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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Nov15

267 - Pérolas e diamantes: o estado das coisas

João Madureira

 

 

Portugal é um país invejoso. Repare-se por exemplo no tom pomposamente difamatório e hipócrita que tantas vezes carateriza a cobertura televisiva de determinados acontecimentos, ou interprete-se o quão satisfatório é para as pessoas verem os outros portugueses serem humilhados.

 

Tudo isto originado e produzido pela televisão. Umas vezes em direto e outras em diferido. De facto, a vida dos portugueses tem o formato e a qualidade dos folhetins televisivos. É artificial e quase sempre medíocre.

 

O jornalista, e ensaísta inglês, Malcolm Muggeridge referiu esta triste evidência quando se deu conta que “a televisão não foi inventada para tornar os seres humanos desprovidos de conteúdo, mas é uma emanação da vacuidade deles”.

 

Os chineses possuem uma fórmula simpática e inteligente de abençoar as pessoas dizendo: que possas viver em tempos desinteressantes.

 

Quando oiço a gente que pertenceu ao famigerado governo de Passos Coelho e Paulo Portas falar do sucesso da sua governação lembro-me sempre de um meu amigo que quando alguém, muito compenetrado, lhe disse isso se riu tanto que caiu do sofá. 

 

Quão admiravelmente eles argumentaram, e argumentam, baseados em factos errados e respondendo sempre num tom que é constituído por duas partes de brincadeira e apenas uma parte séria.

 

Tristram Shandy conta que os antigos Godos da Alemanha se fixaram primeiro na região entre os rios Vístula e Oder. Depois assimilaram os Hérulos, os Rúgios e outros clãs dos Vândalos. Possuíam estes povos o sensato hábito de debaterem sempre duas vezes as coisas de importância para o Estado.

 

Uma vez faziam-no sóbrios e outra bêbados. Sóbrios para que não lhes faltasse prudência e bêbados para que não lhes falhasse o vigor.

 

Dessa forma também agia o pai do opinativo Tristram. Sempre que alguma questão difícil e de maior gravidade necessitava de ser resolvida na família, e para a qual fosse necessária ao mesmo tempo grande sobriedade e grande vigor e determinação, ele reservava a noite de um domingo de cada mês, bem assim como a noite de sábado imediatamente anterior, para a debater na cama com a sua esposa. Desta forma gerou o hilariante Tristram.

 

A isto chamava o senhor, um tanto humoristicamente, os seus leitos de justiça.

 

Mas porque duvidava um pouco da bebida, o progenitor de Tristram Shandy adaptou o procedimento, reservando no entanto toda a filosofia a ele inerente.

 

Em todas as discussões delicadas, quando previa que não conseguia dar um passo sem correr o risco de ter “as suas senhorias, ou as suas reverências” a caírem-lhe em cima, escrevia tudo com a barriga cheia e depois corrigia em jejum. Ou então escrevia em jejum e só depois corrigia com a barriga cheia.

 

Quando escrevia de barriga cheia, fazia-o como se nunca mais tivesse de escrever em jejum enquanto vivesse, isto é, livre das preocupações e dos terrores do mundo.

 

Mas quando redigia em jejum, a história já era completamente diferente, pois manifestava pelo mundo toda a consideração e respeito possíveis.

 

Também eu manifesto pelo mundo toda a consideração e respeito possíveis e “mostro-me dono de um quinhão tão grande (pelo menos enquanto dura o jejum) dessa virtude subalterna da discrição como os melhores de entre vós”.

 

Penso que tal procedimento “vos há de fazer bem ao coração. E à cabeça também, contando que o entendais”.

 

Os políticos que já lá vão, sobretudo Cavaco Silva, mas também o Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, fazem-me lembrar Proteu, o Velho do Mar da mitologia grega, que tinha o dom da profecia, mas que mudava de forma sempre que o interrogavam, para evitar responder.

 

Eles são todos tão modestos que dão pena. Tal como o pai de Tristram, vou terminar recorrendo à prolepsis (resposta antecipada a um argumento), referindo que a modéstia –  tal como a fome, a sede, ou o sono –, não é boa nem má, ou vergonhosa ou outra coisa qualquer. É apenas uma forma hábil de se referirem a Diógenes.

26
Nov15

Poema Infinito (278): movimento perpétuo

João Madureira

 

 

A vida repousa sempre num novo movimento. Criamos altura para observarmos a origem das tentações. As palavras fermentam e os corpos acendem-se. Medimos a palmo o tempo e a irrealidade. As vibrações dilatam-se e expandem-se dentro de uma atmosfera luminosa. É tempo de presságios e leis assombrosas. Os bárbaros acendem as tochas e iniciam a sua espera. As mãos trabalham as variações terrestres. Com séculos de atividade ainda ninguém foi capaz de remover as estrelas. É chegado o tempo de libertar os génios. As mãos do conhecimento escrevem o nascimento de uma nova existência, a linguagem telúrica dos vulcões, as marcas do amor e da morte, o olhar dos animais que tudo percebem, as noites luxuosas, os tanques transbordando de tédio e eternidade, as estações da perda, as lamentações imperfeitas. Tudo isso nos pede um adeus. A vida macera as criaturas, dá-lhes alimento e oxigénio. Sobe-lhes a temperatura. A natureza depõe os restos da chuva a nossos pés. Os álamos escondem o sussurro da voz dos deuses. O reino breve do esplendor perfuma as paixões e envelhece o tempo. Os rostos são como precipícios fátuos. Chegamos a finisterra. Aqui a paisagem foi podada com golpes de violência. A exposição dos promontórios vai de extremo a extremo. Completamos toda a indiferença da matéria, a sua perdição, a sua inocência, o advento das epifanias divinas. De repente a terra termina. O esplendor do mar sustem-nos e alimenta-nos. No cerne das ilusões está sempre a distância. O sol paramenta a terra com igualdade. A nossa respiração fica quase exata. A inocência coloca sobre as costas dos incautos o esplendor da perdição. Os cumes desorientam-nos. Volta a chover. Os caminhos manifestam-se de uma maneira estranha. São cada vez mais desconformes. A água banha o seu sossego e a precipitação das plantas. Durante a viagem somos surpreendidos pelo movimento aparente da astronomia. O céu fica repleto de ícones. Os homens aprendem o princípio da incerteza. A voz dos deuses perde a sua luz excessiva. A existência fica um pouco mais branda. Sobram-nos os vestígios da memória. As fábulas falam-nos da perda, do roubo das cores, da inversão gestual dos animais, dos trejeitos da mentira, de todos os sistemas da ilusão, da indigência recorrente do tempo, da exatidão do conhecimento. Tudo o que quer permanecer oculto está à superfície, mesmo os anjos que se autoiluminam e que praticam em si o êxtase sagrado da amputação. As suas asas estiram-se em movimentos negros. São a encarnação dos seus próprios gestos. Os seus olhos dilatam-se para observar e reter os últimos testemunhos da encarnação divina. Os corpos movem-se na direção de quem os ama. Depois dos sobressaltos desce sobre nós a tranquilidade. Bem-aventurados sejam os ciclos lunares, os eclipses, a música das festas, o ar fresco da noite, as mãos enganadoras do delírio, a impaciência das sombras originadas pelo álcool, as metáforas dos ritmos de jazz, a melancolia das palavras mais tímidas, o instinto de inspirar e expirar, o silêncio do tempo, as emoções exatas, e até as inexatas, a alegria dos rapazes e das raparigas sobre as ondas, a posição do sol, a passagem do vento, os corpos densificados pela aurora, o início e o fim de cada poema, o som da ramagem das árvores, o princípio que origina a luz da primavera e a decantação de todas as leis humanas. Ficamos agora à espera de uma outra espécie de paixão. A voz do tempo apura os gestos mais simples. Um novo conhecimento exige sempre uma nova cerimónia.

23
Nov15

266 - Pérolas e diamantes: o medo e o sonho dos outros

João Madureira

 

 

Vivemos tempos de violência e desnorte. As divisões tornam-se de novo evidentes e muito sérias: direita contra esquerda e islâmicos contra cristãos.

 

O preocupante é que parece não existir tempo para refletir, pois temos de agir agora. Muitos pensam que não é possível fazer nada, apenas nos restando esperar sentados o desenrolar dos acontecimentos.

 

Este caminhar da Civilização Ocidental em direção ao Último dos Homens já foi, segundo Slavoj Zizek, diagnosticada por Friedrich Nietzsche, pois considerava que o ser humano é uma criatura apática sem grandes paixões nem grandes lealdades, incapaz de sonhar, cansado da vida, não tendo coragem para assumir os riscos, limitando-se à procura do conforto e segurança, descobrindo a felicidade pelo piscar dos olhos.

 

Aí está pois a política do medo com a sigla de S Z: “Teme o teu próximo como a ti mesmo.”

 

Atualmente renunciámos às grandes causas ideológicas, apoiando e elogiando a administração eficaz da vida, ou pouco mais do que isso.

 

Segundo o psicanalista e filósofo nascido em Liubliana, esta “atitude administrativa” significa que a gestão especializada da nossa vida tem de ser despolitizada, socialmente objetiva e com a coordenação dos interesses ao nível zero da política, pois a única forma possível de introduzir a paixão nesse campo, de mobilizar ativamente as pessoas é através do medo, o elemento constituinte e fundamental da subjetividade de hoje.

 

Essa política do medo, como não podia deixar de ser, centra-se na defesa contra o assédio ou a vitimização.

 

A correção política, na sua forma neoliberal, é o paradigma da política do medo, pois assenta na manipulação das grandes massas populares: “É a união aterradora de pessoas aterradas”.

 

A tolerância neoliberal ensina que o “outro” está muito bem onde está, lá nos bairros suburbanos, desde que a sua presença não seja intrusiva. Ou seja, desde que ele não seja efetivamente “outro”, mas uma extensão mal disposta e provavelmente andrajosa de nós mesmos. Tem de adaptar-se aos valores culturais que definem a sociedade que os acolhe e perceber a máxima: “Este país é nosso. Ama-o ou deixa-o”.

 

O que daí resulta é o nosso direito a não ser assediados, a permanecer a uma distância segura dos outros.

 

Mas as nossas sociedades democráticas são extremamente vulneráveis à violência, como o provam os atentados de Paris.

 

O inimigo anda espalhado por aí, mas, como disse Wendy Brown, “um inimigo é alguém cuja história não se ouviu”.

 

Hannah Arendt tinha razão: “A experiência que temos das nossas vidas pelo lado de dentro, a história que contamos a nós próprios sobre nós próprios dando conta do que fazemos é fundamentalmente uma mentira – a verdade reside no exterior, naquilo que fazemos.

 

Por isso é que a consciência ética ingénua dos terroristas não pode deixar de nos surpreender, pois estas pessoas que cometem terríveis atos de violência contra os seus inimigos são pessoas calorosas e manifestam mesmo uma humanidade ativa relativamente aos membros do seu próprio grupo. 

 

Os fanáticos islamitas não são propriamente gente inculta. Muitos deles são até mentes brilhantes, como é disso prova irrefutável o manuseamento de ferramentas tecnológicas altamente sofisticadas.

 

Mas eles preferem esquecer as humanidades, sujeitando-se a um processo de esquecimento. Zizek chama-lhe denegação fetichista: “Sei, mas não quero saber o que sei, e por isso não sei”. Ou melhor: “Sei, mas recuso-me a assumir inteiramente as consequências desse saber, pelo que posso continuar a agir como se não o soubesse”.

 

Segundo o filósofo e psicanalista esloveno, a divisa cristã: “Todos os homens são irmãos”, significa que aqueles que não aceitam essa fraternidade não são homens.

 

Dá depois o exemplo da mobilização deste paradoxo por Khomeini quando, numa entrevista concedida a periódicos do ocidente, pretendeu demonstrar que a revolução iraniana era a mais humana de toda a história: os revolucionários não tinham liquidado uma única pessoa.

 

Um jornalista surpreendido perguntou-lhe então sobre as execuções capitais noticiadas pelos meios de comunicação. O líder espiritual, e também temporal, iraniano contestou serenamente: “Esses que foram mortos não eram homens, mas cães criminosos”.

 

Talvez a resposta a esta onda de intolerância e violência esteja no amor.

 

Lacan definiu que “o amor é dar-se alguma coisa que não se tem…”. Slavoj Zizek completa a definição do modo seguinte: “…a alguém que não a quer.”

 

Mas uma coisa inquietante sim sabemos. O filósofo francês, nascido em Paris, Gilles Deleuze, bem avisou: “Quem se deixa apanhar pelo sonho do outro está lixado.”

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