Eric Hobsbawm tem razão. Uma das ironias do século passado é que o resultado mais duradouro da aplaudida Revolução de Outubro, na Rússia, cujo principal objetivo era o derrube global do capitalismo, foi salvar o seu antagonista, tanto na guerra como na paz, fornecendo-lhe o medo como incentivo.
Agora já podemos olhar para trás e desfrutar da ironia da sua derrota. A força do desafio socialista global ao capitalismo transformou o fraco em forte, acabando por conseguir que triunfasse de uma maneira quase estúpida.
Também em Moscovo, como muito mais tarde em Lisboa, o poder, mais do que tomado, foi apanhado. Diz-se que mais gente se feriu nas filmagens do grande filme de Eisenstein, Outubro (1927), do que durante a tomada de facto do Palácio de Inverno em 7 de Novembro de 1917. O Governo Provisório, já sem ninguém que o defendesse, esfumou-se simplesmente.
O mágico Mandrake saindo da parede, na nossa direção, quando abríamos a porta do frigorífico destronou o homem de aço soviético carregado de sorrisos, ideologia, mas sem papel higiénico, sabão, ou carro próprio.
H. Auden, metido na aventura revolucionária em Espanha, durante a guerra civil, bem exaltava a luta contra o inimigo comum, em 1937: “Amanhã para os jovens, os poetas explodindo como bombas, / Os passeios à beira do lago, as semanas de perfeita comunhão; / Amanhã, as corridas de bicicletas / Pelos subúrbios nas noites de Verão. Mas hoje a luta […]”
Um pouco mais tarde, já nos finais da II Grande Guerra, Spartaco Fontanot, um metalúrgico de 22 anos, membro do grupo resistente francês de Misak Manouchian, em 1944, escrevia à sua mãe: “Não culpe mais ninguém pela minha morte, eu mesmo escolhi o meu destino. Não sei o que escrever-lhe porque, apesar de ter as ideias claras, não consigo encontrar as palavras certas. Assumi o meu lugar no Exército de Libertação e morro quando a luz da vitória começa a brilhar […] Vou ser fuzilado daqui a pouco com 23 outros camaradas. Depois da guerra deve exigir o seu direito a uma pensão […]”
Mas o que derrotou o fascismo e, um pouco mais tarde, o comunismo, por incrível que pareça não foi a ideologia que cantava os amanhãs radiosos de sol marxista-leninista, mas uma coisa bem mais simples e prosaica: o patriotismo.
Conservadores fortemente imperialistas e anticomunistas como Winston Churchill, e homens de formação reacionária católica como De Gaulle, preferiram combater a Alemanha não por uma animosidade especial contra o fascismo, mas por causa de une certaine idée de la France ou a certain idea of England.
Contudo, mesmo para pessoas como estas, o seu empenhamento podia ser parte de uma guerra “civil” internacional, pois o seu conceito de patriotismo não era necessariamente o dos seus governos.
Ao ir para Londres e, a 18 de junho de 1940, declarar que, sob a sua chefia a “França Livre” continuaria a combater a Alemanha, Charles De Gaulle praticou um ato de rebelião contra o governo legítimo de França, que decidira constitucionalmente terminar a guerra e fora, sem dúvida, apoiado nessa decisão pela grande maioria dos franceses da época.
Em situação idêntica, Churchill teria reagido da mesma maneira. Entretanto Estaline aguçava as suas garras de aço nas masmorras da Lubianka e provocaria uma das maiores chacinas da história. O Lobo das Estepes comia os seus próprios filhos ou os filhos da matilha.
Foi por essa altura que, para 80% da humanidade, a Idade Média acabou de repente. A partir daí o mundo, ou os seus aspetos evidentes, tornou-se pós-industrial, pós-imperial, pós-moderno, pós-estruturalista, pós-marxista, pós fosse o que fosse. E até pós-coital.
Agora vivemos neste mundo neoliberal, dominado, liderado e formatado pelos poderosos órgãos de informação.
As manifestações bem-sucedidas não são necessariamente as que mobilizam o maior número de pessoas, mas antes as que atraem maior interesse entre os jornalistas. O caso paradigmático português é o Bloco de Esquerda.
Pierre Bourdieu tem razão quando afirma que, exagerando apenas um pouco, pode-se dizer que meia centena de indivíduos inteligentes que conseguem obter cinco minutos de TV para um happening bem-sucedido podem produzir um efeito político compatível ao de meio milhão de manifestantes.
A escola dos multiculturalistas e dos defensores do eduquês, e da sua vertente fundamentalista pedagógica, fez triunfar a ideia de que é irrelevante e não democrático decidir se Macbeth, de Shakespeare, é melhor ou pior do que o Batman.
É tudo relativo, até a estupidez.