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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

28
Abr16

Poema Infinito (300): o avassalador movimento circular

João Madureira

 

 

Na ilha lendária de Nevoaelod, os amantes desfrutam apenas dos dissabores. São infelizes dentro da sua adequada felicidade. Os poetas enforcam-se com os próprios versos. Outros contam histórias sobre a reputação dos deuses do Olimpo. As imprecações dos poetas possuem o seu próprio valor coercivo. Sem eles, os deuses são como náufragos levados para o País das Lendas. Nas terras proibidas, os poemas são abandonados em pleno campo, os guerreiros estendem-se sobre os seus escudos e fertilizam as mulheres. Os poetas reagem eufóricos contra estes sublimes lugares-comuns. Então os deuses lutam entre si e expulsam do santuário os mais fracos, obrigando-os a uma expiação suplementar. Os poemas transformam-se em hinos de guerra, em canções eróticas, em cânticos de beber, em hinos flexíveis e tolerantes, em sátiras mordazes, em longos fragmentos do apocalipse, em títulos de glória e desaparecimento. Por fim, os guerreiros, os deuses e os poetas bebem vinho e comem pão ázimo apoiados nas suas lanças feitas de aço, relâmpagos e palavras. As deusas e as esposas trazem nas mãos lindos ramos de mirto e com eles se comprazem. Os seus lindos cabelos cobrem-lhes os ombros. A sua sombra coincide com o seu destino. Os versos antigos dormem sobre as pátrias adormecidas, sobre a sua moleza, sobre o apelo às armas, sobre a nobreza fastidiosa e concisa da literatura guerreira. A saudade voltou a morrer dentro do tocador de flauta. Já não consegue tocar as elegias amorosas. As estações floridas abeiram-se do seu término, as casas ruíram, os frutos duram apenas um instante. Nos olhos do poeta raparigas seminuas dançam tornando os seus poemas estéreis. Sonha que os exércitos antigos passam as charruas sobre as cidades conquistadas. E que entoam lindas canções de marcha ritmadas pelo excitante som das trombetas. Toda a glória é póstuma. Não há guerras justas. Ninguém grita de alegria quando trespassa de lado a lado o peito do inimigo. O idealismo já não existe. A sua força é outro lugar-comum. O manto brilhante da juventude dura apenas um momento. Os poetas escrevem versos destinados a serem cantados e dançados pelos participantes nas Gimnopedias. A nudez dos rapazes e das raparigas é uma poderosa descrição da natureza selvagem da sedução. A grandeza do bem e do mal vem dos homens. O pecado também. Já ninguém acredita em castigos divinos. Nos grandes empreendimentos é difícil agradar a todos. Levantam do chão as aves migratórias. O movimento das suas asas pode ser avassalador. Os deuses da modernidade arrancam definitivamente as flores do caminho. A atração é uma outra forma de insatisfação. O mundo continua a organizar a sua complexa forma de desordem. Os poetas vendam agora os olhos, reclinam as suas cabeças sobre as colunas dóricas e pensam num tempo artístico possuído pela sintaxe e esgotado pela gramática. Beijam então a sinfonia a que pertencem. Escondem os versos dentro das suas próprias emoções. Aprenderam a chorar assim. As minhas mãos mexem agora na tua galáxia. Dentro dela está o teu corpo. O círculo de êxtase é vicioso. Daí a sua perfeição geométrica.

25
Abr16

287 - Pérolas e diamantes: o amor e a retórica

João Madureira

 

 

Elias Canetti escreveu que ciência e verdade são conceitos idênticos. Quando uma pessoa se aproxima da verdade afasta-se dos homens. A vida quotidiana, qual auto de fé, é uma teia superficial de mentiras.

 

A vida ensina-nos, e nós costumamos aprender, a identificar-nos com todo o tipo de pessoas. Depois habituamo-nos. Apanhamos o gosto desse vai e vem perpétuo que nos incita a confundirmo-nos com as personagens que nos agradam.

 

Há homens que se deixam invadir por aquela sensação maravilhosa de euforia apenas conhecida por aqueles que se dão ao luxo de adquirirem confiança depois de se terem assegurado contra qualquer tipo de deceção.

 

Para quem o tem, o carácter determina até o aspeto físico. Eu sou um homem alto e magro.

 

Quem visitar um santuário no Japão com toda a certeza que verá à beira dos caminhos crianças agachadas junto de muitas gaiolas com pássaros cativos. As aves são previamente adestradas a baterem as asas e a alvoroçarem-se com uma cativante e expressiva agitação de trinados e gorjeios.

 

Os peregrinos budistas que visitam os templos compadecem-se delas e salvam-nas pensando dessa forma salvar as suas próprias almas. Em troca de algum dinheiro, as crianças abrem as portas das gaiolas e libertam os pássaros. Resgatar animais é por lá um costume enraizado.

 

Não lhes importa minimamente que ainda antes de chegarem ao templo, os passarinhos adestrados voltem a ser novamente engaiolados pelos seus donos.

 

O mesmo pássaro chega a servir centenas ou mesmo milhares de vezes como objeto da piedade dos peregrinos.

 

Todos sabem muito bem o que se passa logo após voltarem as costas. Depois de cumprido o ritual, o destino dos animais é-lhes indiferente.

 

A nossa espiritualidade vive de rituais. As almas, mesmo furiosas, estão vazias. Habituamo-nos a falar de princípios como os cegos falam das cores.

 

Canetti escreveu que até os homens mais fortes provam a si mesmos a sua integridade fazendo rodeios.

 

Já Gershom Wald, o personagem culto e torturado de Judas, de Amos Oz, considera que a desconfiança, a mania da perseguição e mesmo o ódio humano são muito menos destrutivos do que, por exemplo, o amor. “O amor do género humano tem um sabor antigo a rios de sangue. A meu ver o amor gratuito é muito pior do que o ódio gratuito: os que amam a humanidade inteira, os paladinos da redenção do mundo, aqueles que em cada geração se erguem para nos salvar sem que alguém nos salve deles, esses são justamente…”

 

Não, não tenham receio de contradizer o escritor. Antes pelo contrário, ele anima-se quando discordam dele. Até o podem morder, mas desde que sejam mordidelas a brincar. Nem tudo é para ser seguido à letra. Senão éramos todos ou escritores ou cães. Valha-nos Deus. Está na hora de bebermos um chá.

 

Se calhar está também na hora de escrever um poema novo. O problema surge quando tentamos fugir de um cão raivoso e encontramos um lobo esfaimado.

 

Termino citando o sábio e amargurado israelita Gershom Wald, que perdeu o seu filho único na guerra contra o inimigo palestiniano.

 

“Eu, meu caro, não acredito no amor universal. A capacidade de amor é limitada. Um homem pode amar cinco homens e mulheres, talvez dez e, às vezes, mesmo quinze. E mesmo isso, só raramente. Mas se alguém me disser que ama o Terceiro Mundo no seu todo, ou a América Latina, ou o sexo feminino, isso não é amor, mas retórica. Pura demagogia. Palavra de ordem. Não fomos feitos para amar mais do que um punhado de pessoas. O amor é um acontecimento íntimo estranho e contraditório.”

 

 

PS – Jesus e todos os seus apóstolos eram judeus e filhos de judeus. No entanto, na imaginação popular cristã, o único que ficou marcado com o ferrete do judaísmo – e por isso mesmo como representante de todo o povo judeu – foi Judas Iscariote. Quando os enviados dos sacerdotes e os guardiões do Templo vieram prender Jesus, todos os apóstolos se assustaram e, temendo pelas suas vidas, dispersaram rapidamente. Só Judas permaneceu.

21
Abr16

Poema Infinito (299): o envelhecimento das palavras

João Madureira

 

 

A tarde, por vezes, destrói-se contra a natureza. O seu coração quotidiano entrega-se à salvação. O vento despede-se dos sons da temperança. As sombras ficam gigantescas. As tuas pálpebras descaem lentamente em busca de um momento de reflexão. Mesmo assim, a íris incendeia-se como se fosse um grito. No bosque crescem os sobressaltos. As nossas vozes são como labirintos. Temos as bocas doridas por pronunciar tantas palavras inúteis. A gratidão dos pobres é tão proveitosa como os relâmpagos. O seu silêncio é mortal. A luz da música é mais cruel do que muitas palavras. Também elas envelhecem, enchem-se de rugas. Ficam estranhas. Pela porta das traseiras entram os meses, uns atrás dos outros, atrapalhando-se. Ocupam os seus lugares nas litografias do salão. No escano repousam as memórias. As ilusões são tão destruidoras como as guerras. A sua sede é oblíqua. A voz do tempo soergue as folhas ainda verdes que implodem no chão. Também eu sonhei navegar. A natureza espalha sobre nós o manto da finitude. Da honra antiga restam apenas alguns destroços. A noite deposita em mim uma nesga ínfima de ternura. Agora meço as distâncias a palmo. Os dias avançam em meu redor. Quanto mais me movo mais estático me sinto. As vozes aceleram o tempo. Os fantasmas habitam de novo as casas. As rãs ouvem os meus passos e saltam para dentro da água. Pergunto à paisagem porque mudou sem me avisar. Demorei muito tempo a identificá-la. Mesmo assim não tenho a certeza de que seja a mesma. O seu espaço interior está mais dilatado. Só o eco da sua voz é idêntico. O vento faz cantar as folhas nos ramos mais altos das árvores mais altas. Junto ao muro, um homem aceita e acarinha a sua solidão. Os seus olhos estão rasos de lágrimas. Não consegue distinguir se chora, se rejubila. Apesar da forma da sua manifestação ser idêntica, a sua memória é completamente distinta. As flores envelhecem como antigamente, apenas os eletrodomésticos o fazem de maneira distinta. O espelho devolve aos corpos a sua noite mais imediata. As horas são mais precisas e mais curtas. Os rostos impregnam-se de pequenas liturgias. Mesmo a velocidade dos deuses é crepuscular. Nasce-nos no corpo um desejo surdo. O voo germina dentro das asas dos pássaros. As crianças envelhecem olhando o mar. O mar aborrece-se com as suas ondas. O velho sentido da oportunidade já não consegue regressar. É bom acordar dentro da névoa e sentir que a luz a devora. Deixamos cair as palavras pensando que podem nascer de novo. Os campos têm sempre razão. Neles, as palavras conquistam a calma e espalham o verde. As paisagens ficam mais ácidas. As mãos obedecem a outra lógica. A ternura sobe devagar sobre os corpos. Os gestos ficam mais inteiros, as mãos mais aflitas, as flores mais soturnas, os olhares mais lisos. O teu olhar salta por cima dos muros do tempo. As horas ficam penduradas nas cordas como roupa a secar. As memórias invocam outras memórias, a saudade fica mais inteira, os sonhos emouquecem dentro de nós. Os sustos estão fechados à chave dentro das gavetas. O silêncio nos quartos ficou mais agressivo. A linguagem somática é quase minimal. Os corpos transformam-se em portas, as bocas em livros, a alegria em fadiga. As palavras já não dançam, converteram-se em pequenas ilhas iluminadas pela paciência.

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