Poema Infinito (248): a sombra e a luz
De noite os pássaros transformam-se em medo e a adolescência regressa por momentos como se fosse a pele morta de uma cobra atravessada pela memória. Durmo em cima do sossego e da inquietação. Os espelhos sinalizam a vida. Sinto o profundo medo de te perder. Sou como um veleiro que começa a perder as madrugadas, onde apenas o vazio possui dimensão. Os corpos inocentes continuam a ferir-se no esplendor do ressurgimento. A dor é outra. A cidade mudou de rio. Os amigos dormem dentro do sono dos gatos. As almas dos desaparecidos segredam-me as insónias e soltam os ventos que espelham a visão demorada do sentido da vida. A noite deambula pela melancolia lunar dos corpos. Nos meus olhos surge a sombra dos restos esquecidos, a sua hesitação frágil, a sua humilde aflição, os seus sonhos mortos. As insónias são como as cerejas, atrás de umas vêm outras. E outras. E ainda outras. As fantasias são como sonhos aflitos e densos, naufragando no branco frágil do tempo. As bocas são como raízes espalhando a saliva por todo o corpo. Os teus olhos escondem as paisagens onde antes podia beber a humidade do musgo, onde os dedos magoados percorriam as curvas do tempo, quando corria pelas ruas enquanto o mundo se reduzia à dimensão de um berlinde envolto pelas mãos exíguas dos amigos que tentavam em vão desvendar os segredos noturnos dos pinhais. Foi então quando tentei perceber as palavras e os corpos e a quem pertenciam os choros longínquos dos caminhos, ou o som vegetativo do silêncio, ou as construções que ficaram por erigir. Quando abria os olhos, as flores não estavam no sítio onde as tinha sonhado e o teu rosto desaparecia no fundo do sonho, que era como um mar longínquo e paralisado. Ficaram-me as mãos nos sítios certos. Ao menos isso. Com elas principiei a desenhar a tua luz na terra e a aparar a tristeza das lágrimas mais antigas e autênticas. Comecei a observar os objetos e o tempo que o tempo demorava a devorá-los. Impiedosamente. Deixei de ser marinheiro ou pastor, perdi a sabedoria remota dos ofícios e ignorei deliberadamente o ardor dos corpos estendidos no orvalho e a beleza notívaga que se desprendia do fogo do desejo. O prazer chegou com o aroma denso dos frutos, com a fecunda alegria dos odores a terra e a erva. No entanto, o mundo que me rodeava permanecia inaudível e perdido, como se fosse uma fotografia colocada dentro de uma gaveta. A caneta aprendeu a imobilizar a vida por detrás de cada palavra. O som dos objetos adquiriu novo sentido. Deitámo-nos pela primeira vez sobre o feno, como nos poemas mais cómicos. As primaveras ficaram frescas como o mar e sobre elas estendemos os dedos, imitando as aves. Os astros começaram a deslizar no firmamento enquanto os rouxinóis debicavam o outono dentro das cerejas. As palavras tremeram dentro da sua solidão, como se fossem casas abandonadas. Observei no teu corpo o reflexo da claridade da água, a densidade transparente das memórias, a realidade corrigida pela fantasia, a liquidez das madrugadas. As horas principiaram a afastar-se da sua unidade temporal. Comecei a escrever e a escutar o surpreendente rumor das ondas do mar. Caminhei pela minha adolescência registando todos os meus possíveis futuros gestos. A tua boca ganhou a luminosidade das galáxias.