Acabei de ler o livro de Harold Bloom O Cânone Ocidental, que é, salvo melhor opinião, um tratado de paixão sobre Shakespeare, pois “Shakespeare e o Cânone Ocidental são uma e a mesma coisa”. Talvez ao facto não seja estranha a situação de o autor ler e escrever em inglês, pois é norte-americano.
O meu cânone assenta essencialmente em Cervantes, o autor do magistral Dom Quixote, o livro fundador, o romance dos romances. Talvez porque me identifico com a sua condição e com o facto de ambos sermos latinos do sul da Europa.
Mas antes de ir ao Cânone propriamente dito, deixem que partilhe convosco o facto de ter descoberto a razão, e a inspiração, de a nossa presidente do Parlamento utilizar os estapafúrdicos substantivos com que resolveu espantar os portugueses, tais como “estranhamento” e “conseguimento”. Por incrível que possa parecer, foi a ler a obra de Harold Bloom, o distinto membro da Academia Americana, que utiliza generosamente essas palavras para compor a sua obra, que a presidente do Parlamento aprendeu a embasbacar os portugueses.
HB também emprega verbos como “emurchecer”, ou adjetivos como “parentética”, ou substantivos como “mimese”. Por isso, caro leitor, quando escutar palavras tão abnóxias saídas da boca da nossa segunda figura do Estado, não se espante, trata-se de cultura, da arte preformativa resultante da leitura d´O Cânone Ocidental. Apenas isso e não uma forma de delírio linguístico próximo da loucura ou do “conseguimento” político.
Depois do segredo revelado, posso voltar ao livro de Harold Bloom com a nítida sensação proustiana de que “os verdadeiros paraísos são aqueles que nós já perdemos”.
No fundo, eu partilho a ideia de Bloom de que “desde Dom Quixote todos os romances reescrevem a obra magistral de Cervantes, mesmo quando não têm consciência disso”.
O Cânone nasce do facto de o autor ter percebido que as instituições educativas estão atualmente “atravancadas de idealistas ressentidos que condenam a competição tanto na literatura como na vida, mas o estético e o agonístico são uma única coisa, como nos é dito por todos os antigos gregos”. Pois o “idealismo, relativo àquilo sobre que se faz o possível por não ser irónico, é agora moda nas nossas escolas e universidades, nas quais, em nome da harmonia social e do remedeio da injustiça histórica, estão a ser abandonados todos os padrões estéticos e a maior parte dos padrões intelectuais”.
Vivemos sob o estigma da “ansiedade da influência”, pois a “grande escrita é sempre reescrita ou revisionismo”, porquanto “o que é original nada tem de original”. “Mas nada se consegue por nada”.
Para Bloom nenhum outro escritor, antes ou depois de Shakespeare, nos dá uma ilusão mais forte de que cada personagem fala com uma voz diferente das vozes das outras personagens.
Pedindo ajuda a Harold Bloom, vou tentar explicar porque Dom Quixote é o meu Cânone.
Desde logo porque o cavaleiro da triste figura, apesar de à primeira vista parecer, nem é louco e muito menos é tolo. Pelo contrário, é alguém que joga e se diverte a ser cavaleiro andante numa época em que eles já não existem. Joga de forma intencional, que é bem diferente da situação de loucura ou da tolice. Dom Quixote é mesmo mais voluntarioso do que o seu fiel escudeiro Sancho Pança, pois só lentamente se entrega ao jogo ou ao divertimento propostos.
O que mais me fascina na obra de Cervantes é o facto de o seu personagem se transportar a si mesmo a um lugar e tempo ideais para representar o seu papel, mantendo-se fiel à sua própria liberdade, à sua fantasia, à sua indiferença ao julgamento dos demais, ao seu isolamento, bem como aos limites que lhe são impostos pelas circunstâncias. Isto até ao momento em que finalmente é derrotado, abandona o jogo, adquire a “sanidade perdida”, necessariamente cristã, e morre.
Dom Quixote, como muito bem definiu Unamuno, redimiu-nos, pois a sua “perda de entendimento” foi realizada para nosso benefício, de modo a deixar-nos um exemplo eterno de generosidade espiritual.
Ele enxerga os gigantes nos moinhos de vento e toma os pequenos teatros de fantoches por realidade, mas ninguém o consegue ridicularizar, porque, como diz Bloom, “ele é mais vivo de espírito do que qualquer um de nós. A sua loucura é uma loucura literária…”
Foi com ele que aprendemos como é um Homem de Honra: simples, magnânimo, apaixonado, decidido, verdadeiro.
Nós por cá vamos vivendo a tragicomédia de Beckett, À Espera de Godot. Sempre à espera.
A explicação dada por Beckett para o facto de a Irlanda ter produzido tantos escritores modernos importantes era a de que um país sodomizado pelos ingleses e pelos padres era um país obrigado a cantar.
Para reflexão política deixo-vos com a moral Shakespeariana de Falstaff, segundo Harold Bloom: “A moral que se deve retirar desta representação é que nenhum homem é mais perigoso do que aquele que, sendo desonesto, tem o poder de agradar.”
PS – Água mole em pedra dura…. Na Assembleia Municipal realizada no passado dia 24 de junho de 2015, o senhor presidente da CMC, António Cabeleira, afirmou que “se durante o ano de 2015 não for feita a inspeção que está prevista pela Inspeção Geral de Finanças, no final do ano comprometemo-nos a realizar a mencionada auditoria.” Para que conste, aqui fica o registo público do compromisso e as nossas felicitações.