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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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20
Jun16

295 - Pérolas e diamantes: O Lado de Guermantes

João Madureira

 

Hoje tencionava falar-vos da razão que leva as pessoas que são vítimas da fome, da incúria, da corrupção e da opressão, de cada vez que há eleições, a darem a sua entusiástica aceitação aos políticos que lhes tornam a vida insuportável.

 

Tencionava, mas já não tenciono. De boas intenções está o inferno cheio. A verdade é que desisti do intento porque não consigo atinar com tais desvarios humanos. Cheguei à conclusão de que estão para lá do meu entendimento.

 

Hoje vou levar-vos “Para o Lado de Guermantes”, o volume três do “Em busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, que retrata, durante sete livros, uma época e uma consciência da França desde a III República até à Primeira Guerra Mundial. Daí a multitude de personagens socialmente situadas e psicologicamente analisadas com uma minúcia deliciosa e uma subtileza desconcertante.

 

Para Proust, a realidade autêntica vive no inconsciente e só a magia da memória involuntária a recupera.

 

O duque de Guermantes, por exemplo, tem vaidade na mulher mas não gosta dela. Segundo o narrador da “Recherche”, cada um de nós vê mais belo o que vê à distância, o que vê nos outros. Porque as leis gerais que regulam a perspetiva na imaginação tanto se aplicam aos duques como aos outros homens. E não só as leis da imaginação, mas as da linguagem.

 

Naquela época as pessoas eram delicadas e uma dona de casa não podia atrever-se a enviar um cartão acrescentando à mão: “uma xícara de xá”, “um chá dançante”, ou “um chá musical”.

 

Naqueles tempos tomava-se muito chá logo desde pequenino. Mas conhecedoras da delicadeza, as donas de casa, também não ignoravam a impertinência.

 

Os serões da aristocracia eram bem frequentados. As elites eram genuínas. Não faziam de conta.

 

Por exemplo, a senhora Leroi, uma visita lá de casa, conhecia eminentes personalidades europeias. Sendo ela uma mulher agradável que fugia ao tom das literatas, evitava falar das questões do Oriente aos primeiros-ministros, tanto como da essência do amor aos romancistas e aos filósofos.

 

Uma vez, uma dama mais pretensiosa perguntou-lhe o que era o amor. Ela limitou-se a responder: “O amor? Faço-o muitas vezes mas nunca falo dele.”

 

A duquesa de Guermantes, por seu lado, quando as celebridades das letras e da política lhe rompiam portas adentro, limitava-se a pô-las a jogar póquer. Muitas vezes, elas apreciavam mais isso do que as grandes conversas de ideias gerais a que as obrigava a senhora de Villeparisis.

 

Lá pelo meio de esclarecedores diálogos, Bloch lembra-nos que a divina Atena, filha de Zeus, colocou no espírito de cada um o contrário do que está no espírito do outro.

 

E também falavam de “mentalidade”, na nova “mentalidade” que o caso Dreyfus estava a abrir em França e no mundo Ocidental.

 

O duque de Guermantes, um antidreyfusista, que possuía um caderninho cheio de citações e que as relia antes dos grandes jantares, tomou nota dessa nova palavra e prometeu servir-se dela quando achasse conveniente. Desde logo porque lhe agradava. Naqueles tempos nada era deixado ao acaso.

 

Quando alguém achou engraçado um dito espirituoso de apoio aos dreyfusistas, o duque de Guermantes fez questão de dizer que lhe era indiferente que fosse engraçado ou não. “Não dou qualquer importância ao espírito”, rematou. E podia-o fazer porque estava em sua casa.

 

No seu canto a duquesa, murmurava para o seu círculo mais íntimo: “Ele não pensa uma palavra do que está a dizer. É por certo por ter feito parte das Câmaras, onde ouviu discursos brilhantes que não significavam nada.”

 

Viviam-se tempos conturbados. Os mais esclarecidos tentavam atalhar as manobras antimilitaristas por parte da esquerda mais radical. Mas, avisavam, também não tinham de aceitar as disputas encorajadoras por aqueles elementos de direita que, em lugar de servirem a ideia patriótica, apenas pensavam em servir-se dela.

 

Entretanto, os mais libertários faziam o que sempre fazem: pediam o impossível. Pedir tudo é uma forma de não se conseguir nada. É como arrombar uma porta aberta.

16
Jun16

Poema Infinito (307): o sossego titilante da ilusão

João Madureira

 

 

Os grandes montes ao sol transpiram sossego. Alguns bichos têm ainda dentro de si o frio da noite. Os homens, entretanto, sonham. Ou fazem que sonham. Os sonhos fazem sempre de conta. Uma chuva lenta desce pelos nossos olhos. Outros olhos nos observam. Por vezes temos a sensação de que o universo é absolutamente oco. O tédio encharca-nos. A memória abandona-nos. A alma esfria-se. O destino é uma interseção de tudo. Só o tempo é sossego. Só o tempo nos desassossega. As consequências da vida misturam o corpo e a alma. Chega primeiro o som da chuva do que a própria chuva. Já nada nos surpreende. Todos os sonhos do mundo são um só. No entanto, o mistério das ruas é distinto. Os pensamentos são impossivelmente reais. O velho conduz a carroça pela estrada do tempo. Esse tempo que é nada e tudo ao mesmo tempo. O comboio parte antes de chegar. As casas velhas das ruas mais estreitas inclinam-se umas para as outras, para se ampararem. Assim podem dividir as sombras e filtrar melhor a luz do sol. Nós somos as ruínas das conquistas futuras, a certeza dos loucos, o propósito mineral das árvores, as aspirações mais nobres e mais lúcidas de tudo aquilo que é irrealizável, a humanidade divina de Cristo, a hipotética razão da filosofia de Kant, uma porta que não tem parede, uma parede que não possui porta, a voz inaudível de Deus, todas as cores da natureza que cabem dentro da cabeça de um cego. Nós conquistamos o mundo mesmo antes de nos levantarmos da cama. Todos transportamos dentro de nós a gloriosa honra de sermos aquilo que nunca seremos. Ensinaram-nos a desprezar as lágrimas, a disfarçar a dor, a iludir a verdade, a admirar os gestos largos sem nada dentro, a inspirar e a expirar de forma moderna, a invocar os espíritos da vulgaridade. Vistas das janelas, as ruas ganham sempre outra nitidez. Vejo no espelho a forma do meu envelhecimento. A decadência é uma máscara. Só pode ser. A utilidade deve ser a coisa mais inútil do mundo. Daí este meu cansaço antecipado, este futuro sem passado, este presente que é sempre um instante mal aproveitado. Quem se fez à história nunca pensou que o máximo que podia alcançar era ser uma imagem desenhada numa parede de barro. As figuras certas contam sempre a história errada. A haver alguma elegância na vida, ela está escondida na persistência dos persistentes, no verbalismo triste dos poetas, no ritmo sossegado das manhãs, nas brisas que titilam as folhas das árvores, nos cinco minutos anteriores ao ato serenamente desesperado de escrever um poema e nos cinco minutos logo após o seu término, nas curvas involuntárias das estradas, no rápido rodopiar de um pião, no estremecimento da atividade da alma verdadeira que se esconde sempre dentro da alma falsa. A rua encheu-se agora de um sol vago. As casas parecem ainda mais paradas por causa da gente que anda cada vez mais depressa. Os seus sorrisos alegres escondem uma tristeza superior, procuram a razão que nunca irão encontrar. A loucura é sempre maior do que os espaços onde habita. O mundo é como o circo da nossa infância. O seu risco é calculado. A vida é idêntica à saudade que temos dele. É este o momento de chegar o nevoeiro, o seu sabor é imperfeito. Os fantasmas ocultos interrogam a sua angústia. Já não sei se sou eu que te sonho, se és tu que me sonhas. A ilusão é a mesma. Andei léguas a deambular. Sonhei com o poema. Sonhei com a sua infinidade. De quem é, afinal, o olhar para quem eu olho?

13
Jun16

325 - Pérolas e diamantes: da política ao desperdício ou o desperdício da política

João Madureira

 

 

Foi interessante de ler a entrevista de Durão Barroso ao Expresso. Ele que passou mais de trinta anos ligado à política acaba por confessar que aquilo de que verdadeiramente mais gosta não é da política. A política foi um acidente de que não se arrepende mas que quer olhar com alguma distância.

 

Foi para a política por causa dos debates. Mesmo sem ninguém lhe perguntar, o ex-presidente da Comissão Europeia respondeu que aquilo de que gosta mais não é da política mas da arte, da literatura, do teatro, da música e das artes plásticas. Isso sim é que lhe dá uma grande satisfação. Quem diria?

 

A política fá-la porque às vezes não lhe resiste. E isso já vem dos tempos da juventude, quando militante do MRPP contestava tudo e todos. Depois começou a escalar as prioridades e acabou no PSD. Ele sabe o que os políticos passam e aquilo que valem. Com a escola que tem nenhum de nós duvida.

 

Ele que foi secretário de Estado, ministro, primeiro-ministro e presidente da Comissão Europeia sabe muito bem daquilo que fala. Todos nós acreditamos que sim.

 

Está perfeitamente consciente das agruras da política. E da espuma dos dias. E do pó que o tempo lança sobre tudo. Aquilo que fica é Shakespeare, Camões, Cervantes, Montaigne ou Dante.

 

Os políticos podem ser importantes – os que o são, claro está –, mas ao fim e ao cabo a política é instrumental. 

 

Na sua perspetiva, a política deve evitar o sofrimento dispensável, deve criar as melhores condições, mas aquilo que verdadeiramente nos realiza é a ciência, o conhecimento e a cultura geral.

 

Por vezes parecemos ratos enjaulados dentro da nossa própria liberdade.

 

Importante é sabermos de onde somos e para onde vamos.

 

O problema é definirmos a nossa zona, digo eu. O Centro do país não, porque somos do norte. O Litoral também não, porque detestamos a areia, a água salgada e os escaldões. O Interior é pedregoso, a planície alentejana abrasa, dá-nos cabo dos nervos e o branco cega-nos. Um pouco de luz dá algum jeito, mas os ventos fustigam-nos o poder de decisão. No Minho chove muito e o vinho é verde. A Estremadura tem muita terra calcinada, faz-nos lembrar La Mancha, a terra de D. Quixote. No Ribatejo os toiros bravos (ei toiro lindo?) andam à solta e as rãs não param de coaxar.

 

Olhamos para o mapa e não nos conseguimos decidir: aqui chove, ali neva, acolá queima, além sofre-se com o trânsito. Aqui lembramo-nos de tudo, ali pasmamos com o carnaval, acolá, bem acolá, acolá…

 

O melhor é mesmo viver numa cidade onde o rio passa ao meio, cruzado por uma ponte milenar, onde podemos ouvir o som marulhado das águas do Tâmega, onde podemos apreciar a mistura das cores do poente, onde a água quente rompe do chão aos borbotões, onde as pedras retalhadas guardam memórias em silêncio, onde nas ruas tortuosas ainda passam almas boas, onde as conversas ainda têm o sabor a amizade, onde muitas casas são emolduradas por lindas varandas, onde as memórias são cozidas em lume brando, onde a cor da água se mistura com as lendas e dá origem a fontes misteriosas, onde os silêncios mais profundos são invisíveis, onde as ruas se cruzam e desembocam numa fronteira interior, onde se chora recordando a morte dos heróis, onde os rostos dos mais velhos estão calejados por sulcos de sangue, suor e lágrimas, onde até as rochas são rugosas e os mais dedicados dos seus filhos perseguem eternamente a pedra de Sísifo, onde as casas enlouquecem porque vão perdendo a memória, onde muitos dos dias são deitados fora como se fossem boletins do totoloto não premiados.

 

Onde agora nos apetece escrever com giz nas paredes como antigamente o fazíamos nos quadros ou com o ponteiro de ardósia nas lousas da escola.

 

E onde as resmas de folhas escritas se vão amontoando pensando nós em reciclá-las para não parecer mal tanto desperdício.

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