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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

18
Abr16

286 - Pérolas e diamantes: felizes aqueles que…

João Madureira

 

 

Parece que estamos sempre a escolher entre votar num mentiroso ou num inconsciente.

 

Creio que não existem opções razoavelmente válidas para nos governarem. É a tal história de estarmos constantemente a partir do zero e a voltar, como nos jogos, sempre à casa da partida.

 

Então e o futuro? Qual futuro? O futuro pode ser tão cortante como uma lâmina.

 

A luta de classes transformou-se em fumo, diluiu-se nesta insolvente democracia que tem funcionado à custa de suplementos vitamínicos, aspirinas e penicilina.

 

Vivemos com um pé em casa e outro no hipermercado, indo por vezes aos cafés ou aos bares e também aos concertos pagos pela autarquia e realizados na praça central.

 

Todos falamos ao mesmo tempo com a intenção de sermos ouvidos. As nossas vozes misturam-se como nos comícios ou nos jogos de futebol.

 

Houve tempos em que tínhamos dificuldade em distinguir quem estava em cima e os que permaneciam em baixo. Nos tempos do Cine-Teatro era fácil. Havia os que iam ver os filmes para a tribuna e os que os viam da plateia.

 

Até os bares dividiam as pessoas: chá e bolinhos para uns e vinho e sandes para os restantes. 

 

Agora está tudo enredado, confuso, dissolvente. No entanto, reina uma certa ordem social, que tem muito de misterioso.

 

Nestes últimos anos surgiu uma nova ordem que se tornou bem visível, com os níveis superiores e inferiores bem definidos.

 

Alguns transportam satisfeitos os sacos normalizados repletos de compras e cumprimentam-se sorridentes e saciados às portas dos centros comerciais. Outros contam os tostões para comprar o pão, o leite e o arroz. E há ainda outros que mexem e remexem nos contentores onde os empregados das grandes superfícies depositam as embalagens fora de prazo, as frutas e os legumes com aspeto pisado e os pastéis e croquetes industriais caducados.

 

 

Há também aqueles patuscos que dizem que na província é que se vive bem. São os que moram nas grandes urbes e nos visitam, nostálgicos, nos períodos do Natal, da Páscoa e na Feira dos Santos.

 

Vêm até cá, manjam as rabanadas, o folar e o fumeirinho e rumam outra vez para onde construíram o ninho.

 

Também há os que, como eu, caíram na esparrela de acreditarem no que lhes diziam os iluminados. E por isso aqui ficaram, agarrados à província, às memórias e às fragas.

 

O enganador John Huston, que por isso fazia filmes, dizia: “Felizes aqueles que só tiveram uma aldeia, um deus e uma casa”.

 

Por esse mundo fora reina a guerra, uma guerra de todos contra todos e de tudo contra tudo. Muita coisa se mudou à base da bala e da bomba. O pior é que no fim de tanta mudança, as coisas continuam mais ou menos iguais.

 

Afinal os fins não justificam os meios.

 

Bem vistas as coisas, nem valem a pena.

 

Afinal todas as grandes cidades são iguais. O mau cheiro de tudo aquilo que apodrece é idêntico. A publicidade é a mesma, as cadeias de distribuição são as mesmas e as grandes superfícies estão decoradas da mesma maneira. Parece que, apesar de nos deslocarmos de um lado para o outro, não saímos do lugar.

 

Ainda me lembro, ainda todos nos lembramos, do cheiro a erva molhada, a hortelã, a salsa e do sorriso limpo das pessoas e de se ter tempo para o convívio, a amizade e a solidariedade.

 

Ainda me lembro, ainda todos nos lembramos, da necessidade de estarmos com amigos.

 

Hoje, os amigos são mais raros do que o lince da Malcata.

 

Atualmente conhecemo-nos todos uns aos outros, mas não somos amigos uns dos outros.

 

Lá diz o poeta, cantamos sempre o que perdemos.

14
Abr16

Poema Infinito (298): a velocidade do esplendor

João Madureira

 

 

A paisagem fecha-se sobre nós como um punho. A morte combate-se de noite. Os homens acordam sem memória, cansados dos sonhos, adivinhando um nascer do dia minucioso. A voz rouca tirita possuída por um frio silencioso. Prolonga-se a mágoa. Tudo se passa em silêncio. As palavras são outro tipo de gestos. Abre-se o passado, desenha-se o declínio. O rejuvenescimento é outra forma de defeito. As mães ficam cristalinas como um campo de trigo. Elas apagam o frio. O seu vigor transforma-se em flor e depois novamente em raiz. Os frutos envolvem o horizonte. O que era verde, verde permanece. As crianças encenam novos jogos, riem, os seus cânticos soam alto, jogam ao anelzinho, coloram o mundo. Os animais permanecem velozes. O ferro dos arados brilha, as sementes prometem germinar. As gotas de chuva caem tépidas do céu. As flores dão claridade aos olhos. Caminhamos para diante, a estrada é leve. Tudo brilha. A paixão ganha novo rosto. O tempo adquire outra dimensão. Os sonhos acumulam-se. As janelas iluminam-se. As mãos estendem-se. A perfeição continua por explicar. A sua forma multiplica-se pelas ruas, alumia as folhas, torna-se maior que o sol e mais leve do que uma pena. O teu olhar está reduzido à sua expressão mais simples, nele há barcos, poucas palavras e algum frio. O céu embala as ondas. O esplendor ganha outra velocidade. A luz procura os nossos perfis. A noite vai de um lado para o outro sem se dar conta. Nela, os gritos são narrativos. Toda a desordem é geográfica. Organizo todas as possibilidades de te amar. Repito a experiência durante vários dias. As ondas entram pelo quarto dentro. A realidade é cada vez mais irreal. Toda a escrita é uma espécie de equívoco premeditado. As suas aparições são como pirâmides construídas de tempo e profecias. Por isso os poetas enlouquecem transformando as lendas em tempo e o tempo em magníficas construções agnósticas. Deus é um produto da sua imaginação. A evidência da sua loucura é o caos de onde nasce a ordem, que é outra forma de caos. A beleza só tem sentido dentro da possibilidade do seu abandono. A luz procura a essência da sombra, a indiferença das estrelas, toda a espécie da liberdade incrédula. É ao rebolar que a neve adquire o seu peso primário. O silêncio entra pela janela, os camponeses transformaram-se em anjos. Dentro deles dormem os utensílios, os símbolos familiares, as promessas de boas colheitas, a paz furiosa das montanhas e a imagem queimada dos poucos haveres que possuem. Se as palavras são arcaicas, os homens são ríspidos e as mulheres submissas. Os modelos também são outros, bem assim como o voo dos pássaros, a leveza do vento, a suavidade do céu e o grito dos escravos. Os homens pesam-se nas balanças para saberem da sua importância. Sobre as ruínas dos impérios pousa agora um pavor límpido e imenso. Os homens curvam-se para apanharem a sua sombra. As mãos das mulheres brilham pousadas nos regaços. Ali permanece a fluidez das suas memórias, a melancolia do seu sangue, a sua tímida juventude, o abismo perene da sua humanidade. A dignidade traçou um círculo luminoso à sua volta. Que importa o pecado se ele nos conduz à nitidez? A certeza é uma espécie de crueldade misturada com amor. Das emoções vai-nos restando a sua lonjura. Que é a eternidade se não uma espécie de blasfémia?

11
Abr16

285 - Pérolas e diamantes: desconversas justas

João Madureira

 

 

Cito São Lucas (Lucas 16:10): “Quem é fiel no mínimo, também é fiel no máximo.”

 

E depois?

 

Depois volto a citar São Lucas (Lucas 16:10): “Quem é injusto no mínimo, também é injusto no máximo.”

 

Isto pode parecer uma conversa entre irmãos, mas é essencialmente uma palestra entre predadores sociais. Ou melhor, são desconversas.

 

Eles falam mas não dizem nada, existem mas é como se nunca tivessem existido, roubam mas é como se nunca tivessem roubado.

 

Dialogam mas não comunicam nada.

 

A estratégia pode não parecer credível, mas resultou em pleno. Em Portugal conseguiu mesmo fazer eleger presidente da República um peripatético comentador televisivo.

 

No fundo, o senhor alcançou compor uma versão shakespeariana de A Ceia dos Cardeais. É o triunfo do polígrafo Júlio Dantas. Pobre do Almada Negreiros. Pobres de nós.

 

Apesar de quase toda a gente o considerar um troca-tintas, o senhor alega que tudo fez para proteger a sua dignidade. Mas Cícero já há muitos séculos questionou este tipo de atitudes e de comentários: “Como pode haver dignidade onde não há honestidade?”

 

A nós aconteceu-nos assistir ao conto de fadas do fim para o princípio. Logo após o 25 de Abril vimos transformar-se a carruagem em carroça e logo depois a carroça converteu-se em abóbora. Os cavalos tornaram-se burros, que depois se metamorfosearam em ratos que puxavam a cabacinha da avó. E a Gata Borralheira nem chegou a perder sapato nenhum, pois o príncipe era um Capitão de Abril, bom a apaziguar a malta e a comer chouriço assado e caldo verde nas festas comunitárias.

 

Agora nascem no campo político os neoliberais como se fossem cogumelos venenosos. Bonitos mas tóxicos. E começam a falar com a sua voz fria e compassiva, com a evidente particularidade de chegarem atrasados, como a caridade sempre chega.

 

A noção interiorizada de que o mundo moderno é um fluxo contínuo à nossa volta que gira sem parar pertence ao mesmo tipo de abstração filosófica que nos admite pensar bem do período pré-histórico em que os guardadores de cabras desenhavam obras-primas nos seixos das margens dos rios.

 

Os nossos homens perfeitos, embora detestem a violência, são entusiastas colecionadores de borboletas. A beleza tem de estar presa num alfinete.

 

Francamente, esta dita aura nacional reformadora é folclórica, classista, maçónica e religiosa.

 

 As ordens comunitárias são tão estranhas que só podem gerar sentimentos adversativos. O forro do capote não pode ser melhor do que a fazenda com que é feito.

 

Perguntaram um dia a Vladimir Nabokov se as ideias políticas podem resolver algum dos grandes problemas da vida duma pessoa. A resposta foi a seguinte: “Sempre me maravilhei com a limpidez dessas soluções: os ardentes estalinistas que se transformam em inofensivos socialistas, os socialistas que encontram porto tardio no conservadorismo, e assim por diante. Suponho que isto deve ter muitas parecenças com a conversão religiosa, da qual pouco sei. Apenas posso explicar a popularidade de Deus com o pânico dum ateu.”

 

Nabokov sabia que as únicas pessoas que florescem com todos os tipos de governo são os filisteus.

 

O Estado aumentou com o crescimento da economia, só que cresceu sem honra, isento de projetos, a não ser o de servir e alimentar as claques partidárias. Cresceu com Cavaco, desenvolveu-se com Guterres e manteve-se com Sócrates e Passos Coelho.

 

Basta olhar para as grandes empresas e reparar quantos ex-ministros e secretários de Estado, autarcas, assessores e outra rapaziada lá se encontra. Os que sobram estão nos escritórios de advogados, a praticar o luxuoso e bem pago jogo do tráfico de influências. Quase todos trabalham para se enriquecerem e empobrecerem os restantes. É um fartar vilanagem.

 

Governar nos tempos que correm é quase como fazer ações de espionagem, onde há sempre, como nos ensina John le Carré, um acima da linha e um abaixo da linha. Acima da linha é o que se faz segundo as regras. Abaixo da linha é como se faz o que é preciso fazer.

 

Vamos ver se este governo ziguezagueante se consegue manter em pé.

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