Poema Infinito (209): a luz e as sombras
Junto às janelas nasceu hoje mais uma aurora e uma linda árvore coberta de flores. As minhas mãos abandonaram-se no oceano claro do teu corpo. Por vezes ficamos com o rosto de água, o que nos transmite uma pureza líquida. A terra fica nua. As mãos ficam repletas de ternura. Os nossos olhares transmitem paz. Entre as pedras cresce a erva. O amor continua a germinar como se fosse um clarão no meio da tempestade. Toco os objetos esquecidos com os dedos. Tenho saudades de adormecer junto às pedras do rio. As saudades crescem como nuvens. Os poetas inventam ruas. Um louco descobre Deus escondido atrás da sua infinita solidão. O meu rosto recebe a brisa da manhã. Fantasmas patéticos cavalgam olhando as nuvens. As águas do rio sobem. Penso nas pessoas que me viram crescer, nos seus olhos inclinados, nas suas mãos que eram como plantas, na sua vontade de chorar sobre as ruínas do tempo. Essas pessoas eram tristes como cavalos cansados. Possuíam a avidez do desastre, a esperança do gelo, a memória da solidão. Sentiam as raízes das suas casas, reconheciam o timbre das vozes dos seus familiares e amigos, passeavam os animais pelos campos e, por vezes, sem explicação alguma, batiam-lhes excessivamente. Ainda hoje lhes sinto a presença como se fossem bois no campo, ou potros ariscos. Estavam sempre sós na sua simplicidade. Acreditavam governar as manhãs quando davam as mãos aos seus filhos ou quando ficavam nus dentro da sua cor parda. A chuva lavava-os como se fossem animais despojados de pecado. Gravavam as suas emoções nas cascas das árvores mais fortes e solitárias. Evitavam observar os pássaros por causa dos seus voos incómodos. Evitavam sonhar à noite para não se deixarem embrulhar nas utopias. Cresceu entre nós um muro de silêncio branco. Sem nenhuma explicação. As magnólias secaram. O tempo e a desilusão tudo desvendam e tudo atingem. Cada um de nós mora dentro do seu próprio abismo e sorri. As borboletas da adversidade pousam sempre dentro da solidão. As suas lembranças são agora sombras que surpreendem as paredes e as árvores moribundas. A chuva já não os incomoda. Apenas os torna líquidos e transparentes, como se fossem lágrimas misteriosas. Agora acham lógico desprezar o encanto. E questionam os sonhos que são perguntas sem resposta. Desconfiam do dia. Desconfiam da noite. Depois adormecem como pássaros friorentos. E enchem a boca com trepadeiras acordadas. E lavam as suas raízes com enormes silêncios. Assusta-os as bombas e o canto dos rouxinóis. Têm o sono tão leve que sentem as flores a desabrochar no escuro. Temem ser blindados pela luz do sol e ficarem cegos. Agora pertencem por inteiro às coisas mudas. São como peixes naufragados. Rezam mentalmente para que o dia lhes amanheça nas mãos, nem que seja pela última vez. Deitam-se numa cama de musgo e cobrem-se com lençóis de fetos. E assim puros entre ruínas esperam por uma morte serena e desencantada. Sabem que a inércia acabará por devorá-los. Os cardos começam a nascer-lhes nas pontas dos dedos. Os cogumelos começam a brotar-lhes nas articulações. A terra fica repleta de poros. As flores ao seu lado oferecem-se todas as noites ao luar. Antes do último suspiro, tatearão a luz.