazia. Para nós não. Mas isso não lhe interessava. Dizia que não nos compreendia. Muitos vinham de longe procurar a redenção. Sentavam-se e esperavam. E adormeciam como se fossem cavalos bêbados. Os olhos de Deus são cegos, apesar de verem tudo. São assim os olhos dos deuses: lavados pelo sol. Aprendi por isso a viajar sem olhar para trás.

16
Jun14

194 - Pérolas e diamantes: o madeiro da política

João Madureira

 

Com tristeza o digo, até porque foi tarde que o percebi: os flavienses possuem uma genuína vocação para se digladiarem. Deve ser o nosso destino de perdedores que apenas perdem porque se abocanham uns aos outros, ao passo que os outros, sempre unidos, batem em nós com vergastas lisas e verdes, explicando, e sorrindo entre dentes, que nos estão a libertar a pele de impurezas.

 

Já houve períodos em que a cidade possuiu as cores da vida e o fulgor do desenvolvimento. Agora a luz que brilha é apenas a do entardecer. O futuro radioso já não existe. Se calhar nunca existiu. Sobretudo porque deixámos de acreditar nele.

 

O ciclo autárquico do PSD de Chaves começou por tentar refazer a realidade de uma cidade que começava a definhar. E, de mistificação em mistificação, levou-nos, em via-sacra, até à atual situação de descalabro financeiro.

 

De importante já nada possuímos por inteiro. Apenas alguma réstia de dignidade, mesmo que angustiada. E mesmo essa já teve melhores dias.

 

A vida da nossa cidade foi sempre aquela que nos contaram. Agora vemo-la ao espelho e não a reconhecemos. Nem a ela, nem a nós. Apenas nos fica o escorrer das horas amargas porque passamos. E os doze anos de dissimulações, mentiras e omissões.

 

A farsa continua.

 

É verdade que em plena campanha eleitoral, a máquina eleitoral do PSD nos caiu em cima e nos pregou uma boa sova. Mas nós também lhe aplicámos alguns ganchos de esquerda e de direita, para não se ficarem a rir. 

 

Olhando agora para o lado da oposição tradicional ficámos com a imagem de frangos de cabeça baixa dando bicadas entre si, momentos antes de lhes torcerem o pescoço. Foi esse equívoco que o povo de Chaves puniu.

 

Na política, a oposição corrige a honestidade, no poder agrava-a.

 

A prática política local entre o PSD e o PS faz lembrar aquelas pessoas que vão aos bailes e comentam enquanto batem com as taças de champanhe umas nas outras: “Afinal não é preciso ter as mesmas ideias para se dançar o tango.”

 

Aprendi com Machado de Assis que, como diz o provérbio, não é a ocasião que faz o ladrão, mas sim que a ocasião faz o furto. O ladrão nasce feito.

 

A mistificação, e a encenação política, de António Cabeleira e, por que não dizê-lo com frontalidade, de João Neves, fazem lembrar a Cabocla do Castelo, identificada pelo Mestre Assis em Esaú e Jacó, que afirmava adivinhar tudo o que era e o que viria a ser, conhecendo até o número da sorte grande, só não o dizendo nem comprando o bilhete para não roubar os escolhidos de Nosso Senhor.

 

Relativamente a João Batista, o cargo de Secretário da CIM até que não lhe cai mal. Ele é um homem simpático. Sempre foi. A agitação do poder até lhe retirou alguma gravidade. Quieto não fica nada mal.

 

Além disso, como leitor de Machado de Assis, aprendeu com o médico e político José da Costa Marcondes Aires, que nas controvérsias uma opinião dúbia ou média pode trazer a oportunidade de uma pílula, pois compunha-as de tal modo que o enfermo, se não sarava, não morria, que era, como todos sabemos, o que naquele tempo faziam as pílulas.

 

Já os estou a ouvir comentar como o amigo do Rubião que isto da política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; pois por aqui não falta nada, “nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão…”

12
Jun14

Poema Infinito (202): o ardor e a ausência

João Madureira

 

Pesa-me a tua ausência. Procurei o fogo entre os labirintos da linguagem com gestos quase imóveis. Sinto-me um equívoco caligráfico. Ai esta ânsia de vencer o tempo. Ai esta sombria demanda da monotonia. Todos os labirintos provocam a violência. Por isso recebo em círculos vagarosos os instantes que desenhaste para mim. Toda a grafia é frágil. Toda a grafia é cinzenta. Todo o ato perfeito é instantâneo. Toda a origem é esquecimento. A essência das multidões resume-se sempre em imagens. Somos perpetuamente a sombra de um unicórnio mutante. O tempo é um idioma branco. O tempo é ambíguo. O tempo é agora uma rua vazia. Nenhum deus por ali passa. As casas são fantasmas. Todos os sentidos são marés subterrâneas. Todo o corpo é desejo. Os meus passos são palavras silvestres que acaricio com a substância das minhas mãos.  A linguagem é um equilíbrio que preenche os interstícios dos horizontes. Todos os nomes são feridas que se escondem por detrás das máscaras do tempo. Os nomes já não são nomes. Os nomes são raízes que percorrem os gritos. Os poetas são redemoinhos espectrais. Vivemos à beira do desastre e continuamos a dançar, como se fossemos anjos volúveis. O tempo tem agora a forma de desejo. As palavras por vezes são casas que se levantam. As palavras por vezes sangram. A vida por vezes é um círculo de transparência. As tuas lágrimas por vezes são densas luas de silêncio. Incendeiam-se os versos que são montanhas repletas de ondas verdes. Os teus olhos são claraboias e pássaros e nuvens suaves. Encontrei sem querer as escadas do esquecimento por onde subia o vento. Nasci entre a penumbra e o vazio, entre o mel e o vinho entre as flores e o desprezo. Nessa altura as casas eram fogueiras de sono onde o mundo se adensava, onde os seres divinos eram animais. Aí a solidão vivia nua, presa nos vidros das janelas, onde tudo era antigo e lento. Onde só sorria a fragilidade da fome. A humildade era minuciosa. O tempo executava uma partitura de nuvens. O negro da noite era imenso. Os poemas eram feitos de feridas. O tempo sufocava. O tempo era um poema concluído. Nós éramos aromas frágeis. Iluminavam-nos as estrelas ténues do céu. Todos amávamos a terra, as muralhas verdes, as letras antigas, o silêncio dos horizontes, as margens do rio, a força das linhas dos segredos, os deuses terrestres, toda a conjunção do pudor, tudo aquilo que caminhava em repouso. Os corpos eram pequenos mas ardentes. O desejo era monótono. O mundo era frágil. Apenas a nudez iluminava a noite. Aprendíamos o sossego no olhar dos que nos rodeavam. As palavras eram as estrelas do desaparecimento. As festas eram lugares que se dilatavam. Tudo recomeçava sem nenhuma relação aparente. Por isso comecei a escrever desesperadamente, a desenhar paisagens fulgurantes, a adormecer imerso em abandonos. Aprendi a ler no livro da ignorância. A viver na sombra. A coagular o tempo. Trabalhei toda a espécie de inocência. As palavras começaram a vibrar e o vazio a falar. Foi quando reparei que deus ficou mudo. E insignificante. E branco como a ausência. E sempre fugidio. A casa ficou então definitivamente vazia e sem fundo. As fábulas adormeceram. Os sonhos transformaram-se definitivamente em vapor. As evidências começaram a ficar inacessíveis. E assim permanecem. A terra é agora um completo ardor de palavras. 

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