Poema Infinito (283): tempo descontínuo
Proclamam os ventos que os homens não dormem nesta noite. O filho pródigo regressou a casa muito assustado, mas enganou-se na porta e não conseguiu subir as escadas. As suas terras foram engolidas pela enxurrada. As flores dos vasos das varandas murcharam. Na cidade, as praças ficaram vazias e as pombas foram perseguidas pelos mendigos. O fogo da lareira crepita vagarosamente. O pão endurece no armário. A água para o caldo já ferveu várias vezes. Não tarda que o dia se apague. Os bolos perderam a doçura. Os suspiros das mulheres são cada vez mais profundos. O rio continua a guardar o segredo dos nossos passos. A floresta é um labirinto. O seu chamamento é triste. Já ninguém acode à aflição das mães. As palavras atrapalham-se nas suas bocas. As suas memórias adormecem. As arcas guardam os antigos poemas engrunhados pelo tempo. Por vezes o sol adormece nos telhados. Os domingos ficam impregnados do cheiro do linho e da lã. Os sonhos são sonhados do avesso. Dormem dentro de nós. E nós dormimos dentro da tarde. A idade cuida dos nossos gestos mais pequenos. Os quadros antigos ficam cada vez mais solitários. Neles, os familiares mais antigos apertam as mãos para se acostumarem ao inverno permanente. Os seus olhares possuem a cor da luz da lua. O crepúsculo instalou-se nas paredes da casa. A vida doba a sua meada e espera. Os animais afastam-se das suas crias. Os avós contam histórias aos netos deliberadamente carregadas de datas, nomes e circunstâncias. Evitam os detalhes, a intranquilidade dos lugares, as personagens estranhas, os desejos, os demónios, o feitiço dos corpos, os gestos hesitantes, o símbolo do tempo que guarda as lembranças mais vagas e desprendidas. Por vezes perdem o sentido do tempo e tateiam às cegas o seu destino. Pela manhã, os corpos abrem-se como se fossem flores tranquilas absorvendo a luz azul e demorando-se na tranquilidade momentânea de um afago. As memórias chegam carregadas de espectros. Os amantes acreditam poder curar os seus desejos com palavras e infusões de malmequeres. Vivemos na época das incertezas. As mulheres gordas que pesavam dentro dos quadros dos pintores clássicos deram-se conta que são figuras transitórias e puseram-se a fazer dietas rigorosas e a praticar exercício físico. Agora são como livros brancos. Vivem em silêncio, sem memória, como formas incertas que adormecem à sombra doentia das figueiras. Os seus olhares são tão aleatórios como as estrelas atordoadas pela distância percorrida e pela que lhes falta percorrer até se extinguirem. É assim a eternidade, uma espécie de neblina cintilante acampada num vale de sombras onde o céu adormece e tudo espera. Aproxima-se um tempo descontínuo. Os caminhos levam-nos para longe. Os lugares são apenas lembranças viradas a poente. Os frutos continuam a crescer devagar, demorando-se no desenho redondo da forma. Tudo tem o mesmo nome. Alguém assobia uma velha canção triste. O vento ainda assobia do mesmo lado da casa. O medo e as sombras ainda descem as paredes da mesma forma. Mas eu agora sou outro. As palavras com que invoco a vida demoram cada vez mais a regressar ao seu local de partida. As noites dobram-me o sono. Sonho com as viagens que nunca farei. Eu sou o filho pródigo que nunca saiu de casa, apesar de ter comprado cavalo, sela, estribo e esporas. As razões de um possível regresso interromperam-me sempre a vontade de partir. Aplaudo a compaixão, mas os meus deuses são efémeros. A divindade é uma outra forma de conspiração.