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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

09
Jun16

Poema Infinito (306): diferenças divinas

João Madureira

 

 

Dizes que ouves a minha voz mesmo quando não estou a falar contigo. Essa é a tua vocação. Eu digo sempre o que sinto, mas nem sempre uso as palavras. Por vezes, os sentimentos não cabem dentro delas. D. Quixote também nunca coube dentro do livro de Cervantes. Ele sabia como trocar os moinhos por gigantes. Estava sempre perto da sua distância. Tinha o vício da pureza, por isso enlouqueceu. Ele viu Deus e não acreditou. As estradas estavam sempre cheias de surpresas. Quando pensava encontrar o caminho para o céu, entrava no inferno. As suas guerras acabavam sempre em parábolas. Dom Alonso Quixano tinha dores abençoadas, entrava sempre às cegas nas lutas. Dizia sempre adeus e ficava à espera. Abria sempre os braços quando lhe chegava a saudade. Os loucos não são anjos porque não lhes crescem as asas. Mas sabem cantar nos abismos canções inocentes, têm sonhos novos todos os dias, atiram pragas redentoras. Por isso são incompreendidos. Mostram-se todos. A sua fé não vem nos evangelhos. Para eles, o nosso mundo é vago. Conhecem as teorias dos apóstolos. Aprenderam a ouvir e a estar calados. Afinal, os loucos são sempre os outros. A verdade é uma espécie de fome desgraçada que dá a quem a procura. Por vezes, não sabendo fazer o bem, praticamos o mal que não queremos. Os humanos são assim, matam em nome do seu Deus para lhe serem perdoados os pecados. Há sempre quem os absolva. Job tinha três amigos que valiam por trinta. Dizia santas palavras sem sentido. Era pobre. Limitava-se a aceitar a alegria no seu corpo dorido e a maldade dos Sabeus. Ensinaram-lhe que nada era. E ele aprendeu. Das várias profecias se fazem os profetas. Dormem noites descansadas e passam dias terríveis. As chagas provocadas pelo tempo não têm cura. Depois perdem-se dentro dos paraísos e fazem tudo para não darem com a saída. Gostam de dizer que morrerão numa generosa agonia. Ou então tragicamente como Sócrates, bebendo a dose certa de cicuta. Ou como César dizendo nos idos de Março: “Também tu, meu filho Bruto.” Se Bruto tivesse bebido cicuta, talvez a história tivesse sido outra e Cristo talvez não chegasse a nascer nem a ser crucificado, nem os célebres cavaleiros cruzados andantes tivessem existido e Cervantes, se por acaso tivesse nascido, não conseguisse escrever o D. Quixote por causa de um referente sério de loucura. O que importa é aquilo que dói, o sol que aquece, o corpo lavado e as frases mais vagas que prometem o céu. O céu é um pensamento velho. Deserto onde não há seca não é deserto. O meu poema é um romance infindável. Os profetas que o habitam olham de longe as horas, têm por vezes visões belas, dizem que conhecem a grandeza de tudo aquilo que é santo, mas eu não os conheço. São como as aves noturnas que comem os agoiros como se fossem alimento. Por vezes, os profetas vestem-se de lobos, outras vezes de sereias. E dizem que amam Deus e a sua vingança serena. O Deus do Novo Testamento é muito diferente do Deus do Velho Testamento. Todo o caminho se aproveita. Até os atalhos são bem-vindos. Basta contar os passos para sabermos a distância que nos separa. É tudo igual. Por vezes não conseguimos distinguir um gesto de ternura de um gesto de desprezo. E persistimos inutilmente na sua lembrança. Os rios correm para o mar. Mesmo assim, os mares não ficam doces. Moisés abriu as águas com uma pancada da sua vara. Para os seus descobriu o caminho da salvação, para os outros abriu uma funda sepultura. Não somos todos iguais aos olhos do Criador, seja ele quem for.

06
Jun16

293 - Pérolas e diamantes: o pecado da salvação

João Madureira

 

 

Há dias assim. Hoje acordei com uma ideia fixa. Talvez porque tenha adormecido sem nenhuma dúvida, o que é raro, confesso.

 

Por causa do terrorismo árabe, lembrei-me das cruzadas, que eram encenações cuidadas e estreitamente identificadas com a renovação espiritual.

 

Esse processo estava especificamente relacionado com a pobreza voluntária e o aperfeiçoamento da vida.

 

No tempo da Terceira Cruzada, Alão de Lille, um pregador da cruz famoso na época, enfatizou o facto de a pobreza exaltada pelos missionários implicar humildade espiritual, não penúria económica. Para isso escolheu a versão do Sermão da Montanha em Mateus 5:3: “bem-aventurados os pobres de espírito” e não o mais socialmente radical de Lucas 6:20: “bem-aventurados sois vós, os pobres; pois vosso é o reino do Céu”.

 

De Mateus surgiu a moderna Opus Deis. De Lucas brotaram os Franciscanos.

 

Como todos sabemos, a reconquista da Terra Santa não foi deixada à metáfora. A ênfase reiterada na violência de Saladino exigia um tratamento de choque. As suas ondas ainda hoje se sentem. Para mal dos nossos pecados.

 

E é no pecado que vamos continuar. Pecadores somos nós todos. E quem não for que se atreva a atirar a primeira pedra.

 

É o atiras!

 

Foi em pecado que li a entrevista de José Rentes de Carvalho ao Expresso. E desde já confesso que o José é um pecador cativante e cheio de literatura dentro. A sua vida dava um filme. Para já resultou em alguns bons livros, cheios de humor e pequenos pecados veniais.

 

Podia relatar-vos uma sua aventura em Paris, que contou na LER, onde fala “numa maîtresse, muito procurada pela competência em dominar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho, especialista de arriscadas técnicas do afogamento, orgulhosa de assim provocar ejaculações e orgasmos que faziam concorrência a um tal de Radko”, mas não, vou ficar-me pela entrevista mesmo.

 

A sua cruzada foi enorme.

 

Com 85 anos continua a calcorrear as estradas entre Portugal e a Holanda, cerca de 2200 km, todos os três meses. Sempre o mesmo caminho, as mesmas estradas, os mesmos hotéis.

 

Não escreve as suas memórias porque isso significa alindar, ou desculpar. Diz que não faz sentido.

 

Nasceu em Gaia. Nas traseiras da sua casa habitava uma espécie de lumpenproletariat, gente pitoresca e rude, carinhosa e também do mais cruel e feroz que se pode imaginar. Gente “que vivia na fronteira entre a humanidade e a animalidade”.

 

Foi o seu avô paterno que o ensinou a ler e a escrever, nos cadernos da alfândega. Ainda recorda a primeira frase que leu: “remessa de documentos para a sede”. São expressões destas que ditam um destino. Provavelmente inspirado por expressão tão vinculativa escreveu um conto intitulado Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia. Que deu título ao livro com o mesmo nome.

 

Fugiu de casa aos 17 anos e foi para Lisboa. Aos 19 anos, antes de ir para a tropa, insistiu na toleima. Alugou um quarto na Praça da Alegria. Não sabia que era uma casa habitada por espanholas do Parque Mayer. Foi o seu primeiro paraíso. E disso tirou proveito.

 

Fugiu à tropa e foi para Paris. Lá, com a ajuda de Novais Teixeira, aprendeu que a beleza da língua é essencial. Conheceu o realizador de cinema Buñuel e “uma mulher espalhafatosa, mas não muito inteligente, que dava pelo nome de Sophia Loren”. Andou também por Nova Iorque.

 

Acabou por se fixar na Holanda, onde foi professor universitário. Foi lá que começou a escrever. Iniciou-se com um livro que desancava os holandeses. Eles apreciaram, não porque sejam masoquistas, mas antes porque sabem que é com as críticas que se aprende. E de graça, que é outra coisa que consideram.

 

Estes amantes de tulipas pensam que se alguém diz mal deles, lá terá as suas razões, ou não. Se tiver, eles aproveitam e tentam corrigir-se. Se não tiver, esquecem e não ligam.

 

E terminou em duplo pecado, como não podia deixar de ser.

 

Na sua maneira de ver – pecadora, insisto, e quem não o for que lance a primeira pedra (é o lanças!) – as pessoas não se dão conta de que andam nuas por aí, mesmo por detrás daquela máscara que exibem, para corresponderem ao que delas se espera. Na maioria dos casos são tão previsíveis que até dói.

 

E costuma, todas as semanas, cometer o desmesurado pecado da gula, em Torre de Moncorvo, sempre sentado à mesa do mesmo restaurante, bem em frente a uma travessa de feijoada à D. Dinis.

 

Que Deus o ajude e a mim não me desampare.

02
Jun16

Poema Infinito (305): a inocência e o medo

João Madureira

 

 

Do mar, viu o pescador tirar as redes repletas de estrelas. Dentro do peito, ardem-lhe os astros que não consegue contar. Os seus dedos são agora uma abstração. Com eles desenha anémonas e tesouros místicos. Com eles benze os peixes e as algas. Com eles constrói os muros do jardim. Com eles escova o chapéu e limpa a sua infância do pó que teima em cobri-la. Com eles rega a última árvore que sobrevive no quintal. Dizem que já lhe falta o juízo. As borboletas absorvem as flores que rega todos os dias. Ainda sabe dar conselhos. Também gosta de os pedir. Sabe ainda comprar e vender, semear e medir o chícharro e a batata, o centeio e o vinho. Sabe cantar a paz e a paciência e toda a saudade que mora dentro de si. Sorri como se fosse o filho pródigo. Talvez o último. Provavelmente o primeiro. Já serviu de anjo da guarda, orientou meninos desviados, ganhou e perdeu asas. Teve sempre muitas dificuldades em aprender as orações. Preservou sempre a inocência estendendo no ar a sua espada de seda carmesim. Agora entretém-se em ver o sol revestir a oliveira de luz, a observar as videiras a medrar, a regar os jasmins e a salsa, a escutar as vibrações da enxada na terra que o cavador utiliza com golpes duros e certeiros. E lembra-se dos campos cobertos de geada, da neve ladroa, das chuvas adiadas, dos hortos desassossegados, do cheiro das madrugadas, dos jornaleiros cortando o pão meeiro, da mó a desandar no moinho, das rolas a gemer nos pinheiros, das nuvens a correr no céu e da morte a grelar nos montes. Umas vezes sente-se Abel, outras toma parte por Caim. Atrapalha-se com o excesso das flores, com o incenso das missas, com os anjos que cheiram a maio, com os passos na rua, com os fechos das portas, com os cordeiros que comem as rosas mais leves, com a luz da lua nos charcos, com o tempo a gotejar. E espera, pungentemente. Por vezes diz que vê Deus no escuro a desenhar a verdade com a mão esquerda. Mistura o sabor das batatas e do pão com o das palavras mais suculentas e ligeiramente gordurosas. Atira os remorsos às brasas e deixa-os crestar. Deixa a alegria grelar como se fosse um vegetal e sorri para dentro. Deixa os gestos mais nobres caírem na terra molhada. Aí amadurece a sua alma. As espigas começam a balouçar no campo. Aí sentiu a presença divina do desejo a subir-lhe pela haste central. Foi-se a inocência, cresceu-lhe o medo. Surpreendeu-se quando se picou nas urtigas pela primeira vez e com as estrelas acesas na noite. A chuva cai sobre as telhas vãs do antigo telhado. O seu corpo de velho enrola-se nas mantas. Sente que lhe podaram as mãos. Os restos da esperança estão amontoados com as folhas junto ao muro, a poente. As ervas ficam luminosas. As pedras gotejam. O cavalo molhado agita a crina e relincha. Dorme-lhe a alma aos pés. A sua vida está tão inerte como a cinza do borralho da lareira. Os seus mortos falam-lhe cada vez menos. Pai e mãe são palavras quase apagadas. As chagas das mãos já não lhe doem. O tempo bate-lhe à porta, levemente. As horas morrem-lhe sem chegarem ao fim. Está tudo tão quieto que até o sangue se lhe arredonda no coração. A sua sombra pesca em vão no mar. A neve cai dentro do presépio que transporta dentro da sua cabeça. Algumas das ovelhas parem. A vaca parece perdida. O burro começa a zurrar. Os sinos tocam. Os pastores fogem de um lado para o outro. Os anjos comprados voam dali para fora. A mãe do menino chora, o pai refila. Os reis magos nunca mais chegam. A estrela cadente levou-os para outro lado. A vaca e o burro começam a mastigar o feno com impaciência. Uma alma atormentada pega fogo às palhas. O menino dorme profundamente.

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