Veste-se o tempo com o tecido invisível e os dias ficam cobertos com mantos diáfanos de inutilidades. A nudez é o começo de tudo. Povoamos a demora com a morte que nos há de despir totalmente. A paisagem devolve-nos a glória silenciosa da angústia, esse eco calmo da vontade. O mar amanhece possuído pelo seu tamanho. A sua vontade é feita de sal. Essa é também a sua fatal necessidade. Somos animados por uma estranha inquietação. A terra transforma-se numa aventura apetecida. Os olhos são por vezes profanados pela paisagem, os seus devaneios são indiscretos. O prazer devora a acidez do desejo. Sinto-me como um pomar varejado em pleno outono, com os versos caídos a meus pés. Saboreio a sua jovialidade antes que apodreçam. Já ninguém os apanha. Durante o inverno ruminarei a amargura que me ficou. A minha infância continua em hibernação. As bruxas e as fadas velam-me o sono. O passado respira docemente. Custa-me respirar no presente. Continuo a roubar fruta doce e fresca no pomar do tempo. As sementes são de outro futuro. Cheira a terra lavrada e a chuva. A sombra que nos cobre é prenúncio de nova luz. Desenterro do tempo a imagem do que agora sou. Algum dia há de ser um novo dia, pois dizem que o tempo se renova. Vivo numa espécie de serenidade inquieta esperando pela próxima alvorada. Esta luz de agora é monótona e cansada. O tempo faz os seus danos ao fim de cada dia. Os meus versos são o silêncio do avesso. O trovão precede a trovoada. O purgatório é indefinido. As criaturas são alheias e, mesmo não parecendo, mudam constantemente de caminho. A seiva canta nas árvores, a tarde olha o poente, as horas parecem distraídas, a solidão é outra forma de desassossego. O meu jardim continua a conquistar o sol da vida. Parece outra forma de recomeço. Limpo o suor do rosto e continuo a atravessar os anos. As fábulas mais célebres transformaram-se em pesadelos dentro do sono. E dos sonhos. Até a eternidade se transfigura num instante e dorme na tarde calma. O poema continua a percorrer o mundo íntimo das coisas, a agitação das folhas do silêncio, a evidência das vozes, a ilusão da madrugada, a fome dos cavalos quando avistam os prados. A hora anterior devora a hora seguinte. Colho circunspecto a flor do teu sorriso e por instantes tudo se transfigura à minha volta, o céu fica mais azul e nele navegam as aves. Os dedos das mãos transformam-se em pétalas. Os poemas erguem-se difundindo uma espécie de luz inconformada que só os loucos conseguem enxergar. Continua presente o jogo contra o destino, o desafio da liberdade humana, a consciência da necessidade dos atos arriscados. Batidas pelo vento, as cinzas dos meus antepassados ajudam a crescer as sementes do que está para vir. As suas raízes continuam profundas conservando a certeza do esquecimento. Os insetos abrem as suas asas à luz. Também eu tive os olhos brilhantes de inocência, agora guiam-me no sentido do entardecer. Logo chegará a noite. A luz do tempo que está para vir é mais adivinhada do que certa. A minha inquietação pousa sobre a madrugada. Vou tentar adormecer de novo. A inquietação continua serena. A inquietação continua. A inquietação. A puta virgem da inquietação.