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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Abr15

Poema Infinito (248): a sombra e a luz

João Madureira

 

 

De noite os pássaros transformam-se em medo e a adolescência regressa por momentos como se fosse a pele morta de uma cobra atravessada pela memória. Durmo em cima do sossego e da inquietação. Os espelhos sinalizam a vida. Sinto o profundo medo de te perder. Sou como um veleiro que começa a perder as madrugadas, onde apenas o vazio possui dimensão. Os corpos inocentes continuam a ferir-se no esplendor do ressurgimento. A dor é outra. A cidade mudou de rio. Os amigos dormem dentro do sono dos gatos. As almas dos desaparecidos segredam-me as insónias e soltam os ventos que espelham a visão demorada do sentido da vida. A noite deambula pela melancolia lunar dos corpos. Nos meus olhos surge a sombra dos restos esquecidos, a sua hesitação frágil, a sua humilde aflição, os seus sonhos mortos. As insónias são como as cerejas, atrás de umas vêm outras. E outras. E ainda outras. As fantasias são como sonhos aflitos e densos, naufragando no branco frágil do tempo. As bocas são como raízes espalhando a saliva por todo o corpo. Os teus olhos escondem as paisagens onde antes podia beber a humidade do musgo, onde os dedos magoados percorriam as curvas do tempo, quando corria pelas ruas enquanto o mundo se reduzia à dimensão de um berlinde envolto pelas mãos exíguas dos amigos que tentavam em vão desvendar os segredos noturnos dos pinhais. Foi então quando tentei perceber as palavras e os corpos e a quem pertenciam os choros longínquos dos caminhos, ou o som vegetativo do silêncio, ou as construções que ficaram por erigir. Quando abria os olhos, as flores não estavam no sítio onde as tinha sonhado e o teu rosto desaparecia no fundo do sonho, que era como um mar longínquo e paralisado. Ficaram-me as mãos nos sítios certos. Ao menos isso. Com elas principiei a desenhar a tua luz na terra e a aparar a tristeza das lágrimas mais antigas e autênticas. Comecei a observar os objetos e o tempo que o tempo demorava a devorá-los. Impiedosamente. Deixei de ser marinheiro ou pastor, perdi a sabedoria remota dos ofícios e ignorei deliberadamente o ardor dos corpos estendidos no orvalho e a beleza notívaga que se desprendia do fogo do desejo. O prazer chegou com o aroma denso dos frutos, com a fecunda alegria dos odores a terra e a erva. No entanto, o mundo que me rodeava permanecia inaudível e perdido, como se fosse uma fotografia colocada dentro de uma gaveta. A caneta aprendeu a imobilizar a vida por detrás de cada palavra. O som dos objetos adquiriu novo sentido. Deitámo-nos pela primeira vez sobre o feno, como nos poemas mais cómicos. As primaveras ficaram frescas como o mar e sobre elas estendemos os dedos, imitando as aves. Os astros começaram a deslizar no firmamento enquanto os rouxinóis debicavam o outono dentro das cerejas. As palavras tremeram dentro da sua solidão, como se fossem casas abandonadas. Observei no teu corpo o reflexo da claridade da água, a densidade transparente das memórias, a realidade corrigida pela fantasia, a liquidez das madrugadas. As horas principiaram a afastar-se da sua unidade temporal. Comecei a escrever e a escutar o surpreendente rumor das ondas do mar. Caminhei pela minha adolescência registando todos os meus possíveis futuros gestos. A tua boca ganhou a luminosidade das galáxias.

27
Abr15

237 - Pérolas e diamantes: o contrário do contrário

João Madureira

 

 

Confesso que sinto prazer em folhear a revista do Expresso, agora em tamanho grandioso, com letra grande, fotos enormes e temas muito bem escolhidos. E o prazer é redobrado porque já me vai faltando a vista e sobretudo a paciência para o jornalismo de trazer por casa que inunda os jornais portugueses.

 

Mas foi no Jornal de Negócios que li algo que me intrigou profundamente, pois não consegui descortinar o protótipo do destinatário, ou destinatários, da respetiva mensagem. Ou, talvez, da figura, ou figuras, inspiradora de tão nefasto retrato.

 

O constitucionalista Jorge Miranda, homem desde sempre ligado ao PPD (atual PSD, quem diria), denunciou o facto de que “o sistema do poder local tem funcionado pior, tem sido um centro de grande clientelismo, da corrupçãozinha, de alguns tiranetezinhos.”

 

Em quem estaria a pensar o professor de Direito que acaba de editar o livro Da Revolução à Constituição? Qual terá sido o figurino, ou figurinos, inspirador de tão grave acusação? O que saberá o senhor e nós desconhecemos? Será mesmo verdade que o poder local é um centro difusor de clientelismo, corrupção e tiranetes? Eu, cá por mim, não acredito. Pelos exemplos que conheço, posso afirmar que o poder local é exatamente o contrário… do contrário.

 

Pela leitura do Expresso fiquei a saber que a venda da TAP vai render ao Estado português cerca de 1,2 mil milhões de euros, que é o montante da dívida da empresa. O negócio promete. Este Governo sabe muito bem aquilo que anda a fazer.

 

No mesmo jornal li que o maior negócio conseguido pelo grupo Lena, do amigo de José Sócrates (que continua preso preventivamente por indícios de corrupção, fraude qualificada e branqueamento de capitais), Carlos Santos Silva (que continua preso preventivamente por indícios de fraude qualificada, branqueamento de capitais e corrupção), na última década, foi o da construção de 50 mil casas na Venezuela de Hugo Chávez, num valor que poderá envolver os quatro mil milhões de dólares. Só pelo projeto, o amigo do ex-primeiro ministro cobrou 15 milhões de euros.

 

Penso então nas palavras que li no livro O Mistério da Légua da Póvoa, de Agustina Bessa Luís: “Não há maior desejo do que o desejo da verdade. Mas ela inspira terror, ninguém a quer ter por hóspede, nem sequer por vizinha.” O que me remete para Maupassant: “Felizes os que se satisfazem na vida, os que se divertem, os que estão contentes.”

 

Boris Cyrulnik, talvez inspirado em pessoas como José Sócrates, ou Pedro Passos Coelho, escreveu que a agressão esconde o desejo de seduzir.

 

Entretanto, tal como os animais, a maioria do povo vive porque vive, sem nunca sentir a mais pequena necessidade de justificação.

 

Da dúvida generalizada passamos à dívida generalizada, sem que nada aconteça, sem que nada suceda aos seus fazedores. A vilanagem continua a fartar-se à grande e à francesa.

 

Já todos percebemos que o afastamento crescente, talvez abissal, entre a população e aqueles que falam em seu nome, os políticos do BCI (PSD/CDS e PS), conduzirá necessariamente a algo de caótico, violento e imprevisível. Entretanto, os portugueses continuam, na sua grande maioria, emersos na apatia e na resignação.

 

Vai sendo tempo de despertarmos para a realidade. É chegada a altura de, porque os partidos do BCI não mudam, mudarmos nós de partido. Continuar a votar nos protagonistas deste estado de coisas é ou rematada estupidez ou masoquismo doentio.

 

 

 

PS – Tchékhov dizia que “a arrogância é uma qualidade que fica bem aos perus” (ou talvez aos pavões que são aves de cauda mais vistosa). Por isso, mais uma vez solicitamos ao senhor presidente da CMC e aos seus distintos vereadores, que aprovem uma auditoria independente às contas da nossa autarquia. Quem não deve não teme.

 

PS 2 – Em nome da transparência, já agora senhor presidente, talvez fosse boa ideia aprovar conjuntamente uma auditoria externa às contas da JF de Santa Maria Maior.

 

PS 3 – Era um ato de coragem redentora, o senhor presidente deixar-se de desculpas de mau pagador e pôr fim ao deplorável espetáculo dos esgotos a céu aberto em Vale de Salgueiro – Outeiro Seco.

23
Abr15

Poema Infinito (247): eternidade

João Madureira

 

 

Persegue-me a luz, o fogo, a própria sombra do sol. Abro as mãos como se fossem asas. A força de voar é agora demasiado intensa. Estremece-me a boca. Os braços unem-se e fecham-se num abraço. Sinto-me como Deus quando criou o dia e a noite. Sofro uma espécie de explosão interior. Encarno de novo a natureza fiel da infância. A aurora extravasa as estações. Os prados chupam a água. Venho de um outro lado, onde o sempre e o nunca não existem. As mãos escondem o teu corpo. Sonhas-te a ti própria. Os dedos fazem e desfazem o mundo. As mãos esvaziam-se. A aurora expande-se. Esquecemo-nos do tempo. Temos pressa de voltar a ser. A nudez apaga-se sempre ao fim da noite. Os corpos ganham forma e consciência. Esse é o seu tormento. A passagem furtiva do amor. Do derradeiro amor. Na cama os corpos tornam-se mais simples e explícitos. Os sexos adquirem a liquidez do universo dando consistência às vagas impetuosas que os nossos corpos desenham. Oriento-me entre os teus seios, as tuas coxas, o púbis. Oriento-me entre a sombra e o fundo provocado pelo calor. Os lábios abertos sobre todo o horizonte da cama. De tarde vamos ficar à espera da tempestade, aguardando o som das abelhas que devastam as colmeias. De seguida vamos atear uma fogueira, mesmo que as mãos nos tremam. Preencheremos o tempo retendo a sua luz e o seu calor e desenhando a palavra amor com os lábios. Brincamos com o gosto de nos enlaçarmos. O desejo foi restabelecido. Tornou-se mais pesado. Olhamos o espaço que se estilhaça, as linhas dos corpos, as bocas húmidas, as línguas projetadas sobre as contínuas vagas de prazer. As mãos adquirem o poder da colheita, os olhos incendeiam-se como relâmpagos, os sexos sublevam-se e ardem como palácios incendiados pela loucura. Os nossos corpos definem a tempestade do amor. Somos duplos nos nossos devaneios. O amor tem a forma do mar. Por isso as mãos se abrem como flores quando sentem os primeiros raios de sol. As horas e as cores adquirem a consciência da finitude. Entre nós dorme a infância com a sua confiança doirada pelos devaneios. Aprendemos tudo e não aprendemos nada. A razão não se esclarece com enganos. Continuamos teimosamente a pensar que o dia é a terra das cores e que as mãos se destinam a fazer carícias. Acolhemos todos os prodígios, todos os mistérios, toda a luz que captamos. A memória regressa como uma forma de salvação. O desejo costuma assaltar-nos quando despertamos. Os seus olhos observam-nos como se fossemos imagens refletidas num espelho. Observamos o tempo a passar com a sua textura etérea e corrosiva. Sinto a carícia da imagem das maçãs do teu rosto, o fiozinho de calor deixado pela tua boca, o sussurro dos teus seios, os teus olhos verdes que nascem na noite como clarões resplandecentes. A memória conta-nos por vezes histórias bonitas como se fossem pássaros que dormem dentro dos nossos sonhos. Nós somos o refúgio da claridade um do outro, o sol que se aproxima dos mantos de neve que refulgem, as janelas que se abrem de par em par, as mãos que descobrem os sorrisos, o estremecimento com que se vê nascer um filho. Quando nos olhamos tudo fica mais límpido e tranquilo. A tua espera é uma forma estranha de libertação. Sobre o teu corpo o meu corpo se estende. A eternidade é esse momento.

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