Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Jul16

Poema Infinito (312): a rigidez do silêncio

João Madureira

 

 

No começo, vamos adiando a dificuldade. Só vemos a verdade depois de ela se ter ido embora. A posse parece-se com uma paisagem vazia sempre fechada sobre si mesma. Possui a mesma espécie de vibração da ilusão ou da censura e a mesma puerilidade da melancolia. Os sonhos nunca estão no lugar onde os supúnhamos. As estrelas transferiram de lugar a alegria. A saudade ficou mais penosa. As grinaldas nos cabelos das donzelas virgens tornaram-se violentas. A impaciência transforma-se em corrente de ar e atravessa o universo. As sementes sadias atravessam a terra e juram-lhe fidelidade. A lascívia e a volúpia tomam conta dos animais domésticos. As coisas descobrem novos rostos. Os olhares ficam mais furiosos. Uma mão de mulher afaga de tempo o rosto imbuída de uma cólera tenra, como se apalpasse as estrias da sua pele após o nascimento de um filho. Tudo o que é claro acaba por arder e as palavras mais leves aproximam-se das lâmpadas e abrasam-se como insetos. A luz é uma espécie de dor longínqua. Pareces tão triste como o teu anjo da guarda. Pronuncias as mesmas palavras. O vosso júbilo é idêntico. Como é idêntica a renúncia ao reconhecimento da intuição afadigada da contemplação. As formas do tempo parecem mais abertas, mais sentidas, mais moldadas pela morte. Pressentimos a amizade, a sua forma melancólica, a sua lamentação cuidada e informe. Doem-nos as palavras impressas nos canteiros dos jardins e nos pináculos das catedrais. Doem-nos as palavras penduradas nas ameias dos castelos ou pregadas nos portões dos fortes. Doe-nos o destino dos versos e o tempo indefinido da sua persistência e do seu regresso. Doem-nos as imagens, as aparências, a vitória do tempo, a ida e a vinda do filho pródigo. Continuamos a gravar novos nomes na nossa memória. A reconhecer os rios pela luz que refletem. A nossa visão continua compreensiva, possui a mesma marca de água. O tempo antigo ainda mora junto à casa dos nossos avós. A angústia do voo dos pássaros ainda é a mesma. As amêndoas e as horas ainda possuem o mesmo sabor. O sabor doce das pavias ainda pressagia o mesmo perigo. Os sorrisos das pessoas da aldeia vacilam e tremem como se já não acreditassem na alegria. As maçãs são agora objetos ternos e duros. Olhamos os seus rostos e passamos a compreender a sua angústia, que agora é apenas um pouco mais demorada. Estão tão repousados que parecem brinquedos. O silêncio endureceu-os. Falam-nos das amoras que apodrecem sem que ninguém as apanhe e das rãs que coaxam de uma forma breve. Agora tudo os fere: as primaveras, a calma, as gotas da chuva, a flutuação das folhas, a sombra dos seus olhares. As orações são cada vez mais curtas e pesadas. Os nomes que pronunciam são tão largos como gerações. A sua saudade é uma espécie de chuva miudinha que não para de cair. As noites são eternas e os dias parecem sacos plásticos para guardar produtos congelados. Deus é uma torre antiquíssima. Os olhos apagam-se-lhes como velas gastas. Encheram-se de acumular mistérios que irão morrer com eles. Essa é a sua forma de construírem a eternidade. Está na hora de olhar para esta gente e guardar dentro de nós os seus espaços, de escutar a sua voz, de caminhar os seus caminhos, de encontrar o sentido da sua dor. Da madeira das árvores com a sua idade fizeram-se alaúdes. A brevidade da sua música é a nossa noção de eternidade. Somos todos meninos com medo do destino. Sobre a minha escrivaninha uma flor sorve pela haste a água do seu desaparecimento. A ironia faz-me sorrir.

18
Jul16

299 - Pérolas e diamantes: o abandono

João Madureira

 

 

Há coisas que continuamos a sentir mesmo depois delas desaparecerem. Por vezes adormeço a fantasiar com as velhas ruas da cidade e com os rostos jovens dos meus antigos colegas de liceu.

 

O romantismo da infância persegue-nos a todos. Nós brigávamos arremessando paus e pedras uns contra os outros. Saímos quase todos meio abrutalhados. Outro galo cantaria se tivéssemos sido criados, por exemplo, numa fábrica de violinos. As nossas guerras teriam sido muito mais educativas e interessantes, batendo uns nos outros com as rabecas.

 

Talvez as palavras de Tolstoi ganhassem outro sentido: “Fingir diante de si próprio é pior do que fingir diante dos outros.”

 

Ao jantar, as nossas mães até comiam bem. Comiam como crianças. Comiam como nós. No entanto, pareciam sempre ausentes. Sofriam por nós. Muitas das vezes nos sítios onde as não podíamos ver.

 

Engoliam a comida ao mesmo tempo que engoliam a dor.

 

O barulho das brincadeiras das crianças continua a irritar os mais velhos. E o silêncio dos velhos causa mal-estar nos mais novos. Há coisas que não mudam.

 

Por vezes esquecemo-nos da ideia de moderação que nos ensinaram. Refletimos muito. Mas a inteligência parece que já não nos serve para grande coisa, ao contrário do que acontecia antes.

 

Continuamos a gostar apenas do peixe que nos servem no restaurante ou aquele que tenha sido cozinhado de maneira a deixar de parecer peixe.

 

Atraem-nos os diligentes de aspeto limpo e asseado, ainda que ligeiramente descompostos. São sedutores, com o seu sotaque lisboeta e fluentes em inglês, língua que articulam de forma muito agradável. Quando começam a falar, parece que vão dizer qualquer coisa de muito interessante. Mas a verdade é que nunca chegam a ser verdadeiramente originais.

 

Por vezes sei que tenho razão, mas, em muitas ocasiões, parece errado dizer que se tem razão.

 

Acertar e afirmá-lo, pode ser, em certos casos, um erro.

 

Insistir na razão, por vezes, é contrariar a razão do outro.

 

Muitas vezes dizer a alguém que aquilo que diz é certo, pode ser um erro. 

 

Muitas vezes, fazer coisas certas é errado.

 

Por isso é que diversas vezes acertamos quando erramos e outras erramos quando acertamos.

 

Dizem-nos que somos todos muito especiais, só que nunca nos explicam em quê.

 

Há cada vez mais pessoas que se rendem àquilo que lhes dizem que é a realidade. Não possuem nenhuma capacidade de iniciativa face ao que se passa à sua volta. Vivem prisioneiros dos acontecimentos. Uma atitude de conformismo vai tomando conta de nós.

 

Vivemos numa época de abandono.

 

Tonino Guerra, o argumentista de Amarcord, de Fellini, no seu Livro das Igrejas Abandonadas, escreveu esta pequenina história: “Eu abandono Roma, os camponeses abandonam a terra, as andorinhas abandonam a minha aldeia, os fiéis abandonam as igrejas, os moleiros abandonam os moinhos, os montanheses abandonam os montes, a graça de Deus abandona os homens, alguém abandona tudo.”

14
Jul16

Poema Infinito (311): o odor da desintegração

João Madureira

 

 

A escada mais direta ao desejo está construída com degraus intransponíveis. Já não vou ter tempo para ver crescer a ausência da pequena cerejeira que plantei na quinta e para observar o esplêndido gotejar das gotas de chuva pelas suas folhas pontiagudas. Dantes falava-te na abundância destrutiva das flores, dos lugares mais próximos da imaginação, dos mapas dos reencontros, dos poemas que representavam corpos, da configuração humana das tulipas, dos gatos submersos nos rios, das magnólias que eram como gargantas sequiosas. Essas imagens apagaram-se definitivamente no tempo. Os jardins implodiram. Os frutos dos pomares já não respondem à mesma noção de amadurecimento. A conceção de felicidade é mais importante do que a própria felicidade. O inverno concentra a sua vontade no frio. O tempo imprime aos caminhos uma espécie de clandestinidade profunda. Os poços afundam-se na terra outra vez virgem. Os sorrisos são como uma espécie de febre fria. Já não há segredos pintados nas glicínias. Procuramos o verde nas searas de vento. Somos como cavalos habituados à rédea curta. A forma escura das almas pressagia traições. Tentamos perceber a lei que rege a inabitabilidade dos planetas. Tentamos reconhecer as raízes externas dos poemas internos. Os dedos do pianista caem sobre as teclas como se elas fossem suas inimigas. Parece um deus em segunda mão. Chegou a altura de criarmos a nossa própria ficção. As tempestades rebentam ainda mais cinzentas do que é costume. Todos os dias esquecemos mais um livro, ou um poema, ou um filme bem visto mas mal-amado. Desprezamos os beijos copulativos, os idiomas da penetração, a gomosa intensidade dos corpos. A inquietação desliza sobre nós como se fôssemos culpados da sua culpa. As horas transformaram-se em malmequeres que ninguém quer despetalar. As casas deslizam por dentro dos sonhos e as suas janelas transformam-se em aves agoirentas. A inquietação é um corpo transparente. As árvores ficam oblíquas como os gestos pensados dos anciãos. Os gestos já não nos entendem. E nós já não entendemos os gestos. A felicidade é uma espécie de desgraça maravilhosa. As flores já não cheiram a flores, já não crescem nos campos. Possuem a noção geométrica da morte. Contêm a precisão redonda dos circos. A sua cor é retangular. Os dias estão mais baços, sabem demasiado a sal e a hipertensão. Escondemo-nos por detrás do asseio do tempo. As asas dos anjos são a razão da sua queda. Continuamos a dormir um no outro. Recebemo-nos, consagramo-nos, abrimo-nos. Depois fechamo-nos. Os morangos junto ao poço continuam a regar-se com a água fresca do orvalho. Nas nossas mãos aparecem flores desenhadas. Pelos nossos corpos crescem trepadeiras que se enrolam em nós como se fossem línguas, como se os nossos membros fossem absolutos. O nosso desejo também transpira. A noite adormece e adormece-nos. Os nossos braços condenam as horas. Nos nossos rostos pousam palavras enrugadas, palavras leves, palavras curtas. Nos nossos olhos ainda floresce o esplendor da confiança. Por vezes o sono transforma-se em ferida. Lá fora o vento agita as sombras, os jardins repousam. Os sonhos são como arquipélagos em forma de carrossel. Tudo agora é nevoeiro e transparência. O cheiro a desintegração embate violentamente contra as paredes do tempo. A noite aproxima-nos um pouco mais da luz fulgurante das estrelas. 

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2025
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar