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Espalhou-se entre nós uma espécie de saturação da novidade.
Marcelo Rebelo de Sousa, no seu primeiro discurso numa cerimónia do 25 de Abril, armou-se de coragem e distribuiu recados à esquerda e à direita, conseguindo assim receber mais aplausos do que é normal. O país assiste pachorrento a um banho de “marcelomania”.
Marcelo, que como é seu timbre e feitio, já foi contra e a favor do Acordo Ortográfico, resolveu ir a Moçambique e, entre outras minudências, mostrou vontade de reabrir a discussão sobre o AO, pois confia que nem Maputo nem Luanda vão ratificar o polémico documento.
O ex-comentador político quer a todo o custo surgir como presidente de todos os portugueses e, se não lhe põem barreiras, também de alguns espanhóis e de muitos cidadãos da CPLP.
Generoso nos sorrisos, nos abraços e nos beijos, o novo presidente parece querer ser parcimonioso na distribuição das medalhas. No dia 10 de Junho apenas vai condecorar uma pessoa: Margarida de Santos Sousa, a corajosa porteira que socorreu em sua casa feridos dos atentados na discoteca parisiense Bataclan que mataram mais de 100 pessoas, em abril de 2015. Ao contrário de Cavaco, Marcelo pretende ser contido na atribuição de medalhas que considera só se justificarem em casos excecionais.
Talvez fascinado com Jerónimo de Sousa, o senhor presidente Marcelo escolheu João Caraça, representante da Gulbenkian em Paris e filho do matemático comunista Bento de Jesus Caraça, para presidir às comemorações do 10 de Junho, que este ano decorrerão na capital francesa.
Quem também anda exaltado é o laureado poeta Manuel Alegre que no dia 25 de Abril recebeu o prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, por pérolas poéticas como esta intitulada “País”: “Não sei se sem poemas há país / ou sem eles se perde o pé a fé e até / esse país que está onde se diz / Ai Deus e o é? // Alguns julgam que é tanto vezes tanto / capital a multiplicar por capital / país é um café e a mesa a um canto / onde um poeta sonha e escreve e é Portugal. // Levantou-se a velida levantou-se a alma. / Por mais que o mundo nos oprima e nos esprema / há sempre um poema que nos salva / país é onde fica esse poema.”
Eufórico e a encher-se de prémios e medalhas, o rei do Clube dos Poetas Vivos foi mesmo mais longe, até onde nunca tinha ido, e confessou que não votou no Marcelo Rebelo de Sousa. Mas da próxima vez já não sabe. “Se isto continuar assim, se calhar voto”.
Que alegre anda o Manuel da “Praça da Canção”. Já não se canta como soía.
Imbuído desta mesma euforia anda também o senhor ministro da Educação que decidiu mais uma vez mudar os currículos das escolas públicas nacionais. Resolveu para isso deixar as instituições decidir 25% dos currículos, criar disciplinas e reforçar matérias. As metas impostas pelo seu antecessor Crato vão ser encurtadas, pois, na sua perspetiva, a “Matemática e o Português são tão estruturantes como as artes”, talvez querendo inverter a ordem dos fatores para servir como metáfora.
O senhor ministro faz parte do eterno problema de estarmos sempre a voltar ao mesmo. Cada novo governo cede sempre à tentação corriqueira de mudar o que encontrou feito e concluído. É essa instabilidade permanente que prejudica quem menos devia ser prejudicado em todo o sistema de ensino: os alunos.
Finalmente Pinto da Costa vai a julgamento. E não é nem por causa do Apito Dourado ou da salada de frutas em que anda metido vai para alguns anos. Ele, Antero Henrique e outros arguidos serão julgados no âmbito da “Operação Fénix” por terem contratado os serviços de uma empresa de segurança ilegal. Ao todo, são 57 os acusados de associação criminosa, exercício ilícito de segurança privada, extorsão e coacção.
É o FCP a perder em todas as frentes. Três anos de penúria de títulos podem acabar em desastre. Quem anda à chuva molha-se.
Arturo Pérez-Reverte tem razão. Aos tontos não há forma de convencê-los a que deixem de o ser. É preciso descer ao seu nível. E, nesse sentido, os tontos são imbatíveis.
No manual do confessor estão referidas as distintas mulheres que vagueiam na noite. Estas mulheres de fora cavalgam castrados ou outras esposas do mesmo ofício. Outras voam ao deus-dará. São figuras ambíguas, provocadoras honestas, perseguem as boas fadas e seguem para Oriente. Vestem de branco e usam um turbante vermelho na cabeça. São sempre mulheres ocasionais, que reconhecem os fenómenos anómalos, as hipóteses incompatíveis, os obstáculos analógicos, as fisionomias óbvias, as lendas difusas, as miragens que se avistam no estreito de Messina. As mulheres de fora têm êxtases profundos. Reproduzem-se em oráculos frágeis, inspirados em Apolo. Celebram a vitória das Mães, desdobram e triplicam as divindades, oscilam entre o singular e o plural e enterram as progenitoras nos cemitérios das fadas. As ninfas criaram Zeus, as cabras amamentaram-no, depois vieram os homens que contaminaram tudo. Apareceram então as constelações, que mais não são do que amantes transformadas em ursas. Da fabulosa infância de um deus nasceu o primeiro poeta. As suas metamorfoses indicam uma nova genealogia mística. O primeiro poeta casou-se com Ártemis, a senhora dos animais. Ao mesmo tempo que se reproduziram, as mulheres da noite começaram a criar cavalos alados, leões e cervos. A realidade ficou marginal. As Mães distinguem-se das outras mulheres porque ostentam na mão direita uma tigela e têm o colo cheio de frutos. Atrás delas, o poeta faz descrições das suas primeiras experiências extáticas, de correntes linguísticas infinitas, de relatos extensos, de confidências inimagináveis, perseverando na lógica fotográfica das distâncias cronológicas. Os deuses menores iniciaram então as suas práticas mágicas com o auxílio de algumas crianças desasadas. Nas bacias de água começaram a aparecer os espíritos que interrogavam as crianças, cultivavam as ervas venenosas e criavam animais misteriosos. Principiaram os bajuladores a fazerem conexões históricas. Tudo se tornou semelhante. O olhar das divindades adquiriu o poder letal que ainda hoje possui. As lendas passaram a ser ameaçadoras e a circundar os povoados, os pelourinhos e as estátuas. Nasceram então as fábulas e os magos que controlam o ingresso no reino dos animais e das plantas. Os abkhazis aprenderam a devolver o sopro vital aos animais mortos. Os indivíduos adquiriram a sua identidade substancial. Os homens e as mulheres passaram a reviver, sem o saber, os mitos oriundos dos tempos e dos espaços antiquíssimos. Apareceram os santos inquisidores munidos das suas convergências genéricas prontos a destruir todas as divindades, menos a sua. Pretenderam provar a existência do seu deus apelando à ordem tipológica. Acabaram transformados em açougueiros de precisão. As metamorfoses e os voos divinos passaram a aparecer apenas nos sonhos dos mortais. Inventou-se então o Purgatório. As almas adquiriram a forma de borboletas e passaram a abandonar os corpos de quem dorme. Vão combater o êxtase. A sua mediação é noturna. Finalmente os amantes começaram a descer aos seus jardins para colherem os lírios mais perfumados. O amor parou no meio dos campos. Foi aí que a minha mãe me concebeu, numa conclusão apressada. Depois sentou-se à sombra de uma macieira e comeu o fruto fresco do desgosto.
O “Livro de Ester”, um dos livros históricos do antigo testamento da Bíblia, diz-nos que a essência da tragédia dos seres humanos não reside no facto de os perseguidos e oprimidos aspirarem a libertar-se e a erguer-se.
O verdadeiro mal consiste em que, no fundo dos seus corações, os oprimidos sonham em tornar-se opressores daqueles que os oprimiram, os perseguidos aspiram a ser perseguidores e os escravos a serem senhores. Afinal isto já vem de longe.
Depois falam-nos dos traidores. Ou melhor, do traidor perpétuo Judas, que, segundo novas revelações históricas, não foi traidor nenhum, sendo até o discípulo preferido de Jesus.
Basta olhar para alguns atos de traição para o epíteto mudar de forma e sentido.
Em França, De Gaulle foi eleito presidente com os votos dos partidários da Argélia francesa. Depois foi capaz de acabar com a soberania francesa na Argélia e de conceder a independência total à maioria árabe. Os partidários de ontem apelidaram-no de traidor e tentaram mesmo matá-lo. Escapou por milagre a um atentado.
Abraham Lincoln, o libertador dos escravos na América, foi apelidado de traidor pelos seus adversários e acabou assassinado por um seu compatriota quando assistia a uma peça de teatro.
Os oficiais alemães que tentaram assassinar Hitler também foram acusados de traição e executados.
Amos Oz tem razão quando diz que na história surgem por vezes pessoas corajosas, avançadas ao seu tempo, que por isso mesmo foram chamadas de traidoras e mortas.
Aqueles que estão dispostos a mudar, que possuem a ousadia da mudança, serão sempre considerados traidores por aqueles que são incapazes de qualquer mudança, e lhe têm um medo de morte. Não a entendem e têm-lhe pavor.
Existem também os patrioteiros. Eça de Queirós dividiu-os em duas categorias: os defensores da “nação viva” e da “ciência justa” e aqueles para quem a “maneira de amar a pátria é tomar a lira e dar-lhe lânguidas serenatas”.
Os primeiros foram muitas vezes perseguidos, presos e mesmo executados. Muitos morreram no exílio, outros nas labaredas da inquisição e outros ainda nas prisões políticas do fascismo.
A maioria continua por aí a tanger a lira e a cantar modinhas ao jeito popular.
Atualmente quase nada distingue a burguesia do proletariado. O enquadramento cultural é muito semelhante. Leem as mesmas revistas do coração, folheiam o “Correio da Manhã” ou o “Jornal de Notícias”, entretêm-se com a mesma literatura de cordel, veem a mesma televisão e comovem-se sempre com as telenovelas ou com os programas de entretenimento. O fado e a música pimba embala-lhes os sonhos e abana-lhes o corpo. Tony Carreira aí está para o provar.
A cultura de massas triunfou. A burguesia e o proletariado distinguem-se apenas na capacidade de fazer e amealhar dinheiro.
Desculpam-se com a ideia de que a cultura é uma coisa pesada, que a vida tem de ser leve. Nivelou-se a inteligência e as ideias pelo mais baixo denominador comum.
Em vez de se discutirem as ideias, discute-se a comida, a bebida e a roupa.
Martin Amis tem razão: a brigada iletrada triunfou.
Experimento a mesma estranha sensação de Fernando Lopes Graça em 1937: “Apesar de nado e criado em Portugal, cada vez sinto mais a minha incapacidade para sentir e compreender as coisas portuguesas; e assim é que estou em me considerar uma monstruosíssima exceção àquela genial lei etnopsicológica, formulada por um conhecido jornalista português: de que para sentir e compreender as nossas coisas é absolutamente indispensável ter nascido em Portugal.”
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